Execução; insolvência;
efeitos da declaração de insolvência*
1. O sumário de RP 10/7/2019 (2544/18.9T8OAZ-B.P1) é o seguinte:
I - Enquanto a herança não estiver partilhada, nenhum dos herdeiros tem direitos sobre bens certos e determinados, nem um direito real sobre os bens em concreto, nem sequer sobre uma quota parte em cada um deles.
I - Enquanto a herança não estiver partilhada, nenhum dos herdeiros tem direitos sobre bens certos e determinados, nem um direito real sobre os bens em concreto, nem sequer sobre uma quota parte em cada um deles.
II - Por força do nºs 2 e 3 do art.º 824º do Código Civil, a venda de bens na ação executiva é feita livre dos direitos de garantia que os onerarem, pelo que os direitos de terceiro que, assim, caducarem se transferem para o produto da venda dos respetivos bens. O credor garantido passa a exercer a sua garantia de pagamento através do produto da venda do bem.
III - Se uma herança é composta apenas por um imóvel, a ela concorrem vários herdeiros e foi apreendido para a massa insolvente o direito e ação que nela tem o devedor insolvente, sendo de 1/6 esse direito, pendendo processo de execução onde o imóvel vai ser vendido e hipoteca sobre esse prédio a favor de um credor reclamante na insolvência, o produto da venda equivalente a 1/6 do preço do imóvel deve ser transferido para a massa insolvente, devendo o credor hipotecário ser pago com preferência sobre os demais credores (comuns).
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Enquanto a herança não estiver partilhada, nenhum dos herdeiros tem direitos sobre bens certos e determinados, nem um direito real sobre os bens em concreto, nem sequer sobre uma quota parte em cada um deles.
Se é certo que a quota de coisa ou direito comum é suscetível de hipoteca (art.º 689º, nº 1, do Código Civil), a lei não admite que se constitua hipoteca sobre a “meação de bens comuns do casal” (estão afetos a um fim que seria comprometido se aquela hipoteca se admitisse) ou sobre a “quota de herança indivisa” (art.º 690º do Código Civil). Assim o aconselha, neste último caso, a necessidade de serem certas e determinadas as coisas hipotecadas (art.º 686º do Código Civil) [Luís Menezes Leitão, Garantias das Obrigações, pág. 216; Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, Almedina 2016, 2ª edição, pág. 208] a impossibilidade de o consorte dispor de parte especificada da coisa comum ou de a onerar (art.ºs 1408º e 2124º do Código Civil), assim como a nulidade das hipotecas gerais (art.º 716º do Código Civil).
Mas pode ser constituída hipoteca sobre uma quota-parte de um bem determinado (de que é exemplo a compropriedade), ainda que de um bem indivisível se trate. A hipoteca da quota não prejudica o direito dos consortes de requererem ou procederem à divisão da coisa (art.ºs 1412º e 1413º do Código Civil). Vendida, pois, judicialmente a quota em execução, ela continua, neste caso, em regime de condomínio indivisível com o adquirente, se os consortes não exercerem, o seu direito de preferência. [P. Lima e A. Varela, Código Civil anotado, Vol. I, 2ª edição, pág. 635 (anot. ao art.º 689º).]
A fortiori ratione, é admissível a constituição de hipoteca sobre a totalidade de uma coisa determinada por todos os consortes para garantir a dívida de cada um deles, de todos ou de terceiros.
Volvendo ao caso sub judice, foi regular e validamente constituída, com registo, uma hipoteca voluntária (art.ºs 686º e 687º do Código Civil) sobre um certo e determinado bem de herança ilíquida e indivisa, mas relativamente à qual foi apreendida para a massa insolvente o direito a 1/6 correspondente a uma sua quota ideal.
Com toda a evidência, o direito apreendido não coincide com o bem hipotecado, pelo que, numa visão mais perfunctória, somos levados a entender que a hipoteca não pode garantir o crédito da D…, S.A. na insolvência. A hipoteca recai sobre uma coisa determinada e na execução universal que se visa com o processo de insolvência o que está apreendido é um direito incidente sobre um acervo patrimonial que inclui o bem hipotecado. Compreende-se que assim seja. Se está apreendido (apenas) o direito a 1/6 de um universo patrimonial, não pode, sem mais, designadamente sem prévia partilha de bens, ficcionar-se que o bem hipotecado pertence aos insolventes e, como tal, responde pelas suas dívidas.
Acontece, no entanto, que a herança é composta apenas pelo bem hipotecado e que esse mesmo bem determinado vai ser vendido, na totalidade, num processo de execução onde se liquidará o quinhão de cada herdeiro, sabendo-se que à insolvente assiste o direito a 1/6 do seu valor.
Não se coloca, por isso, qualquer problema relacionado com a indivisibilidade da hipoteca (art.º 696º do Código Civil).
A hipoteca, enquanto direito real de garantia, está ao serviço de um crédito, que assegura, sendo um direito acessório deste. Por isso, em caso de incumprimento da obrigação garantida pela hipoteca, o credor hipotecário, através do recurso, necessário, à ação executiva, poderá satisfazer o seu crédito pelo produto da venda (executiva) do bem com preferência sobre os outros credores, exceto se os créditos destes beneficiarem de privilégio imobiliário especial ou de direito de retenção.
Nos termos do art.º 824º, nº 2, do Código Civil, a venda de bens na ação executiva é feita livre dos direitos de garantia que os onerarem (bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com exceção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo).
Dispõe o nº 3 do mesmo artigo, “os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda dos respectivos bens”. Os direitos reais de garantia que oneravam o bem penhorado e vendido no processo executivo extinguem-se, o adquirente adquire o bem sem esse ónus, e o credor garantido passa a exercer a sua garantia de pagamento através do produto da venda do bem.
Com a venda executiva do bem hipotecado, a que a D…, S.A. não se opôs, extinguem-se as hipotecas que sobre ele recaem, mas não pode deixar de assistir àquela credora a garantia da hipoteca constituída a seu favor, agora convertida numa garantia de pagamento incidente sobre o produto da venda na parte correspondente a 1/6 do mesmo. Tudo se passando, para o efeito, como se o bem fosse vendido no processo de insolvência. O produto da venda do bem onerado não pode deixar de ser afeto à satisfação coerciva do direito de crédito da D…, S.A., na insolvência, com a força da garantia dada pela hipoteca.
Com efeito, o crédito da D…, S.A. não pode ser qualificado como um crédito comum e, na graduação, prevalece sobre os demais créditos da insolvência (comuns) até ao valor equivalente a 1/6 da venda do imóvel no processo de execução, que vier a ser transferido para a insolvência."
*3. [Comentário] Se bem se percebe o que é afirmado no acórdão, a credora que reclamou o seu crédito na insolvência (D…, S.A.) é também credora exequente numa execução (com o número 510/14.2TBOAZ) em que se encontra penhorada a totalidade do prédio hipotecado. Efectivamente, lê-se no acórdão que, "no processo de execução nº 510/14.2TBOAZ, instaurado pela recorrente [D…, S.A.], foi penhorada a totalidade desse mesmo bem imóvel sobre o qual a Recorrente tem hipotecas voluntárias constituídas, registadas, a seu favor."
Perante isto, cabe perguntar se não se deveria ter aplicado o disposto no art. 88.º, n.º 1, CIRE, que estabelece que a declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente. Se bem se compreendeu o acórdão, parece que seria a partir deste regime que havia que procurar a solução do (interessante) caso.
MTS