Impugnação pauliana;
insolvência
1. O sumário de STJ 11/7/2019 (341/13.7TBVNO-I.E1.S1) é o seguinte:
I. A impugnação pauliana consiste numa acção pessoal e com escopo indemnizatório que, tendo como base a ineficácia do acto impugnado, confere ao credor, na medida do seu interesse, o “direito à restituição” dos bens visados, tendo, para o efeito de satisfação do valor do seu crédito, o direito a praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei na esfera jurídica do obrigado à restituição-adquirente e o direito de execução no património desse adquirente.
II. O direito à restituição (art. 616º, 1, CCiv.) não determina, em regra, o regresso efectivo dos bens alienados ao património do devedor/transmitente, uma vez que a titularidade jurídica desses bens se mantém no adquirente.
III. A procedência de acção pauliana não confere ao credor impugnante, por via da aplicação do art. 616º, 4, do CCiv. («Os efeitos da impugnação aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido.»), uma preferência legal sobre os credores comuns do adquirente obrigado à restituição no âmbito da satisfação do seu crédito.
IV. A autoridade de caso julgado material fixada por acção de impugnação pauliana procedente e transitada não é contrariada pela apreensão do bem-alvo nessa impugnação na massa insolvente do adquirente, uma vez que não se lesa a imutabilidade processual do efeito jurídico-substantivo atingido na acção pauliana.
V. Não há apreensão indevida na massa insolvente do adquirente, afectado por acção de impugnação pauliana que declara a ineficácia do acto de aquisição, do bem objecto dessa aquisição, de acordo com o previsto no art. 141º, 1, c), do CIRE, o que não permite o recurso à acção de separação e restituição de bens regulada pelos arts. 146º-148º do CIRE.
VI. Justifica-se a aplicação analógica do art. 127º, 3, do CIRE («Julgada procedente a ação de impugnação, o interesse do credor que a tenha instaurado é aferido, para efeitos do artigo 616º do Código Civil, com abstração das modificações introduzidas ao seu crédito por um eventual plano de insolvência ou de pagamentos.») às acções de impugação pauliana julgadas procedentes após a declaração de insolvência e aos actos nelas impugnados em que o insolvente é o adquirente na transmissão visada com êxito pela impugnação pauliana pendente à data da declaração de insolvência e o bem-alvo se encontra apreendido legitimamente na massa insolvente.
VII. O credor impugnante pauliano concorre em igualdade com os demais credores da insolvência do insolvente adquirente do bem-alvo na impugnação pauliana, salvaguardando-se o princípio par conditio creditorum e sendo tratado o seu crédito como se tivesse sido reclamado e verificado no processo de insolvência.
VIII. Se se invoca singelamente atuação processual abusiva de acordo com o art. 334º do CCiv., sem se explicitar e concretizar a modalidade de exercício inadmissível e ilegítimo no processo, a conduta da parte deve ser julgada de acordo com as condutas previstas no instituto da litigância da má fé (art. 542º, 2, CPC).
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"4.1. Da separação da massa insolvente e restituição do bem à esfera jurídica da devedora, em face da (i)legitimidade do meio processual, e da autoridade de caso julgado material anterior
No que respeita à questão essencial invocada pelo Autor-Recorrente, o cerne decisório consiste em saber se, na sequência da declaração judicial de ineficácia, em relação ao Autor, e aqui Recorrente, AA, do contrato de compra e venda do imóvel, celebrado em 2010, entre a “CC, S.A.”, devedora do Autor-Recorrente, e a “BB, Lda.”, que veio depois a ser declarada insolvente em 2013, decorrente da procedência da pertinente acção de impugnação pauliana, assiste ao Recorrente o direito de fazer separar da massa insolvente da “BB” o prédio urbano identificado e restituí-lo à esfera jurídica da devedora “CC” através do recurso à acção de separação e restituição de bens. Estamos no âmbito das relações entre o Autor, como credor do alienante do imóvel, e o sujeito adquirente desse mesmo imóvel, a insolvente “BB”. [...]
Quid juris?
