"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/07/2024

Jurisprudência 2023 (205)


Articulado superveniente; admissibilidade;
confisão ficta; efeitos


1. O sumário de RP 23/10/2023 (448/23.2T8PRT.P1) é o seguinte:

I - Ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 567º do Código de Processo Civil é legalmente admissível uma fundamentação sumária por meio de uma remissão para os fundamentos de facto e de direito vertidos na petição inicial, desde que os mesmos sejam suficientes, isto é, desde que nesse articulado constem os factos essenciais que integram a causa de pedir e bem assim as razões de direito que servem de fundamento à ação.

II - A incoerência de fundamentos jurídicos ou a impertinência de normativos invocados na decisão recorrida não integra a nulidade da sentença por falta de fundamentação mas sim, a ocorrer, um típico erro de julgamento.

III - A dedução da pretensão de reforma da sentença fora de recurso interposto, sendo a sentença reformanda recorrível, não pode ser havida como uma renúncia tácita ao recurso, constituindo antes um erro no uso de meio processual.

IV - Proferida a sentença é legalmente inadmissível a introdução de novos factos mediante articulado superveniente, pois que, como bem se vê do nº 3 do artigo 588º do Código de Processo Civil, o termo final para o oferecimento de tal peça processual é a audiência final que necessariamente precede a sentença.

V - Sempre que a fixação da matéria de facto relevante para a decisão final sob censura decorreu da inobservância pelos demandados do ónus de contestar (veja-se o nº 1 do artigo 567º do Código de Processo Civil), há uma confissão ficta da factualidade vertida na petição inicial, admitindo-se, em tese, que se discuta a reunião dos pressupostos legais para que opere esta confissão ficta, nomeadamente, a indicação da cominação aos réus aquando da citação ou, eventualmente, a ocorrência de alguma ou algumas das exceções previstas no artigo 568º do Código de Processo Civil ou até do alcance de tal confissão ficta, mas está de todo afastada uma verdadeira impugnação da decisão da matéria de facto, como previsto no artigo 662º do Código de Processo Civil, já que no caso dos autos não há uma tal decisão mas sim e apenas a confissão ficta da matéria contida na petição inicial em consequência da inobservância de um ónus processual pelos demandados.

VI - A compensação por danos não patrimoniais é fixada equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º do Código Civil.

VII - Pela sua própria natureza, os danos não patrimoniais não são passíveis de reconstituição natural e, por outro lado, nem em rigor são indemnizáveis mas apenas compensáveis pecuniariamente.

VIII - Apenas são compensáveis os danos não patrimoniais merecedores de tutela jurídica, estando afastados do círculo dos danos indemnizáveis os simples incómodos.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3. Fundamentos
3.1 Da nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação e por omissão de pronúncia

Os recorrentes invocam a nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação de facto e de direito no que respeita a condenação do réu ao pagamento de compensação por danos não patrimoniais e por omissão de pronúncia por não se ter pronunciado sobre o pedido referente a articulado superveniente que qualificam de supletivo e formulado em sede de requerimento para reforma da sentença.

Cumpre apreciar e decidir. [...]

Debrucemo-nos agora sobre a nulidade por omissão de pronúncia, patologia que é imputada à decisão de reforma da sentença sob censura.

A decisão de reforma parcial da sentença, como se verificou no caso dos autos, integra-se na sentença reformada (artigo 617º, nº 2, do Código de Processo Civil) [---], irrelevando, a nosso ver, a circunstância de essa pretensão e decisão terem ocorrido fora de recurso interposto, como deveria ter sucedido (veja-se o nº 2 do artigo 616º do Código de Processo Civil e os nºs 1 e 2, do artigo 617º do mesmo diploma legal). Esta patologia deveria ter sido conhecida pelo tribunal recorrido e, não o tendo sido, cumpre-nos apenas constatar a anomalia.

Além disso, afigura-se-nos que a dedução da pretensão de reforma da sentença fora de recurso interposto, pois que a sentença recorrida era recorrível, não pode ser havida como uma renúncia tácita ao recurso, constituindo antes um erro jurídico a que o tribunal recorrido deu guarida ao conhecer dessa pretensão (veja-se o nº 3 do artigo 193º do Código de Processo Civil), em vez de convidar os ora recorrentes à dedução dessa pretensão através do recurso ao meio processual próprio [---].

