"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



08/07/2024

Jurisprudência 2023 (208)


Recurso ordinário;
matéria de conhecimento oficioso*

1. O sumário de RC 21/11/2023 (158/19.5T8LRA.C2) é o seguinte:

I – A aplicabilidade do n.º 4 do art.º 186.º do NCPCiv. – segundo o qual, no caso de cumulação de causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis, a nulidade subsiste, ainda que um dos pedidos fique sem efeito por incompetência do tribunal ou por erro na forma do processo – restringe-se às situações em que sejam cumulados pedidos ou causas de pedir substancialmente incompatíveis.

II – Assim, se todos os pedidos formulados são substancialmente compatíveis entre si, não se pode aplicar aquele preceito legal, inexistindo ineptidão, ainda que ocorra incompetência material para conhecer de algum dos pedidos.

III – O conhecimento das exceções dilatórias deve obedecer à ordem estabelecida nos arts. 595.º, n.º 1, al.ª a), e 278.º, ambos do NCPCiv..

IV – O conhecimento da matéria de ineptidão da petição inicial precede o da exceção de ilegitimidade, pelo que, determinando o vício de ineptidão a nulidade do processo, já não se impõe, por prejudicado, o conhecimento daquela exceção.

V – Inexistindo decisão em 1.ª instância que aprecie a exceção de ilegitimidade passiva, não pode a Relação substituir-se ao tribunal recorrido para dela conhecer em primeira mão.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"B. Se a mesma [decisão] é nula, por omissão de pronúncia, por não ter conhecido da excepção de ilegitimidade arguida pelo 2.º réu, BB.

Relativamente a esta questão, referem os recorrentes que a mesma é nula, por omissão de pronúncia, por a mesma não ter apreciado a excepção de ilegitimidade do 2.º réu.

O artigo 615, n.º 1, al. d), do CPC, sanciona com a nulidade a sentença em que o juiz deixe de se pronunciar sobre questões de que devia conhecer.

Foi, efectivamente, invocada a excepção de ilegitimidade do 2.º réu, a qual (cf. fl.s 529/530), não foi conhecida, por prejudicada, com o fundamento em se ter julgado procedente a excepção de ineptidão da petição inicial.

O conhecimento das excepções dilatórias deve obedecer à ordem estabelecida nos artigos 595.º, n.º 1, al. a) e 278.º, do CPC.

O conhecimento da excepção de ineptidão da petição inicial, precede o da legitimidade, pelo que acarretando a primeira, a decisão de nulidade do processo, já não se impunha, por prejudicado, o conhecimento da excepção de ilegitimidade, pelo que não se verifica a invocada nulidade.

Por outro lado, como é óbvio, inexistindo decisão em 1.ª instância, que aprecie a excepção em causa, não se pode este Tribunal da Relação, substituir ao Tribunal recorrido para dela conhecer em primeira mão.

A regra da substituição ao tribunal recorrido apenas é consentida nos casos previstos no artigo 665.º, do CPC, o que não é o caso.

Consequentemente, não padece a decisão recorrida da apontada nulidade.

Pelo que, nesta parte, o presente recurso tem de improceder."

*3. [Comentário] No acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] como é óbvio, inexistindo decisão em 1.ª instância, que aprecie a excepção [de ilegitimidade] em causa, não se pode este Tribunal da Relação, substituir ao Tribunal recorrido para dela conhecer em primeira mão."
 
Só pode tratar-se de um lapsus calami, tanto mais que, no contexto, a afirmação tem um certo carácter de obiter dictum. O óbvio é que a Relação pode conhecer de qualquer matéria de conhecimento oficioso (como é o caso da generalidade das excepções dilatórias (art. 278.º, n.º 1, CPC)), mesmo que essa matéria não tenha sido apreciada pelo tribunal de 1.ª instância.

Aliás, supondo que, por exemplo, a Relação detecta a incompetência absoluta do tribunal não apreciada na 1.ª instância, o que é que a Relação deve fazer? Mandar baixar o processo à 1.ª instância para que esta decrete a incompetência absoluta e absolva o réu da instância? Limitar-se a expressar a opinião de que o tribunal é absolutamente competente e devolver a decisão sobre essa incompetência ao tribunal de 1.ª instância?  Esquecer a incompetência absoluta com o fundamento de que a sua não apreciação pelo tribunal de 1.ª instância "precludiu" o seu conhecimento posterior?

MTS