Em primeiro lugar, bem visto o alcance das razões do Recorrente, importa saber, partindo da premissa de que os bens afectados pela impugnação pauliana procedente se mantêm, em regra, no património do adquirente, aí sendo executados e conservados pelo credor impugnante[...], se o alcance do efeito ineficácia declarada pelo tribunal na relação com os credores do terceiro adquirente, autêntica vexata quaestio no contexto dos efeitos da impugnação pauliana. Isto é, ou esse alcance “apenas se limita a permitir que o credor impugnante continue a contar com o bem alienado na garantia geral do seu crédito, podendo executá-lo no património do adquirente, mantendo-se este aí para todos os efeitos, incluindo a sua integração na função de garantia desempenhada no novo património onde se insere. Ou então a ineficácia é mais profunda e impõe que esses bens, além de continuarem ao alcance do credor activo do seu alienante, também não possam garantir a satisfação dos créditos do seu adquirente, na medida em que sejam necessários ao pagamento do credor impugnante” [João Cura Mariano, Impugnação pauliana [...] págs. 266-267]. O azimute deve ser encontrado num equilíbrio razoável de interesses, uma vez que a protecção do credor impugnante não pode ser feita com o sacrifício dos credores do adquirente (que, aliás, passaram a contar com um reforço da garantia patrimonial dos seus créditos): “[n]ão sofrendo o acto impugnado de qualquer vício que afecte a sua validade, não devem estes [credores do adquirente], totalmente alheios ao prejuízo sofrido pelo credor impugnante, verem diminuída, injustificadamente, a sua garantia. Do mesmo modo que são poupados o próprio adquirente e os subadquirentes de boa fé, quando o acto envolve da sua parte um sacrifício patrimonial, por maioria de razão, também a impugnação pauliana não deve afectar os direitos patrimoniais dos credores do adquirente atingido pelo exercício desta figura. (…) A solução contrária resultaria na atribuição de um direito de preferência ao credor impugnante, semelhante ao que caracteriza direitos de garantia específicos, como a hipoteca, sem que o legislador tivesse consagrado expressamente esse direito. O credor impugnante que, como credor comum, apenas gozava da garantia geral sobre o património do devedor, (…) passava a dispor de uma garantia específica sobre os concretos bens alienados. A protecção da sua posição não só repunha a garantia afectada, como a reforçava excessivamente, criando uma preferência especial que permitia ao credor impugnante pagar-se com o produto da venda judicial destes bens, com prevalência aos demais credores (…)” [João Cura Mariano, Impugnação pauliana cit., págs. 267-268]. Não se sustenta tal prevalência, envolvendo a criação de uma preferência legal que o art. 616º, 1, do CCiv. não constitui ex professo, quando, nos termos vistos, “a impugnação pauliana tem a veste de restituição de um enriquecimento, nos casos em que o bem alineado já não se encontra no património do adquirente”, e “o credor impugnante tem um direito de crédito sobre aquele em tudo igual aos restantes credores comuns”[João Cura Mariano, Impugnação pauliana cit., pág. 268]. “Dir-se-á que o beneficiário da impugnação é, afinal, um credor do adquirente como qualquer outro. E também os credores pessoais deste podem ter confiado na regularidade da aquisição, contando com os referidos bens. Assim, afigura-se preferível a doutrina que subordina o credor que exercer a impugnação pauliana à concorrência, nos termos gerais, dos restantes credores comuns do terceiro obrigado à restituição”[Almeida Costa, Direito das obrigações [...], pág. 871 (sublinhado nosso), no âmbito do vertido nas págs. 869 e ss, com referência útil a doutrina (dividida) e jurisprudência; concordante: Menezes Leitão, Direito das obrigações, volume II [...], nt. 622 – págs. 321-322.].
Vejamos se tal ajuda à discussão do segmento discursivo da parcela analisada das Conclusões do Recorrente.
