"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



14/10/2020

Jurisprudência 2020 (72)


Usucapião;
reconvenção; preclusão*


1. O sumário de STJ 6/2/2020 (428.17.7T8FLG.A.P1.S1) é o seguinte:

I. Se os ora reconvintes podiam, em ação anterior em que eram réus, invocar, como exceção, a usucapião relativa ao direito de propriedade aqui em discussão e não o fizeram, vale contra eles a preclusão e inerente autoridade do caso julgado relativamente ao pedido reconvencional que agora deduzem de declaração de aquisição, por usucapião, de tal direito.

II. Assim não seria se só depois da apresentação da contestação tivesse ficado preenchido o prazo da posse prescricional.

III. Mas, para este efeito, releva contra eles que nesta ação tenham referido que a posse já dura há mais de 30 anos, ou seja, que o prazo máximo havia decorrido aquando da apresentação daquele articulado.


2. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"9. Ante as conclusões das alegações, a questão que se nos depara consiste em saber se:

Releva a autoridade do caso julgado porque o ora recorrido podia, no outro processo, ter invocado, como exceção, a usucapião que agora invoca. [...]

11. [...] Nos termos do artigo 489.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, toda a defesa deve ser deduzida na contestação.

Está aqui o essencial desta mencionada figura, na vertente que ora nos importa. 

Como logo se consigna naquele n.º1 e, bem assim, no n.º 2, este princípio não é rígido, mas nenhuma das ressalvas cabe aqui.

O seu conteúdo não se resume aos meios de defesa que o réu deduziu, mas “mesmo aos que ele não chegou a deduzir e até aos que ele poderia ter deduzido com base num direito seu (por ex.: ser ele, Réu, o proprietário do prédio reivindicado). Neste sentido, pelo menos vale a máxima, segundo a qual o caso julgado “cobre o deduzido e o dedutível” ou “tantum judicatum quantum disputatum vel disputari debet”.

“Por ex.: Julgada procedente uma acção de reivindicação, não pode o Réu vir depois com uma nova acção dessas contra o Autor, fundado em que tinha adquirido por usucapião a propriedade do respectivo prédio. Se a nova ação pudesse triunfar e valesse a correspondente decisão, seria contrariada a força do caso julgado que cabe à sentença anterior. Tirava-se ao Autor um bem que a mesma sentença lhe havia dado.” (Manuel de Andrade, NEPC, 324).

Esta posição está em sintonia com o entendimento de Castro Mendes, Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, 178 e tem sido recebida reiteradamente por este Tribunal (Cfr-se, para além do acabado de citar, os Ac.s de 6.7.2006, revista n.º 1461/06, 4.3.2008, revista n.º 4620/07, 3.12.2009, 8.2010, processo n.º 2294/06.0TVPRT.S1 e 21.4.2010, processo n.º 6647/07.0TBSTB.E1.S1, todos com texto disponível no mesmo sítio).

A abrangência da preclusão relativamente aos meios de defesa que o réu “poderia ter deduzido” é válida, quer se pense em defesa por exceção, quer em defesa reconvencional (assim, Luís Mesquita, Reconvenção e Excepção em Processo Civil, 446 e seguintes, em especial, 451), pelo que não importa tecer considerações sobre o modo por que poderiam ter sido invocadas, quer a usucapião, quer a acessão.

A construção que vimos trazendo cederia se, ao tempo da defesa na primeira ação, se não verificassem os requisitos destas figuras.

Foi ela instaurada em 31.3.2008 (certidão de folhas 119).

Na presente, a autora invoca a usucapião, fundamentando-a na ocupação do edifício, “desde Fevereiro de 1990…à vista e com conhecimento de toda a gente, designadamente da ré, sem interrupção temporal e sem oposição de ninguém, designadamente da ré e dos anteriores proprietários, na convicção de… exercer sobre esse mesmo prédio urbano um pleno e exclusivo direito de propriedade e de não violar qualquer direito de outrem, designadamente da mesma ré”.

Conforme o alegado, estamos perante posse de boa fé, com prazo prescricional de 15 anos (artigos 1260.º, n.º1 e 1296.º do Código Civil), já excutidos em 2008.

Quanto à acessão, a invocação da data de Fevereiro de 1990 é concludente. 

12. De acordo com a construção que fizemos, a ré sofre as consequências de não ter carreado para o primitivo processo todos os meios de defesa possíveis, atenta a pretensão da autora. Diferentemente, esta pôde vir a juízo com uma fundamentação relativamente à sua pretensão e, se a ação naufragasse, poderia vir de novo a juízo com uma fundamentação diferente, sem que contra ela se pudesse, validamente, invocar o caso julgado por preclusão.”

*3. [Comentário] a) O acórdão tirou a conclusão adequada, mas, salvo o devido respeito, de uma forma discutível.

O STJ qualifica a usucapião como uma excepção peremptória. 
 
São mais que legítimas as dúvidas sobre a possibilidade da qualificação da usucapião como excepção peremptória. Uma excepção peremptória é um facto impeditivo, modificativo ou extintivo (art. 576.º, n.º 3, CPC). Em contrapartida, a usucapião é um "modo de aquisição" da propriedade (art. 1316.º CC). Não é nada claro que um facto constitutivo possa ser transformado num facto impeditivo, modificativo ou extintivo e, portanto, numa excepção peremptória.

É precisamente por aqui que passa a distinção entre a excepção peremptória e a reconvenção. A excepção destina-se a destruir o que o autor pretende e obter a improcedência da causa; a reconvenção a construir algo a favor do réu e a conseguir uma decisão de procedência a favor desta parte.

Note-se que o réu que invoca a aquisição da propriedade por usucapião pode até nem sequer contestar o pedido de reivindicação do autor, dado que a procedência da aquisição por usucapião -- que é uma aquisição originária -- basta para destruir a propriedade do autor. Talvez seja este aspecto "destrutivo" da usucapião que leva, de forma equívoca, a tratá-la como excepção.  

Importa ainda salientar que este efeito "destrutivo" só opera como consequência do efeito aquisitivo característico da usucapião. A só perde a sua propriedade sobre x, porque B adquiriu, por usucapião, a propriedade sobre o mesmo bem. A usucapião só produz um efeito extintivo como consequência de um correspondente efeito aquisitivo. Portanto, se sem este efeito aquisitivo não se produz aquele efeito extintivo, a usucapião nunca pode ser um facto extintivo. 

Em conclusão: sendo a usucapião um facto constitutivo, deve ser invocada por via de reconvenção.

b) Nesta base, o que, salvo o devido respeito, o STJ deveria ter entendido era que o réu tinha o ónus de ter deduzido na primeira acção um pedido reconvencional baseado na usucapião. Não é nada de novo: sempre se tem entendido que, quando a reconvenção visa conseguir o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter (art. 266.º, n.º 2, al. d), CPC) -- in casu, o reconhecimento da propriedade --, o réu tem o ónus de deduzir o pedido reconvencional.

Assim, não era necessário recorrer equivocadamente à figura da excepção peremptória para concluir que os réus tinham o ónus de ter invocado a usucapião na primeira acção.

MTS