Embargos de terceiro;
abuso de direito
1. O sumário de RG 10/7/2019 (232/14.4TBGMR-C.G2) é o seguinte:
I - Perante um quadro fáctico em que:
- Em 2000, os simuladores (embargantes) alienaram um imóvel a uma sociedade comercial da qual o embargante marido é, juntamente com um filho, sócio-gerente, com a finalidade de o retirar do seu património a fim de o subtrair à ação dos seus credores;
- Em 2000, os simuladores (embargantes) alienaram um imóvel a uma sociedade comercial da qual o embargante marido é, juntamente com um filho, sócio-gerente, com a finalidade de o retirar do seu património a fim de o subtrair à ação dos seus credores;
- Em 2007, por apresentar uma situação financeira bastante difícil e a fim de evitar que o imóvel fosse penhorado e com o propósito de prejudicar o exequente e demais credores, essa sociedade “adquirente”, representada pelo embargante marido, alienou o referido imóvel à executada, valendo-se do facto desta ter como gerente um dos filhos dos embargantes.
- Nos referidos negócios nunca foi paga qualquer quantia a título de preço, tendo sido efetuados apenas com o intuito de prejudicar terceiros, sendo que a vontade declarada não correspondia à vontade dos contraentes.
II - Agem com abuso do direito os simuladores que, na sequência da penhora do imóvel decretada em 2014 no âmbito duma execução instaurada contra uma daquelas duas sociedades (a que não foi declarada insolvente), tendo como título executivo uma sentença proferida na ação de impugnação pauliana, na qual se declarou a ineficácia das compras e vendas efetuadas entre as aludidas sociedades e o direito do autor de obter a satisfação do seu crédito à custa dos bens imóveis aí identificados, pretendem fazer valer os efeitos da nulidade dos negócios jurídicos, de modo a que esse imóvel seja excluído do processo executivo e lhes seja restituído.
III - Considerando que todos os negócios foram efetuados para prejudicar os credores, o exercício do direito dos embargantes à restituição desse imóvel apresenta-se ilegítimo, por se traduzir num exercício que excede ostensivamente os limites impostos pela boa-fé, não se coadunando com um comportamento próprio de pessoas de bem e honestas, que agem com correção e lealdade, respeitando as razoáveis expectativas dos credores que interagiram negocialmente com os mesmos e posteriormente com a sociedade “adquirente”, na aparência de que o prédio em causa era um ativo desta e, como tal, suscetível de responder pelas suas dívidas.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Analisando, agora, o caso dos autos importa atentar na seguinte facticidade apurada:
- No ano de 2000, o embargante marido tinha diversas dívidas fiscais e tributárias e bancárias e, para evitar que o imóvel identificado em 2) fosse penhorado para pagamento de tais dívidas, alienou-o.
- Para o efeito, por escritura pública de compra e venda outorgada em 14.09.2000, no 2º Cartório Notarial de …, os embargantes declararam vender, pelo preço de 4.500.000$00 (22.445,91 €) à sociedade comercial “Y – Imobiliária, Lda.”, representada nesse acto pelo filho de ambos, J. P., o aludido prédio.
- No ano de 2007, a sociedade comercial Y começava a ter algumas dívidas e estava numa situação financeira bastante difícil, pelo que, para evitar que o imóvel fosse penhorado e com o propósito de prejudicar o exequente e demais credores, alienou-o à executada, X, empresa cujo gerente é N. F., filho dos embargantes.
- Assim, por escritura pública de compra e venda, exarada em 13.06.2007, no Cartório Notarial de C. T., a sociedade comercial “Y – Imobiliária, Lda., neste acto representada pelo embargante marido, na qualidade de gerente, declarou vender o mencionado imóvel à sociedade comercial “X – Aluguer de Equipamentos de Construção, Limitada”, pelo preço de € 13.000,00.
- No negócio celebrado em 14.09.2000, a Y nunca pagou qualquer quantia pelo preço, nem o imóvel foi vendido, tendo sido efectuado apenas com o intuito de prejudicar terceiros e quanto ao negócio outorgado em 13.06.2007 também nunca foi pago o preço do imóvel. - Em nenhuma das escrituras celebradas a vontade declarada correspondia à vontade dos contraentes.