A omissão de pronúncia na decisão de reforma resultaria, na perspetiva dos recorrentes, da circunstância de o tribunal recorrido ter omitido o despacho liminar de admissão do articulado superveniente.

No despacho em que admitiu o recurso, o tribunal a quo sustenta não se verificar esta nulidade porque, “uma vez que, por despacho de 23/03, foi determinado que os autos aguardassem o decurso de prazo de resposta por parte da autora, o que pressupõe que aquele requerimento tenha sido admitido, sendo esse (e apenas esse) o pedido formulado”.

Será assim?

Nos termos do disposto no nº 4 do artigo 588º do Código de Processo Civil, o juiz profere despacho liminar sobre a admissão do articulado superveniente, rejeitando-o quando, por culpa da parte, for apresentado fora de tempo, ou quando for manifesto que os factos não interessam à boa decisão da causa; ou ordenando a notificação da parte contrária para, querendo, responder em dez dias, observando-se quanto à resposta o disposto no artigo 587º do mesmo diploma legal.

Da previsão legal que se acaba de citar resulta que tem de haver um despacho liminar expresso de admissão ou não do articulado superveniente e que o prazo para responder ao articulado superveniente pela parte contrária só começa a correr a partir da notificação para o efeito determinada judicialmente.

Assim, para efeitos de resposta ao articulado superveniente não importa a notificação eletrónica da parte contrária realizada pelo apresentante desse articulado, apenas relevando a execução da ordem judicial de notificação da contraparte a fim de, querendo, responder, ordem proferida depois da admissão liminar daquele articulado.

Aliás, parece que nem o tribunal recorrido leva a sério a sua argumentação pois que se acaso entendesse que tinha já admitido liminarmente o articulado superveniente e que o prazo para resposta da parte contrária se iniciara com a notificação eletrónica desse articulado via citius, ficaria por explicar por que razão nada decidiu sobre essa matéria quando, nessa perspetiva, há já muito expirara o prazo para a resposta.

Parece absurdo entender, como parece sustentar o tribunal a quo, que com o oferecimento de um articulado superveniente e requerendo-se apenas a sua admissão, admitido esse articulado, de forma implícita, como entende o tribunal recorrido, nada mais haveria a decidir sobre essa matéria.

Então, se assim fosse, para que serviria o articulado superveniente?

Na lógica do tribunal recorrido e se de facto assim fosse, dada a proibição da prática de atos inúteis no processo (artigo 130º do Código de Processo Civil), em vez de uma alegada admissão implícita do articulado superveniente impunha-se a sua imediata rejeição já que, nessa perspetiva, para nada serviria a não ser para engrossar o processo...

Pelo que precede, entende-se que o tribunal recorrido omitiu na decisão de reforma da sentença recorrida despacho liminar sobre o articulado superveniente, verificando-se a nulidade parcial da decisão recorrida por omissão de pronúncia, o que, contudo, por força do disposto no nº 1 do artigo 665º do Código de Processo Civil, não obsta ao conhecimento do objeto da apelação no que esta questão respeita.

Cumpre assim proferir despacho liminar sobre o articulado superveniente “enxertado” no requerimento para reforma da sentença.

Estabelece-se no nº 1 do artigo 611º do Código de Processo Civil que, sem prejuízo das restrições estabelecidas noutros preceitos, designadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir, a sentença deve tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à instauração da ação, de modo a que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.

O instrumento processual para alcançar este desiderato legal é a figura do articulado superveniente.

De acordo com o disposto no nº 1 do artigo 588º do Código de Processo Civil, “[o]s factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitam, até ao encerramento da discussão.”

A superveniência dos factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito pode ser objetiva, ou seja, quando aqueles se verificam após o termo do prazo para oferecimento dos articulados permitidos em cada forma de processo ou subjetiva, sempre que respeite a factos ocorridos anteriormente mas de que a parte apenas teve conhecimento depois de terminarem os prazos para a apresentação dos articulados na respetiva forma processual (artigo 588º nº 2 do Código de Processo Civil).

