"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



05/07/2024

Jurisprudência 2023 (207)


Excepção peremptória; decisão de procedência; 
ampliação da matéria de facto; convite ao aperfeiçoamento*


I. O sumário de RL 5/12/2023 (2371/22.9T8PDL.L1-7é o seguinte:

1. Independentemente da natureza do facto – por exemplo, um estado subjetivo – e da via pela qual foi adquirido processualmente, tem sempre ele de constar do leque dos factos provados, se vier a ser, e para que possa ser invocado na fundamentação de direito.

2. Sendo uma exceção perentória julgada procedente pelo tribunal de 1.ª instância, e entendendo o tribunal da Relação que a factualidade processualmente adquirida é insuficiente para sustentar tal decisão, mas considerando também que a factualidade que a sustenta poderia ter sido adquirida pela via prevista no n.º 4 do art.º 590.º do Cód. Proc. Civil, deve o tribunal ad quem revogar a decisão apelada, por error in judicando sobre uma questão processual, e determinar que seja dirigido ao excipiente um convite ao aperfeiçoamento do seu articulado.

3. No caso previsto no número anterior, não tendo sido anteriormente discutida nos autos a questão decidida na sentença a revogar, é apropriado, antes da prolação da decisão revogatória, oferecer às partes o contraditório sobre tal questão, permitindo este lançar alguma luz sobre a matéria de facto deficitária e conhecer a recetividade da parte para responder utilmente a um eventual convite ao aperfeiçoamento da articulação a ser-lhe dirigido pelo tribunal a quo.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3. Improcedência da exceção decorrente da insuficiência da matéria de facto [...]
3.2. Omissão do convite ao aperfeiçoamento da contestação

Deparamo-nos aqui com o seguinte cenário processual: sendo uma exceção perentória julgada procedente pelo tribunal de 1.ª instância, entende o tribunal da Relação que a factualidade processualmente adquirida é insuficiente para sustentar tal decisão, mas também considera que a (hipotética) factualidade que a sustenta poderia ter sido adquirida pela via prevista no n.º 4 do art.º 590.º. Neste cenário-tipo, a decisão apropriada a proferir pelo tribunal ad quem ainda é objeto de debate na doutrina e na jurisprudência.

Uma resposta para este problema – isto é, visando evitar um julgamento da causa que, por não ter sido oferecida à parte a possibilidade suprir as “insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto”, não resulta na justa composição do litígio – é o recurso à norma enunciada na  parte final da al. c) do n.º 2 e na al. c) do n.º 3 do art.º 662.º. Esta solução tem o inegável mérito de ser simples – e nada garante melhor a certeza e seguração processuais do que a simplicidade e a clareza.

A norma prevista na parte final da al. c) do n.º 2 e na al. c) do n.º 3 do art.º 662.º encontra o seu sentido na existência de uma peça processual que limita a instrução a alguns dos factos adquiridos por via dos articulados – um questionário. Admitindo-se que os atuais temas da prova têm um caráter mais genérico e que o tribunal se deve pronunciar sobre todos os factos relevantes alegados pelas partes – ao menos, dos essenciais –, a deficiência prevista nestas normas perde o seu campo de aplicação natural. Este campo ficaria, assim, reduzido aos casos em que os temas da prova são elaborados minuciosamente, à semelhança de um questionário, levando as partes a entender, legitimamente, que só os factos nele descritos são objeto da instrução.

Sobretudo, se se considerar que a mera omissão de julgamento de um facto essencial que, por ter sido alegado, foi, necessariamente, objeto da instrução, não traduz uma deficiência da matéria de facto (a ser objeto do julgamento), mas sim uma omissão de julgamento sobre um dos factos que já integrava tal matéria, a última hipótese prevista na al. c) do n.º 2 do art.º 662.º parece dirigir-se aos casos em que a matéria de facto deve ser ampliada para além dos factos que já adquiridos processualmente, pois ela já é constituída por todos estes. Esta hipótese casaria, assim, perfeitamente com o recurso ao disposto na al. c) do n.º 2 do art.º 662.º para enfrentar o problema resultante de a relevância da insuficiência da articulação apenas ser detetada pelo tribunal da Relação – solução que visa, precisamente, possibilitar a aquisição processual de novos factos essenciais, assim se ampliando a matéria de facto objeto da pronúncia.