- O embargante marido participou, a título pessoal, na qualidade de vendedor, no primeiro negócio e interveio, na qualidade de gerente e em representação da sociedade Y – Imobiliária, Lda, no segundo negócio.
- As sociedades envolvidas nos negócios têm (tinham [...]) como representantes um filho dos embargantes, sendo que o embargante marido era também sócio gerente da Y.
Sendo esta a facticidade apurada dela sobressai desde logo o papel nuclear assumido pelo embargante marido na concepção e execução de um plano que, num primeiro momento, passou por (aparentemente) retirar do património dos embargantes o imóvel identificado nos autos, a fim de o subtrair à acção dos seus credores – visando, por conseguinte, prejudicá-los, e não apenas enganá-los –, uma vez que aquele tinha diversas dívidas (fiscais, tributárias e bancárias).
Para o efeito, aproveitando-se do facto da sociedade Y ter como sócios gerentes o próprio embargante marido e um filho dos embargantes, os embargantes celebraram com a referida sociedade um contrato de compra e venda do imóvel, dando assim ensejo a um negócio simulado (art. 240º do CC), visto que a vontade nela declarada não correspondia à vontade dos contraentes, sendo que nunca foi pago o respectivo preço, nem o imóvel alienado. Os embargantes valeram-se dessa suposta venda nos termos e para os fins supra referidos, dela se prevalecendo e mantendo-a enquanto a mesma se manteve conveniente aos seus interesses, assim logrando colocar esse bem a salvo dos credores do embargante marido.
Todavia, no ano de 2007, revelando a sociedade Y uma situação financeira bastante difícil e a fim de evitar que o imóvel fosse penhorado e com o propósito de prejudicar o exequente e demais credores, foi decidido alinear o referido imóvel à executada, X, prevalecendo-se, mais uma vez os embargantes, do facto desta sociedade ter como gerente um outro filho dos embargantes, no caso o N. F..
Foi inclusivamente, o embargante marido quem interveio nessa escritura de compra e venda celebrada com a X, na qualidade de gerente e em representação da sociedade Y – Imobiliária, Lda.
Também esta situação (de aparência jurídica) manteve-se por alguns anos dado se mostrarem devidamente salvaguardados os interesses (ilegítimos) dos embargantes, até ao momento em que o referido imóvel foi penhorado no âmbito da ação executiva de que estes embargos de terceiro são dependentes, sendo que a execução tem como título a sentença proferida em 7.11.2013, no processo nº 66/10.5TCGMT, da 2ª Vara de Competência Mista de Guimarães, no âmbito duma acção de impugnação pauliana intentada pelo exequente A. R., contra Y - Imobiliária, Lda, e X - Aluguer de Equipamentos de Construção, Lda., na qual se declarou a ineficácia das compras e vendas ali identificadas, efectuadas entre as aludidas sociedades, e o direito do autor de obter a satisfação do seu crédito à custa dos aí identificados bens imóveis.
Ou seja, foi na iminência do referido imóvel ter de responder pela satisfação do direito de crédito que o autor A. R. possui sobre a Y, o que a suceder comprometerá irremediavelmente as finalidades que presidiram às simuladas vendas [de eximir esse bem à ação dos credores dos embargantes e da sociedade Y], levadas a cabo pelo embargante marido, quer por si, quer na qualidade de legal representante da Y, que os embargantes vieram invocar a nulidade dos negócios, por simulação, porquanto tal situação aparente por eles motivada deixou de lhes convir e é prejudicial aos seus ilegítimos interesses.
Às considerações antecedentes importa ainda salientar [...] que o imóvel penhorado pertença dos embargantes foi por estes, a partir do ano de 2000, colocado e mantido juridicamente como sendo pertença da co-embargada Y até 13.06.2007 e a partir dessa data como sendo pertença da co-embargada X, e, como tal, como coisa aparentemente integrante do património destas sociedades.
As aludidas sociedades comerciais figuraram, no confronto dos embargantes, apenas como uma espécie de “instrumento” ao serviço dos interesses destes, não passando por isso de meras intermediárias, e cujo interesse se resumia à salvaguarda dos interesses daqueles, tendo para o efeito sido decisivas as relações de parentesco existentes entre embargantes e os legais representantes de tais sociedades, sendo inclusivamente o embargante marido sócio gerente de uma delas.