Tem-se entendido que o articulado superveniente pode ser usado para completar a causa de pedir inicial [Neste sentido veja-se Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3ª Edição, Almedina 2022, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, página 723, anotação 6. [...]].

Tratando-se de factos subjetivamente supervenientes, a parte que oferece o articulado superveniente tem de alegar factos e oferecer prova dessa superveniência (veja-se a parte final do nº 2 do artigo 588º do Código de Processo Civil).

“O novo articulado em que se aleguem factos supervenientes é oferecido:
a) Na audiência prévia, quando os factos hajam ocorrido ou sido conhecidos até ao respetivo encerramento;
b) Nos 10 dias posteriores à notificação da data designada para a realização da audiência final, quando não se tenha realizado a audiência prévia;
c) Na audiência final, se os factos ocorreram ou a parte deles teve conhecimento em data posterior às referidas nas alíneas anteriores” (nº 3 do artigo 588º do Código de Processo Civil).

No caso dos autos, por força da revelia absoluta operante dos ora recorrentes, a tramitação processual foi abreviada, sendo proferida sentença sem que se tenha realizado audiência final.

Ora, proferida a sentença é legalmente inadmissível a introdução de novos factos mediante articulado superveniente, pois que como bem se vê do nº 3 do artigo 588º do Código de Processo Civil, o termo final para o oferecimento de tal peça processual é a audiência final que necessariamente precede a sentença.

Pelo exposto, por ostensivamente intempestivo, o articulado superveniente oferecido pelos recorrentes com o requerimento de reforma da sentença recorrida deve ser liminarmente indeferido, o que se decide.

3.2 Da alteração da decisão da matéria de facto

Os recorrentes pugnam pela alteração da decisão da matéria de facto, rectius pela sua ampliação, incluindo-se nos factos provados da fundamentação de facto da sentença a seguinte matéria:

- “As partes celebraram acordo nos termos do qual foi posto fim ao litígio, com o pagamento pelo Autor à Ré de € 265,50 e entrega pelo Autor à Ré da B...;
 
O Autor, no âmbito do referido acordo, declarou que “não existem quaisquer dívidas ou obrigações pendentes de parte a parte nesta data”.

Cumpre apreciar e decidir.

A pretensão de ampliação da decisão da matéria de facto formulada pelos recorrentes baseia-se no articulado superveniente que apresentaram em sede de requerimento para reforma da sentença recorrida e na prova documental oferecida com essa peça processual e de novo junta com a sua apelação, articulado superveniente e prova documental que não foram admitidos nesta instância.

Neste circunstancialismo processual, esta pretensão recursória está irremediavelmente votada ao fracasso total.

Ainda que assim não fosse, importa não perder de vista que a fixação da matéria de facto relevante para a decisão final sob censura decorreu da inobservância pelos ora recorrentes do ónus de contestar (veja-se o nº 1 do artigo 567º do Código de Processo Civil), havendo assim uma confissão ficta dos recorrentes da factualidade vertida na petição inicial [Discute-se na doutrina se são ou não aplicáveis a esta confissão ficta as causas de nulidade e de anulabilidade previstas no artigo 359º do Código Civil para a confissão propriamente dita (sobre esta problemática vejam-se: Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora 1979, Manuel A. Domingues de Andrade, com a colaboração do Prof. Antunes Varela, Nova Edição Revista e Actualizada pelo Dr. Herculano Esteves, páginas 162 a 164; Manual de Processo Civil, Coimbra Editora 1985, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, 2ª Edição Revista e Actualizada de acordo com o Dec.-Lei 242/85, páginas 345 e 346 e 565, nota 1).].

Admite-se, em tese, que se discuta a reunião dos pressupostos legais para que opere esta confissão ficta, nomeadamente, por falta de indicação da cominação aos réus aquando da citação ou, eventualmente, a ocorrência de alguma ou algumas das exceções previstas no artigo 568º do Código de Processo Civil ou até do alcance de tal confissão ficta, mas está de todo afastada uma verdadeira impugnação da decisão da matéria de facto, como previsto no artigo 662º do Código de Processo Civil, já que no caso dos autos não há uma tal decisão mas sim e apenas a confissão ficta da matéria contida na petição inicial em consequência da inobservância de um ónus processual pelo demandados.