Os credores da “BB” passaram a ser credores da insolvência da “BB”, de acordo com os termos e conteúdo do art. 47º, 1 a 3, do CIRE. E o aqui Autor, à partida, não é considerado credor daquela insolvência, pois era sim credor da contraparte vendedora da compradora “BB”, depois declarada insolvente. Mas no património desta, porém, encontrava-se a garantia de execução da impugnação pauliana decretada, correspondente ao bem depois apreendido na massa insolvente da “BB”. Assim, de acordo com a visão adoptada, estariam em concorrência o credor do transmitente-impugnante pauliano, aqui Autor-Recorrente, e os credores da insolvência, em face do bem transmitido para o adquirente, depois insolvente, apreendido na massa como efeito da insolvência. É essa concorrência que o Recorrente pretende evitar com a procedência da acção, uma vez que poderá lesar a garantia concedida pela impugnação pauliana procedente.
Sendo certo que, nos autos, a sentença da impugnação pauliana é posterior à sentença de declaração de insolvência do adquirente do bem cuja aquisição foi declarada ineficaz em relação ao credor do transmitente, isto é, que a impugnação pauliana estava pendente de decisão uma vez declarada a insolvência da adquirente “BB”, o Recorrente chama à colação, para esse efeito de invocar a primazia do seu crédito perante os credores da insolvência da “BB” – nas suas palavras, invocar a oponibilidade da ineficácia decidida pela decisão judicial da acção pauliana em face dos credores da insolvência –, por mor da condição de insolvente do adquirente, o art. 127º, 2, do CIRE, enquanto inibidor da apensação ao processo de insolvência pertinente das acções de impugnação pauliana pendentes à data da declaração de insolvência (ou propostas ulteriormente). Este preceito, tendo em vista a sua dilucidação, integra-se na disciplina da resolução de actos prejudiciais em benefício da massa insolvente (arts. 120º-127º CIRE).
Nesse regime do CIRE é pacífico que, dentro dos instrumentos de reacção contra essa prejudicialidade negocial, “a impugnação pauliana constitui um instrumento subsidiário em relação à resolução em benefício da massa. Bem se compreende que assim seja. Enquanto esta determina a reversão dos bens ou valores para a massa insolvente, sendo, assim, os seus efeitos susceptíveis de aproveitar a todos os credores, aquela detém um marcado carácter pessoal e dirige-se, como é seu timbre, à exclusiva tutela do interesse do credor impugnante (…), desviando-se daquilo que, em rigor, se imporia em face da natureza universal do processo de insolvência, ou seja, a par conditio creditorum” [Assim, o Ac. do STJ de 19/12/2018, processo n.º 930/13.0TVPRT.P1.S1, Rel. Catarina Serra, [...]. Na doutrina, por ex., v. Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência… [...]., sub art. 127º, pág. 544, Maria do Rosário Epifânio, Manual de direito da Insolvência, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, pág. 263]. Na verdade, o decretamento da resolução em benefício da massa pelo administrador da insolvência preclude a possibilidade de os credores da insolvência recorrerem à impugnação pauliana dos actos abrangidos por essa resolução, nos termos do n.º 1 do art. 127º. A contrario sensu, os credores da insolvência não estão impedidos de recorrer à impugnação pauliana, desde que e enquanto não se verificar a resolução em benefício da massa insolvente [Gravato Morais, Resolução em benefício da massa insolvente, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 205; Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência… cit., sub art. 127º, pág. 543; Menezes Leitão, Direito da insolvência, 8.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, págs. 233-234 (com o acrescento útil: “A omissão do administrador da insolvência em promover a resolução em benefício da massa insolvente tenderá a estimular as acções de impugnação paulianas individuais até porque o prazo para as mesmas (art. 618º CC) é consideravelmente superior àquele que se prevê para a resolução (art. 123º)”); Maria de Fátima Ribeiro, “Um confronto…”, loc cit., pág. 167].