Temos assim que quiseram os embargantes que, na aparência jurídica, tudo se passasse como se o referido imóvel pertencesse às ditas sociedades, como se fizesse parte do seu património. Porém, ao mesmo tempo, sempre se percecionaram os embargantes como os donos do imóvel, jamais deixando de gozar de todas as utilidades que o mesmo era suscetível de propiciar, designadamente habitando-o, recebendo correio, aí recebendo visitas de amigos e familiares, procedendo a diversas obras de conservação e melhoramento, colhendo os seus frutos.
Sendo assim, todas as vicissitudes inerentes a essa realidade jurídico formal devem ser vistas, nomeadamente no confronto dos credores (face às naturais expetativas que a aparência das coisas criava), como coenvolvendo os próprios embargantes, e não como restritas às sociedades comerciais.
Tendo sido com esta aparência, criada pelos próprios embargantes, que a situação jurídica do imóvel perdurou desde 2000 até 2014, em termos tais que suscitou a confiança das pessoas, é a todos os títulos intolerável, por violador do vetor da boa-fé, a pretensão dos embargantes à exclusão da imóvel do processo executivo, como se nem o imóvel, nem eles tivessem alguma coisa a ver com a emergência dos créditos que justificaram a instauração da execução.
É, por conseguinte, irrelevante a argumentação de que os recorrentes nunca tiveram, a título pessoal qualquer negócio com o embargado A. R., nem nunca tiveram nenhuma acção judicial contra este ou vice-versa e nunca foram seus devedores.
A situação evidenciada nos autos consubstancia, pois, uma grosseira violação da confiança, na modalidade de venire contra factum proprium, com a qual o sistema não pode contemporizar.
Com efeito, sufragando o aduzido na sentença impugnada, «(…) a embargada/exequente logrou provar que os embargantes agiram um modo tal que é a todos os títulos intolerável, por violador do princípio da boa-fé, a pretensão dos mesmos à exclusão deste imóvel aos fins da execução apensa.
Não se pode olvidar todos os negócios que foram efectuados para prejudicar os credores, sendo que o exercício do direito dos embargantes à restituição deste imóvel apresenta-se claramente ilegítimo, precisamente por se resolver num exercício que excede manifestamente (ostensivamente, grosseiramente, gritantemente) os limites impostos pela boa-fé, não se coadunando com um comportamento próprio de pessoas de bem e honestas, que agem com correcção e lealdade, respeitando as razoáveis expectativas dos credores que interagiram negocialmente com os mesmos e posteriormente com a sociedade Y contando que o prédio em causa nos autos respondesse pelas suas dívidas”.
Contrapõem, porém, os embargantes dizendo que a argumentação que serviu de base à verificação da situação de abuso de direito não colhe relativamente à embargante mulher, quer por nada ter sido alegado e muito menos provado que pudesse levar a uma conclusão dessas, além de que a recorrente mulher nunca teve qualquer intervenção, nem nos negócios alegados nos autos, nem nas diversas acções e execuções instauradas, não conhecendo sequer o embargado A. R..
Com o devido respeito, não colhem a enunciadas objecções.
Permitimo-nos para tanto destacar a facticidade incluída nos pontos 18, 21 e 23 da matéria provada, donde resulta que a embargante mulher teve direta intervenção no primeiro negócio simulado celebrado em 14/09/200, o qual foi efectuado apenas com o intuito de prejudicar terceiros (simulação fraudulenta).
Acresce que as dívidas do embargante marido, contraídas no exercício da sua atividade de empresário individual, e que foram o principal motivo para o casal (aparentemente) se “desfazer” do imóvel, não eram indiferentes à embargante mulher, dada a sua comunicabilidade (art. 1691º, n.º 1, al. d) do CC) [...], pelo que por elas responderiam os bens comuns do casal (como seja o imóvel em apreço), e, na falta ou insuficiência deles, solidariamente, os bens próprios de qualquer dos cônjuges. (art. 1695º, n.º 1 do CC).
Por outro lado, se atentarmos na petição inicial, é a própria alegação dos embargantes que infirma por completo esse alegado alheamento da embargante mulher nos negócios em apreço, tais como:
- “21. o Embargante marido, conjuntamente com a sua mulher, declararam vender a sua casa de morada de família, (…)”;
“22. E, para que se mantivessem na posse e como verdadeiros e únicos proprietários desse imóvel, os Embargantes declararam vendê-lo a uma sociedade comercial sob a firma “Y – IMOBILIÁRIA, LDA.”, aqui 3.ª Embargada, empresa esta cujo gerente e proprietário era o filho de ambos, J. P.”.
