"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



30/07/2024

Jurisprudência 2023 (224)

 
Acta da assembleia de condóminos;
título executivo; aplicação da lei no tempo

 
1. O sumário de RP 27/11/2023 () é o seguinte:

I - Com a nova redação dada ao artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 268/94, de 25 de outubro, pela Lei n.º 8/2022, de 10 de janeiro, passou a ser inquestionável que as sanções pecuniárias (aprovadas em assembleia de condóminos ou previstas em regulamento do condomínio) estão abrangidas no título executivo que constitui a ata da reunião da assembleia do condomínio – cf. atual artigo 6.º, n.º 3 do referido Decreto-Lei.

II - A nova Lei tem natureza interpretativa.

III - Independentemente dessa natureza, sempre há que considerar que qualquer lei que fixe requisitos menos exigentes de exequibilidade do título é de aplicação imediata.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Sustenta o apelante, em síntese, que não pode ser executado relativamente aos juros e sanções pecuniárias, uma vez que a Lei n.º 8/2022, ao alterar o disposto no artigo 6.º do Decreto-lei n.º 268/94, de 25 de outubro, tem caráter inovatório, não podendo considerar-se, diferentemente do que considerou a sentença, uma Lei interpretativa.

Relativamente aos juros, a questão verdadeiramente não o é: independentemente de a Lei nova consagrar (ou não) a obrigação de juros, sempre os juros de mora legais podiam ser pedidos na execução, atento o disposto no artigo 703, n.º 2 do CPC. Efetivamente, como refere Marco Carvalho Gonçalves [
Lições de Processo Civil Executivo, 5.ª edição, Almedina, 2022, págs. 62/63.], “o título executivo circunscreve os limites da execução, ou seja, o credor não pode pedir mais do que aquilo que o título executivo expressamente lhe dá (...) Porém, nada obsta a que o credor peticione o pagamento de juros de mora, contabilizados à taxa legal, da obrigação constante do título, ainda que o mesmo seja omisso quanto a essa obrigação de pagamento de juros (art. 703.º, n.º 2)” [No mesmo sentido, José Lebre de Freitas/Armindo Ribeiro Mendes/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3.º, 3.ª Edição, Almedina, 2022, págs. 345/346.].

Relativamente às sanções pecuniárias, o apelante considera a Lei n.º 8/2022 inovatória, afirmando na sua Conclusão XXI que “o diploma em causa é inovador, aplicando-se apenas aos casos futuros, até porque a jurisprudência ao longo dos anos sempre foi uniforme ao não considerar como título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante, bem como as sanções pecuniárias”.

Discorda-se da conclusão (diploma inovador) e do – e em razão do - pressuposto (a jurisprudência foi uniforme ao não considerar as sanções pecuniárias como abrangidas no título).

Em acórdão relatado por este relator, e no qual interveio, concordantemente, o aqui segundo Adjunto, já se deixou sumariado [
Acórdão de 25.09.2023, proferido no Processo n.º 681/22.4T8VLG-A.P1, in dgsi.]: “1 – Com a nova redação dada ao artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 268/94, de 25 de outubro, pela Lei n.º 8/2022, de 10 de janeiro, passou a ser inequívoco que as sanções pecuniárias (aprovadas em assembleia de condóminos ou previstas em regulamento do condomínio) estão abrangidas no título executivo que constitui a ata da reunião da assembleia do condomínio – cf. atual artigo 6.º, n.º 3 do referido Decreto-Lei. 2 – Esse é o entendimento a ter, mesmo em relação às execuções instauradas antes da entrada em vigor da alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 8/2022, de 10 de janeiro, uma vez que – perante as divergências jurisprudenciais anteriores – esta Lei deve considerar-se interpretativa”.

Salvo devido respeito por outro entendimento, a nova Lei tem efetivamente um sentido interpretativo, pois, diversamente do que sustenta o apelante, não havia um entendimento uniforme quanto à abrangência no título executivo das sanções pecuniárias. A título exemplificativo, citamos o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30.04.2019 (com um voto de vencido), “I. A assembleia de condóminos pode fixar penas pecuniárias para a inobservância das suas deliberações, nomeadamente, penas pecuniárias a aplicar ao condómino em mora no pagamento das quotas de condomínio. II. A ata da reunião da assembleia de condóminos que deliberou a aplicação e o montante dessas penas constitui título executivo contra o proprietário em mora”; o acórdão do mesmo Tribunal de 20.02.2014, “I. A ata da reunião da assembleia de condóminos, que delibere sobre a fixação de penas pecuniárias, por falta de pagamento da quota-parte, no prazo estabelecido, constitui título executivo. II. Sendo a sanção pecuniária de € 10,00, por cada mês de atraso no pagamento da quota-parte, correspondente a uma quantia mensal superior a € 30,00, não se afigura como sendo manifestamente excessiva, tanto do ponto de vista abstrato como concreto”; o acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 17.05.2016, “A ata da assembleia de condóminos, na parte em que se aplica sanções a estes, vale como título executivo” e de 3.03.2008, “I - A ata da assembleia do condomínio é título executivo da deliberação não só sobre o montante das contribuições periódicas, mas também das sanções que o regulamento impuser para a falta de pagamento. II - Aí se podem englobar igualmente os honorários já pagos e as despesas efetuadas em anterior acção intentada para cobrança do débito do faltoso” e, ainda, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22.10.2015, “I - A ata da reunião da assembleia do condomínio que tiver deliberado as contribuições a pagar pelos condóminos, nos termos do art.º 6º, n.º 1 do Dec. Lei n.º 268/94, constitui título executivo contra o proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte, desde que esteja assinada por todos os condóminos que nela participaram e deixaram de pagar (art.º 1º do Dec. Lei n.º 268/94). II- No âmbito da ata, enquanto título executivo, cabem o montante das “contribuições devidas ao condomínio”, nelas se incluindo as despesas necessárias à conservação e à fruição das partes comuns do edifício, as despesas com inovações, as contribuições para o fundo comum de reserva, o pagamento do prémio de seguro contra o risco de incêndio, as despesas com a reconstrução do edifício e as penalizações ou penas pecuniárias fixadas nos termos do art.º 1434º do Cód. Civil”, todos eles consultáveis em dgsi.

Como ensinou João Baptista Machado, “são de sua natureza interpretativas aquelas leis que, sobre pontos ou questões em que as regras jurídicas aplicáveis são incertas e o seu sentido controvertido, vêm consagrar uma solução que os tribunais poderiam ter adotado” [
Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador (12.ª Reimpressão), Almedina, 2000, pág. 246.].

Em suma, os juros legais podem sempre ser pedidos na execução pelo credor, mesmo que não constem do título e a Lei 8/2022, de 10 de janeiro, quanto às sanções pecuniárias, é uma lei interpretativa.

Cumpre ainda dizer o seguinte: mesmo que o não fosse, mesmo que a Lei fosse inovadora, tendo a execução sido instaurada na sua vigência [---] (ou, mesmo, estando pendente), chegaríamos ao mesmo resultado, ou seja, à abrangência das sanções pecuniárias no título, como decorre da doutrina consagrada pelo Assento 9/93, de 18 de dezembro [---], e tal como referem José Lebre de Freitas/Armindo Ribeiro Mendes/Isabel Alexandre, a páginas 346 do Código de Processo Civil Anotado, já citado em anterior nota [
“de acordo com a doutrina expendida pelo Assento (...) a lei que fixe requisitos menos exigentes de exequibilidade do título é de aplicação imediata, mesmo em execuções pendentes”.].
 
[MTS]