Por isso, o art. 127º, 2, «estabelece que estas acções, pendentes à data da declaração de insolvência ou propostas anteriormente[,] não serão apensas ao processo de insolvência e, em caso de resolução do acto pelo administrador da insolvência, só prosseguirão os seus termos se tal resolução vier a ser declarada ineficaz por sentença definitiva, a qual terá força vinculativa no âmbito daquelas acções quanto às questões que tenha apreciado, desde que não ofenda caso julgado de formação anterior». E é neste âmbito de aplicação, respeitante à articulação entre a resolução em benefício da massa insolvente e as impugnações paulianas de actos de transmissão do devedor insolvente “resolúveis” (nos termos do art. 120º, 1 e 2, do CIRE), que se aplica o art. 127º, 2. Fora, portanto, do âmbito de factos elencados nos autos, em que se mobiliza a impugnação, por terceiro que não é credor da insolvência, de acto de aquisição do devedor insolvente- adquirente de bem que se repercute no valor da massa insolvente. Aqui, a apensação do processo de impugnação pauliana estriba-se a título próprio no art. 85º, 1, do CIRE: «Declarada a insolvência, todas as ações em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, e todas as ações de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo». Assim, também por aqui soçobra o Recorrente na invocação da violação desse art. 127º, 2, do CIRE, para fundar a necessidade de retirar o bem-alvo da massa insolvente da “BB” e evitar a concorrência dos credores da sua insolvência.
Não obstante.
O recurso ao regime do art. 127º, que finaliza a disciplina da resolução de actos em benefício da massa insolvente e foi invocado pelo Recorrente, não pode deixar fora de análise o respectivo n.º 3. Que reza assim: «Julgada procedente a ação de impugnação [prevista no art. 127º, 2], o interesse do credor que a tenha instaurado é aferido, para efeitos do artigo 616.º do Código Civil, com abstração das modificações introduzidas ao seu crédito por um eventual plano de insolvência ou de pagamentos». Esta prescrição, aplicada literal e sistematicamente aos actos impugnados em que o devedor-insolvente é transmitente e o impugnante pauliano é seu credor, impõe que o crédito do impugnante pauliano “é considerado, quanto à medida do direito à restituição, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do art. 616º, tal como tenha sido reclamado e verificado no processo de insolvência” [Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência… cit., sub art. 127º, pág. 544 [...]]. E mais: “Na aferição do interesse do credor, o preceito (…) atende ao disposto no art. 616º do C. Civ., nomeadamente ao seu n.º 4, quando estabelece que a impugnação só aproveita ao impugnante” [Ainda Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência… cit., sub art. 127º, pág. 544]. Da letra da norma, assim, tendo em conta que o bem continua na titularidade do adquirente do insolvente, “parece resultar que a procedência de uma acção pauliana não obsta a que os seus efeitos se produzam relativamente a bens que se encontrem na massa insolvente, a fim de satisfazer o credor que deles beneficie – e que é apenas aquele que tenha intentado a acção em causa” [Maria de Fátima Ribeiro, “Um confronto…”, loc. cit., pág. 169], “com a consequente violação do princípio da igualdade dos credores em caso de insolvência” [Assim adverte Menezes Leitão, Direito da insolvência cit., pág. 234]. Por isso, em homenagem ao princípio par conditio creditorum, os bens relativamente a cuja alienação esteja pendente acção de impugnação pauliana quando o devedor é declarado insolvente devem regressar a título excepcional à massa insolvente, se a acção pauliana triunfar, e o credor autor da acção concorrerá nessas circunstâncias patrimonialmente acrescidas com os restantes credores da insolvência [Seguimos o legado da precípua jurisprudência adoptada nesta 6.º Secção pelo Ac. do STJ de 11/7/2013, processo n.º 283/09.0TBVFR-C.P1.S1, Rel.: Fonseca Ramos, in www.dgsi.pt: “Nos casos em que os executados são declarados insolventes na pendência de acção de impugnação pauliana, por razões de justiça material e respeito pela execução universal que a insolvência despoleta, os bens alienados e objecto de acção de impugnação pauliana, devem, excepcionalmente, regressar ao património do devedor, para, integrando a Massa Insolvente[,] responderem perante os credores da insolvência, sendo o crédito do exequente e Autor triunfante na acção de impugnação pauliana, tratado em pé de igualdade [com a ressalva do estatuído no art. 127º, n.º 3, do CIRE] com os demais credores dos inicialmente executados, ora insolventes (…)”. Convergente: Maria de Fátima Ribeiro, “Um confronto…”, loc. cit., pág. 170].