Pelo exposto, improcede a pretensão dos recorrentes de que seja ampliada a matéria de facto contida na sentença recorrida, com inclusão na mesma da factualidade que os mesmos indicam nas alegações e conclusões da sua apelação."

[MTS]


02/07/2024

Jurisprudência 2023 (204)


Recurso de revista;
inadmissibilidade


1. O sumário de STJ 16/11/2023 (2808/20.1T8PRD.P1.S1) é o seguinte:

Nas situações em que o tribunal da Relação conhece de questão decidida na sentença que absolvera o réu da instância mas não mantém a decisão, determinando que o processo prossiga, a decisão em causa não comporta revista ao abrigo do n.º 1 do art. 671.º do CPC.


2. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"I. Relatório

[...] 16. Recebidos os autos no Supremo Tribunal de Justiça, incumbindo à relatora verificar se alguma circunstância obsta ao conhecimento do objecto do recurso, foi proferido despacho convite, onde – além do que consta supra – se disse (transcrição):

“16. A decisão recorrida ao determinar que se efectue novo despacho convite ao aperfeiçoamento da petição inicial não se compreende no quadro das decisões a que se reporta o art.º 671.º, n.º1 como sendo decisões que comportem recurso de revista : não decide do mérito da causa, nem absolve da instância, implicando o prosseguimento dos autos.

Isso significa que para ser passível de revista ter-se-ia de encontrar outra norma, como o n.º2 do art.º 671.º do CPC.

Mas também ao abrigo desta norma existiria um obstáculo à admissão da revista, por não se conseguir descortinar, pelas conclusões do recurso – e pela alegação – que o presente recurso seja enquadrável na referida disposição, onde se diz:

“2 - Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objeto de revista:

a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível;

b) Quando estejam em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.”

17. Incumbindo ao relator a quem o processo é distribuído que verifique se alguma circunstância obsta ao conhecimento do recurso, depois de ouvidas as partes – art.º 652.º e 655.º do CPC, determina-se que o presente despacho seja comunicado às partes, para pronúncia, querendo, no prazo legal, após o que se decidirá.

Sem custas.”

17. Responderam ao convite ambas as partes: o recorrido a louvar-se nas razões de não admissão do recurso; o recorrente a defender que o mesmo deve ser admitido e conhecido, em que os principais argumentos referidos são:

- O artigo 671º, nº 1, do CPC, na nossa ponderada e modesta interpretação, deve ser interpretado como não tendo efeito preclusivo relativamente aos Acórdãos da Relação que contrariem uma decisão de absolvição da instância do Réu na 1ª Instância, sob pena de se estabelecer uma desigualdade de “armas” entre a decisão da Relação que absolve o Réu da instância, da decisão da Relação, que ao contrário da 1ª Instância mande prosseguir os autos.

- com o novo convite para aperfeiçoamento, será dada mais uma oportunidade ao A., depois das várias e insistentes que já lhe foram concedidas para aperfeiçoar a sua p.i., o que o mesmo não conseguiu e o que vai prolongar injustificadamente o Processo.

II. Fundamentação

Relevam os elementos constantes do relatório supra.

18. Analisando a situação, dir-se-á que as razões invocadas pela recorrente não permitem, no entanto, ultrapassar o obstáculo legal do art.º 671.º, n.1º do CPC – é o legislador que define as situações em que os acórdãos do Tribunal da Relação comportam revista e quando a mesma pode ser interposta.

E no nº 1 do art.º 671.º estão apenas contempladas as situações em que o tribunal conhece do mérito da causa, ou absolve da instância, fazendo o processo terminar. Nas situações em que o tribunal da relação conhece de questão decidida na sentença que absolvera o réu da instância mas não mantém a decisão, determinando que o processo prossiga, a decisão em causa não comporta revista ao abrigo do n.º1 do art.º 671.º do CPC.

19. Não vindo contrariadas as razões apontadas no despacho convite, o colectivo entende que os fundamentos aí referidos são de acolher e deve ser decidido não tomar conhecimento do objecto do recurso, dando-se aqui por reproduzidas as razões já transcritas e constantes do referido despacho, que também fundamentam o presente acórdão."