“23. Assim, por escritura pública de compra e venda, lavrada em 14.09.2000, no Segundo Cartório Notarial de Guimarães, do Notário J. G.,
24. Os Embargantes declararam vender, pelo preço de 4.500.000$00 (22.445,91 €) à sociedade comercial “Y – IMOBILIÁRIA, LDA.” (3.ª Embargada), representada nesse acto pelo filho de ambos, J. P., o aludido prédio (…)”;
“25. Ora, acontece que essa sociedade nunca pagou qualquer quantia pelo preço dessa compra e venda”.
“27. Acresce ainda que, ao contrário do declarado nessa escritura pública, nunca esse imóvel foi efectivamente vendido, e muito menos transferida a posse sobre o mesmo, que sempre se manteve com os Embargantes”.
“28. Mais tarde, no ano de 2007, e porque aquela “Y – IMOBILIÁRIA, LDA.” (3.ª Embargada) começava a ter também algumas dívidas, e com o mesmo objectivo de os Embargantes evitarem a penhora e alienação judicial do dito imóvel” [...],
“29. essa sociedade comercial, por ordem e instruções dos Embargantes, declarou vendê-lo à “X – ALUGUER DE EQUIPAMENTOS DE CONSTRUÇÃO, LIMITADA”, ora Embargada/Executada, empresa cujo proprietário é também filho de ambos os Embargantes, de seu nome N. F.” [...].
“34. E, assim, com a celebração desta escritura de compra e venda, os Embargantes, mais uma vez, evitaram a penhora e alienação da sua casa de morada de família” [...].
“40. Na verdade, nada os Embargantes quiseram vender e nada a “Y” e a “X” quiseram comprar”.
“42. Ao celebrarem assim os referidos contratos de compra e venda, constantes dos documentos n.º 6 e 7, os Embargantes, a “Y” e a “X”, esconderam um prédio que sempre responderia pelas dívidas do Embargante marido, prejudicando dessa forma os credores deste” [...].
Sendo assim, não colhe a argumentação de vitimização esgrimida pela embargante mulher, posto a mesma não ser (de todo) alheia nem indiferente à situação jurídica criada com as vendas simuladas.
Por último, é certo que no Acórdão desta Relação de 26.10.2017, proferido no âmbito dos presentes autos (recurso relativo ao despacho de indeferimento liminar dos embargos de terceiro, que foi julgado procedente), foi destacada a diferenciação entre a intervenção do embargante marido na qualidade de representante legal da sociedade Y, no processo onde foi proferida a sentença dada à execução, por contraposição à sua qualidade de demandante, a título pessoal, nos presentes embargos de terceiro, pelo que “não tendo sido judicialmente a diferenciação de personalidades jurídicas”, concluiu-se que também não podiam “confundir-se os papéis desempenhados a cada um dos títulos”. E em relação à embargante mulher mais se explicitou inexistir “qualquer indício de que tenha sido parte em qualquer dos processos referidos».
Porém, como também aí logo se aduziu, o “que se poderia questionar é se a sua pretensão [dos embargantes] não é ilegítima ou abusiva em termos substantivos; designadamente, por terem dado causa aos alegados negócios simulados que pretendem impugnar (…)”.
O que significa que a própria fundamentação do citado acórdão não excluiu a eventual verificação da questão do exercício abusivo do direito por parte dos embargantes.
Termos em que, pelos fundamentos expostos, se confirma o ajuizado na sentença recorrida no sentido de a actuação dos embargantes se enquadrar no instituto do abuso de direito, sendo, portanto, ilegítima.
É, igualmente, de manter a adotada sanção ou consequência inerente ao exercício abusivo do direito dos embargantes [...] cuja neutralização da antijuridicidade desse exercício se traduz na “não restituição do prédio aos embargantes (procedência de excepção material peremptória), mantendo-se este afecto aos fins da execução, pelo que [se] mantém a penhora efectuada na execução apensa a favor do exequente e o registo da mesma, sem prejuízo de aos embargantes, que são donos do prédio, vir a ser restituído o que eventualmente remanescer a esses fins”."
[MTS]