Ora, o art. 127º, 3, tem a aptidão para, em face da manifesta semelhança de situações e da justificação do caso previsto na lei, se aplicar analogicamente às acções paulianas pendentes e aos actos nelas impugnados em que o insolvente é o adquirente na transmissão visada com êxito pela impugnação pauliana pendente à data da declaração de insolvência e, ainda para mais, o bem-alvo já se encontra apreendido legitimamente na massa insolvente.
É uma solução equilibrada e que concorre, por fim, para a razão de a sentença recorrida ter decretado que o meio judicial da separação e restituição de bens não era o próprio nem o adequado para a pretensão do Autor, aqui Recorrente.
Por um lado, tem o alcance de corresponder à melhor opção – como vimos ser, em geral, no conflito entre o credor impugnante e os credores do adquirente[...] – de os credores-impugnantes paulianos, mesmo não sendo credores do insolvente, concorrerem em igualdade com os demais credores da insolvência, com o consequente impedimento de, após a declaração da insolvência de um sujeito, se permitir que algum credor obtenha na satisfação do seu crédito uma posição privilegiada ou mais eficaz do que a que assiste os restantes credores da insolvência [Sobre o ponto, v. João Cura Mariano, Impugnação pauliana cit., pág. 269]. Por outro, não permite claudicar ao credor-impugnante a garantia conferida pelo art. 616º, 1 e 4, do CCiv., desde logo pelo reconhecimento expresso que tal analogia e aplicação ao caso do art. 127º, 3, do CIRE permite na situação do adquirente do bem se ter declarado judicialmente insolvente, e, ainda que não seja originariamente credor do insolvente, ser tratado como credor da insolvência, à luz do art. 47º, 1, do CIRE, pois nessa categoria se incluem como tal os «titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração» [Neste sentido, v. Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência… cit., sub art. 47º, pág. 306, Alexandre Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, págs. 272, 276] (v. ainda o art. 127º, 1, in fine, e 4, CIRE)[...]."
Quid juris?
Em primeiro lugar, bem visto o alcance das razões do Recorrente, importa saber, partindo da premissa de que os bens afectados pela impugnação pauliana procedente se mantêm, em regra, no património do adquirente, aí sendo executados e conservados pelo credor impugnante[...], se o alcance do efeito ineficácia declarada pelo tribunal na relação com os credores do terceiro adquirente, autêntica vexata quaestio no contexto dos efeitos da impugnação pauliana. Isto é, ou esse alcance “apenas se limita a permitir que o credor impugnante continue a contar com o bem alienado na garantia geral do seu crédito, podendo executá-lo no património do adquirente, mantendo-se este aí para todos os efeitos, incluindo a sua integração na função de garantia desempenhada no novo património onde se insere. Ou então a ineficácia é mais profunda e impõe que esses bens, além de continuarem ao alcance do credor activo do seu alienante, também não possam garantir a satisfação dos créditos do seu adquirente, na medida em que sejam necessários ao pagamento do credor impugnante” [João Cura Mariano, Impugnação pauliana [...] págs. 266-267]. O azimute deve ser encontrado num equilíbrio razoável de interesses, uma vez que a protecção do credor impugnante não pode ser feita com o sacrifício dos credores do adquirente (que, aliás, passaram a contar com um reforço da garantia patrimonial dos seus créditos): “[n]ão sofrendo o acto impugnado de qualquer vício que afecte a sua validade, não devem estes [credores do adquirente], totalmente alheios ao prejuízo sofrido pelo credor impugnante, verem diminuída, injustificadamente, a sua garantia. Do mesmo modo que são poupados o próprio adquirente e os subadquirentes de boa fé, quando o acto envolve da sua parte um sacrifício patrimonial, por maioria de razão, também a impugnação pauliana não deve afectar os direitos patrimoniais dos credores do adquirente atingido