[MTS]


01/07/2024

Jurisprudência 2023 (203)


Litigância de má fé;
audição prévia


1. O sumário de STJ 16/11/2023 (8782/19.0T8PRT.P1.S1) é o seguinte:

I – Os herdeiros de um co-herdeiro falecido antes da partilha da primeira herança também gozam do direito de preferência na cessão de quinhão hereditário dessa 1.ª herança.

II - O exercício do direito ao contraditório em processo civil, diferentemente do que ocorre em sede de procedimento administrativo não exige que seja enviado ao interessado um projecto de decisão que, posteriormente depois de rebatidos os argumentos da defesa possa ser convertido em decisão definitiva bastando a concreta referência à sua possível condenação como litigante de má fé porque tal lhe permite exercer o seu direito de defesa.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Alega a ré que a sua condenação como litigante de má-fé em 2.ª Instância ocorre com fundamentos confusos e inexistentes e excesso de pronúncia, com violação do disposto nos artigos 542.º, 615.°, n.° l, alínea d), 609.°, n.°l, todos do Código de Processo Civil, por exceder os limites da condenação ao seu alcance e o princípio do contraditório e ainda o art.º 20, nº.4 da Constituição da República Portuguesa.

Por último invoca a violação de caso julgado por não ter sido condenada como litigante de má fé e vir invocada uma conduta repetida em ambas as instâncias.

Os autores formularam na réplica o pedido de condenação das 3 primeiras rés como litigantes de má-fé em multa e indemnização quando após a contestação ficaram a saber da celebração de mais um contrato entre estas rés que entenderam ter como único propósito tornar mais difícil o exercício do direito de preferência que pretendiam fazer valer em juízo.

O Tribunal de 1.ª instância não analisou este pedido e não proferiu qualquer decisão fosse a condenar, fosse a absolver as rés de tal pedido de condenação como litigantes de má-fé.

Os autores não apelaram da sentença, tendo apenas sido interposto recurso de apelação por parte da ré, sem qualquer formulação de pedido recursivo por parte dos autores seja a título principal seja a título subordinado.

O relator no Tribunal da Relação fez notificar as partes do seguinte despacho:

Feita a análise do processo e a audição inicial da prova e apuradas as questões a decidir, antevemos a possibilidade/necessidade de no Acórdão a proferir esta Relação se pronunciar sobre as seguintes questões que não vêm suscitadas/tratadas pelas partes:

- a questão de definir se face ao disposto no artigo 2039.º do Código Civil os autores AA e BB são mesmo, como afirmam, herdeiros dos avós por direito de representação do pai e titulares do direito que querem exercer.

- a questão da litigância de má fé da recorrente no recurso.

Por conseguinte, ao abrigo do princípio do contraditório convido as partes a tomarem posição, querendo, sobre tais questões, no prazo de 10 dias.”.

A recorrente apresentou em resposta um requerimento do seguinte teor:

1.º Tendo EE falecido em .../09/2018 e, por isso, em data posterior ao óbito dos seus pais, .../01/2005 e .../08/2016, respectivamente, e não se achando demonstrado nos autos a recusa daquele em aceitar a herança, não se verifica o invocado direito de representação alegado pelos Autores.

2.º A recorrente ofereceu recurso na convicção do exercício de um direito conforme à teleologia subjacente, não violando os deveres de verdade e cooperação.

3.º De qualquer modo, existindo a intenção da sua condenação nesse sentido, que não é invocado pela Recorrida, sempre deverá a mesma ser notificada sobre a sua concretização, para se defender em conformidade, e não ser objeto de decisão surpresa.”

A recorrente refere que foi objecto de uma decisão-surpresa quanto à sua condenação como litigante de má fé em 2.ª instância não só porque ofereceu recurso na convicção do exercício de um direito conforme à teleologia subjacente, não violando os deveres de verdade e cooperação, como por, como refere, haver sido absolvida, ou pelo menos não condenada como litigante de má fé pelo Tribunal de 1.ª instância, pese embora os AA. haverem formulado pedido nesse sentido, sem que estes hajam recorrido dessa decisão omissiva.

A recorrente não foi absolvida do pedido de condenação como litigante de má fé formulado pelos autores. Tal pedido não foi objecto de decisão e, com isso se conformaram os autores na medida em que não alegaram omissão de pronúncia a este propósito, nem, por qualquer outro modo suscitaram junto do tribunal de apelação a condenação das rés como litigantes de má fé.

Pode acontecer que uma parte adopte um comportamento em 1.ª instância que este tribunal não avalie como integrando a litigância de má fé, seja porque o comportamento processual foi exemplar, seja porque por qualquer outra razão o tribunal de 1.ª instância o não haja avaliado como suficiente para integrar o conceito de litigância de má fé, e, a parte adopte um diverso e mais pernicioso comportamento em fase de apelação que possa integrar o conceito de litigante de má fé.

A condenação como litigante de má fé pode ocorrer sem pedido da parte contrária por decorrer também dos poderes oficiosos do tribunal de recurso.

Uma decisão que não é proferida não goza de qualquer força de caso julgado, pela própria natureza das coisas e pelas funções do caso julgado. O que não foi decidido não é susceptível, em caso algum, de colocar o tribunal perante a prolação de decisões contraditórias ou, por qualquer modo, em desrespeito de uma anterior decisão judicial que não foi proferida.

A presente situação não goza pois de força de caso julgado total ou parcial, e nem mesmo fere qualquer legítima expectativa da recorrente, nomeadamente de que por não haver sido condenada em 1.ª instância, não o seria igualmente nas instâncias de recurso.

O exercício do direito ao contraditório em processo civil, diferentemente do que ocorre em sede de procedimento administrativo não exige que seja enviado ao interessado um projecto de decisão que, posteriormente depois de rebatidos os argumentos da defesa possa ser convertido em decisão definitiva. Tratando-se de uma questão bastante concreta – condenação por litigância de má fé – com consequências tão limitadas como a condenação em multa, no uso de poderes oficiosos do tribunal e não já uma indemnização à parte contrária, entende-se que o despacho que acima transcrevemos permite à parte apresentar a defesa adequada à sanção que é passível de ser-lhe aplicada. De resto, a recorrente apresentou a defesa contra essa possível condenação indicando que ofereceu recurso na convicção do exercício de um direito conforme à teleologia subjacente, não violando os deveres de verdade e cooperação, não se vislumbrando como pode o acórdão recorrido ter violado o disposto no art.º 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.

A decisão recorrida condenou a recorrente como litigante de má fé estribada:

1. Na motivação da decisão sobre a matéria de facto, na qual se assinala a absoluta inverosimilhança e improbabilidade dos factos alegados;

2. Na inaudita tentativa de convencer o tribunal daquilo que a todos os títulos se mostra falso e inventado com intenção fraudulenta;

3. Na apresentação do recurso da sentença da 1.ª instância, insistindo despudoradamente na demonstração dos factos que bem sabe serem falsos e com intenção de impedir a descoberta da verdade e o exercício de legítimos direitos;

4. Na reincidência na dedução com dolo directo de uma pretensão que sabia não ter fundamento.

Quando o acórdão diz que a recorrente reincidiu na dedução com dolo directo de uma pretensão que sabia não ter fundamento refere-se, como aliás concorda a recorrente, que esta deduziu a defesa na contestação, e repetiu-a na apelação. No recurso de apelação tentou que fosse alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto, nomeadamente quanto ao preço pelo qual os réus II e JJ cederam os respectivos quinhões nas heranças abertas por óbito dos pais à ré sociedade recorrente: se o preço foi o de €62.500 por cada quinhão, num total de €250.000, que veio a ser julgada improcedente reafirmando o que já havia sido decidido pelo tribunal de 1.ª instância - 44. O documento denominado “contrato sob condição” e a escritura pública de rectificação não correspondem à vontade dos declarantes, foi celebrado com o intuito de enganar os autores.-.

Reincidiu na conduta, na medida em que a repetiu e tentou convencer o Tribunal de recurso de factos que não eram verdadeiros. Para tal não é necessário que tenha existido uma primeira condenação, basta a repetição da conduta.

Analisadas as questões de ordem formal colocadas pela recorrente a propósito da sua condenação em 2.ª instância como litigante de má fé, manifestamente improcedentes, e não tendo sido apesentada qualquer questão de natureza substantiva que possa conduzir à alteração ou revogação de tal decisão, confirma-se integralmente a decisão condenatória em apreço."

[MTS]