pelo exercício desta figura. (…) A solução contrária resultaria na atribuição de um direito de preferência ao credor impugnante, semelhante ao que caracteriza direitos de garantia específicos, como a hipoteca, sem que o legislador tivesse consagrado expressamente esse direito. O credor impugnante que, como credor comum, apenas gozava da garantia geral sobre o património do devedor, (…) passava a dispor de uma garantia específica sobre os concretos bens alienados. A protecção da sua posição não só repunha a garantia afectada, como a reforçava excessivamente, criando uma preferência especial que permitia ao credor impugnante pagar-se com o produto da venda judicial destes bens, com prevalência aos demais credores (…)” [João Cura Mariano, Impugnação pauliana cit., págs. 267-268]. Não se sustenta tal prevalência, envolvendo a criação de uma preferência legal que o art. 616º, 1, do CCiv. não constitui ex professo, quando, nos termos vistos, “a impugnação pauliana tem a veste de restituição de um enriquecimento, nos casos em que o bem alineado já não se encontra no património do adquirente”, e “o credor impugnante tem um direito de crédito sobre aquele em tudo igual aos restantes credores comuns”[João Cura Mariano, Impugnação pauliana cit., pág. 268]. “Dir-se-á que o beneficiário da impugnação é, afinal, um credor do adquirente como qualquer outro. E também os credores pessoais deste podem ter confiado na regularidade da aquisição, contando com os referidos bens. Assim, afigura-se preferível a doutrina que subordina o credor que exercer a impugnação pauliana à concorrência, nos termos gerais, dos restantes credores comuns do terceiro obrigado à restituição”[Almeida Costa, Direito das obrigações [...], pág. 871 (sublinhado nosso), no âmbito do vertido nas págs. 869 e ss, com referência útil a doutrina (dividida) e jurisprudência; concordante: Menezes Leitão, Direito das obrigações, volume II [...], nt. 622 – págs. 321-322.].
Vejamos se tal ajuda à discussão do segmento discursivo da parcela analisada das Conclusões do Recorrente.
Os credores da “BB” passaram a ser credores da insolvência da “BB”, de acordo com os termos e conteúdo do art. 47º, 1 a 3, do CIRE. E o aqui Autor, à partida, não é considerado credor daquela insolvência, pois era sim credor da contraparte vendedora da compradora “BB”, depois declarada insolvente. Mas no património desta, porém, encontrava-se a garantia de execução da impugnação pauliana decretada, correspondente ao bem depois apreendido na massa insolvente da “BB”. Assim, de acordo com a visão adoptada, estariam em concorrência o credor do transmitente-impugnante pauliano, aqui Autor-Recorrente, e os credores da insolvência, em face do bem transmitido para o adquirente, depois insolvente, apreendido na massa como efeito da insolvência. É essa concorrência que o Recorrente pretende evitar com a procedência da acção, uma vez que poderá lesar a garantia concedida pela impugnação pauliana procedente.
Sendo certo que, nos autos, a sentença da impugnação pauliana é posterior à sentença de declaração de insolvência do adquirente do bem cuja aquisição foi declarada ineficaz em relação ao credor do transmitente, isto é, que a impugnação pauliana estava pendente de decisão uma vez declarada a insolvência da adquirente “BB”, o Recorrente chama à colação, para esse efeito de invocar a primazia do seu crédito perante os credores da insolvência da “BB” – nas suas palavras, invocar a oponibilidade da ineficácia decidida pela decisão judicial da acção pauliana em face dos credores da insolvência –, por mor da condição de insolvente do adquirente, o art. 127º, 2, do CIRE, enquanto inibidor da apensação ao processo de insolvência pertinente das acções de impugnação pauliana pendentes à data da declaração de insolvência (ou propostas ulteriormente). Este preceito, tendo em vista a sua dilucidação, integra-se na disciplina da resolução de actos prejudiciais em benefício da massa insolvente (arts. 120º-127º CIRE).
Nesse regime do CIRE é pacífico que, dentro dos instrumentos de reacção contra essa prejudicialidade negocial, “a impugnação pauliana constitui um instrumento subsidiário em relação à resolução em benefício da massa. Bem se compreende que assim seja. Enquanto esta determina a reversão dos bens ou valores para a massa insolvente, sendo, assim, os seus efeitos susceptíveis de aproveitar a todos os credores, aquela detém um marcado carácter pessoal e dirige-se, como é seu timbre, à exclusiva tutela do interesse do credor impugnante (…), desviando-se daquilo que, em rigor, se imporia em face da natureza universal do processo de insolvência, ou seja, a par conditio creditorum” [Assim, o Ac. do STJ de 19/12/2018, processo n.º 930/13.0TVPRT.P1.S1, Rel. Catarina Serra, [...]. Na doutrina, por ex., v. Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência… [...]., sub art. 127º, pág. 544, Maria do Rosário Epifânio, Manual de direito da Insolvência, 7.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, pág. 263]. Na verdade, o decretamento da resolução em benefício da massa pelo administrador da insolvência preclude a possibilidade de os credores da insolvência recorrerem à impugnação pauliana dos actos abrangidos por essa resolução, nos termos do n.º 1 do art. 127º. A contrario sensu, os credores da insolvência não estão impedidos de recorrer à impugnação pauliana, desde que e enquanto não se verificar a resolução em benefício da massa insolvente [Gravato Morais, Resolução em benefício da massa insolvente, Almedina, Coimbra, 2008, pág. 205; Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência… cit., sub art. 127º, pág. 543; Menezes Leitão, Direito da insolvência, 8.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, págs. 233-234 (com o acrescento útil: “A omissão do administrador da insolvência em promover a resolução em benefício da massa insolvente tenderá a estimular as acções de impugnação paulianas individuais até porque o prazo para as mesmas (art. 618º CC) é consideravelmente superior àquele que se prevê para a resolução (art. 123º)”); Maria de Fátima Ribeiro, “Um confronto…”, loc cit., pág. 167].
Por isso, o art. 127º, 2, «estabelece que estas acções, pendentes à data da declaração de insolvência ou propostas anteriormente[,] não serão apensas ao processo de insolvência e, em caso de resolução do acto pelo administrador da insolvência, só prosseguirão os seus termos se tal resolução vier a ser declarada ineficaz por sentença definitiva, a qual terá força vinculativa no âmbito daquelas acções quanto às questões que tenha apreciado, desde que não ofenda caso julgado de formação anterior». E é neste âmbito de aplicação, respeitante à articulação entre a resolução em benefício da massa insolvente e as impugnações paulianas de actos de transmissão do devedor insolvente “resolúveis” (nos termos do art. 120º, 1 e 2, do CIRE), que se aplica o art. 127º, 2. Fora, portanto, do âmbito de factos elencados nos autos, em que se mobiliza a impugnação, por terceiro que não é credor da insolvência, de acto de aquisição do devedor insolvente- adquirente de bem que se repercute no valor da massa insolvente. Aqui, a apensação do processo de impugnação pauliana estriba-se a título próprio no art. 85º, 1, do CIRE: «Declarada a insolvência, todas as ações em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, e todas as ações de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo». Assim, também por aqui soçobra o Recorrente na invocação da violação desse art. 127º, 2, do CIRE, para fundar a necessidade de retirar o bem-alvo da massa insolvente da “BB” e evitar a concorrência dos credores da sua insolvência.
Não obstante.
O recurso ao regime do art. 127º, que finaliza a disciplina da resolução de actos em benefício da massa insolvente e foi invocado pelo Recorrente, não pode deixar fora de análise o respectivo n.º 3. Que reza assim: «Julgada procedente a ação de impugnação [prevista no art. 127º, 2], o interesse do credor que a tenha instaurado é aferido, para efeitos do artigo 616.º do Código Civil, com abstração das modificações introduzidas ao seu crédito por um eventual plano de insolvência ou de pagamentos». Esta prescrição, aplicada literal e sistematicamente aos actos impugnados em que o devedor-insolvente é transmitente e o impugnante pauliano é seu credor, impõe que o crédito do impugnante pauliano “é considerado, quanto à medida do direito à restituição, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do art. 616º, tal como tenha sido reclamado e verificado no processo de insolvência” [Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência… cit., sub art. 127º, pág. 544 [...]]. E mais: “Na aferição do interesse do credor, o preceito (…) atende ao disposto no art. 616º do C. Civ., nomeadamente ao seu n.º 4, quando estabelece que a impugnação só aproveita ao impugnante” [Ainda Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência… cit., sub art. 127º, pág. 544]. Da letra da norma, assim, tendo em conta que o bem continua na titularidade do adquirente do insolvente, “parece resultar que a procedência de uma acção pauliana não obsta a que os seus efeitos se produzam relativamente a bens que se encontrem na massa insolvente, a fim de satisfazer o credor que deles beneficie – e que é apenas aquele que tenha intentado a acção em causa” [Maria de Fátima Ribeiro, “Um confronto…”, loc. cit., pág. 169], “com a consequente violação do princípio da igualdade dos credores em caso de insolvência” [Assim adverte Menezes Leitão, Direito da insolvência cit., pág. 234]. Por isso, em homenagem ao princípio par conditio creditorum, os bens relativamente a cuja alienação esteja pendente acção de impugnação pauliana quando o devedor é declarado insolvente devem regressar a título excepcional à massa insolvente, se a acção pauliana triunfar, e o credor autor da acção concorrerá nessas circunstâncias patrimonialmente acrescidas com os restantes credores da insolvência [Seguimos o legado da precípua jurisprudência adoptada nesta 6.º Secção pelo Ac. do STJ de 11/7/2013, processo n.º 283/09.0TBVFR-C.P1.S1, Rel.: Fonseca Ramos, in www.dgsi.pt: “Nos casos em que os executados são declarados insolventes na pendência de acção de impugnação pauliana, por razões de justiça material e respeito pela execução universal que a insolvência despoleta, os bens alienados e objecto de acção de impugnação pauliana, devem, excepcionalmente, regressar ao património do devedor, para, integrando a Massa Insolvente[,] responderem perante os credores da insolvência, sendo o crédito do exequente e Autor triunfante na acção de impugnação pauliana, tratado em pé de igualdade [com a ressalva do estatuído no art. 127º, n.º 3, do CIRE] com os demais credores dos inicialmente executados, ora insolventes (…)”. Convergente: Maria de Fátima Ribeiro, “Um confronto…”, loc. cit., pág. 170].
Ora, o art. 127º, 3, tem a aptidão para, em face da manifesta semelhança de situações e da justificação do caso previsto na lei, se aplicar analogicamente às acções paulianas pendentes e aos actos nelas impugnados em que o insolvente é o adquirente na transmissão visada com êxito pela impugnação pauliana pendente à data da declaração de insolvência e, ainda para mais, o bem-alvo já se encontra apreendido legitimamente na massa insolvente.
É uma solução equilibrada e que concorre, por fim, para a razão de a sentença recorrida ter decretado que o meio judicial da separação e restituição de bens não era o próprio nem o adequado para a pretensão do Autor, aqui Recorrente.
Por um lado, tem o alcance de corresponder à melhor opção – como vimos ser, em geral, no conflito entre o credor impugnante e os credores do adquirente[...] – de os credores-impugnantes paulianos, mesmo não sendo credores do insolvente, concorrerem em igualdade com os demais credores da insolvência, com o consequente impedimento de, após a declaração da insolvência de um sujeito, se permitir que algum credor obtenha na satisfação do seu crédito uma posição privilegiada ou mais eficaz do que a que assiste os restantes credores da insolvência [Sobre o ponto, v. João Cura Mariano, Impugnação pauliana cit., pág. 269]. Por outro, não permite claudicar ao credor-impugnante a garantia conferida pelo art. 616º, 1 e 4, do CCiv., desde logo pelo reconhecimento expresso que tal analogia e aplicação ao caso do art. 127º, 3, do CIRE permite na situação do adquirente do bem se ter declarado judicialmente insolvente, e, ainda que não seja originariamente credor do insolvente, ser tratado como credor da insolvência, à luz do art. 47º, 1, do CIRE, pois nessa categoria se incluem como tal os «titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração» [Neste sentido, v. Carvalho Fernandes/João Labareda, Código da Insolvência… cit., sub art. 47º, pág. 306, Alexandre Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2016, págs. 272, 276] (v. ainda o art. 127º, 1, in fine, e 4, CIRE)[...]."
[MTS]