No entanto, imediatamente notamos que, em vez de ordenar a ampliação da matéria de facto – de modo a abranger factos individualizados já validamente adquiridos e que não foram, por qualquer causa, objeto da instrução e da pronúncia –, a Relação ordena, sim, a prolação de uma decisão diferente – um convite ao aperfeiçoamento. Apenas no caso de o convite ser aceite, será realizada a instrução, os debates e o julgamento sobre os novos factos (ulteriormente) adquiridos. Se o convite ao aperfeiçoamento do articulado não for acolhido, o tribunal a quo não ampliará a base da instrução nem efetuará um novo julgamento de facto, sem que isto represente um desacatamento da determinação do tribunal superior. Neste caso, e no caso de a factualidade alegada em resposta ao convite continuar a ser insuficiente para a procedência da ação, a sorte da demanda normalmente será a mesma.

Importa sublinhar que a Relação não ordena uma pronúncia sobre um facto concreto indevidamente afastado da matéria de facto objeto do julgamento – precedida da instrução contraditória necessária –, pois este é desconhecido, mas sim uma atividade processual (uma decisão) alternativa à prolação da sentença – a prolação de um despacho de convite ao aperfeiçoamento da articulação de facto. Se esta atividade tiver um determinado resultado – a válida aquisição processual de factos relevantes –, então, e só então, terá lugar a pronúncia do tribunal a quo, que será uma mera decorrência imposta por lei.

3.3. Erro ocorrido

Resulta do raciocínio expendido que, quando o juiz, até imediatamente antes de proferir a decisão final, reconhece a insuficiência retificável da alegação, enfrenta uma questão de direito: ou entende que tal insuficiência não obsta ou não pode obstar à prolação de sentença, decidindo de mérito; ou entende que está obrigado, mesmo nesta fase, a, previamente, convidar a parte a suprir as “insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto”. Ou seja, o juiz enfrenta uma questão de direito adjetivo, ainda que ela não seja expressamente identificada e enunciada no ato decisório, extraindo-se da concreta decisão proferida a posição adotada pelo tribunal.

Se, verificando-se estes pressupostos, o juiz proferir uma decisão final de improcedência fundada (isto é, justificada) na insuficiência da matéria de facto, tal decisão resulta de um julgamento sobre a questão de direito adjetivo referido no sentido (errado) de considerar que a lei processual cauciona ou obriga à prolação de sentença. Compreende, pois, num erro de julgamento desta questão, quer ela seja enunciada e analisada na sentença, quer esteja nela apenas latente.

Poder-se-ia dizer que, nos casos de procedência da pretensão, apesar da insuficiência da alegação, a decisão não enferma de um error in judicando sobre uma questão de direito (processual), pois o silogismo adotado não teve por premissa menor a insuficiência da alegação, podendo o juiz não ter, sequer, detetado esta insuficiência – em qualquer caso, não se podendo concluir da decisão que o juiz a detetou. Entre estes estaria, pois, o caso que nos ocupa, em que a decisão da causa (ou da exceção) é de procedência, mas em que, em via de recurso, o tribunal da Relação entende que deveria (ou deve) assentar em factos essenciais não alegados que podem ser processualmente adquiridos em resposta ao convite para o efeito dirigido à parte – que, no processo concreto, nunca lhe foi endereçado.

Ainda assim, não deixa de dever ser aqui afirmada a presença de um error in judicando na decisão do tribunal a quo, pois esta compreende, necessariamente, uma errada avaliação da suficiência dos factos alegados – quer o tribunal adote o enquadramento jurídico apropriado na decisão de mérito, quer também erre (e porque erra) na escolha da solução de direito a dar ao caso. Na verdade, o erro judiciário está sempre presente no ato decisório que ofende a lei (seja adjetiva, seja substantiva), porque a prática deste é o resultado da vontade (hoc sensu) do julgador – sendo esta constatação que valida os postulados dos despachos recorre-se e contra as nulidades reclama-se.

Em suma, o enquadramento da questão que melhor respeita a unidade e a coerência do sistema jurídico-processual (art.º 9.º, n.º 1, do Cód. Civil) é aquele que não enfatiza uma viciação da sentença ou do julgamento de facto, assentando, sim, a solução do problema na afirmação da ocorrência de um error in judicando em matéria de direito (adjetivo). Nesta construção, que leva à revogação de sentença, por não se afirmar que existe uma insuficiência na matéria de facto, mas sim que houve um error in judicando sobre uma questão processual, a nova sentença a proferir pode assentar harmoniosamente sobre a mesma factualidade, se o convite não for aceite, sem que isto cause estranheza – por, repisa-se, não se afirmar na decisão revogatória que a factualidade já incluída na sentença (no leque dos factos provados e no leque dos factos não provados) resulta de uma pronúncia viciada, por ter por objeto uma deficitária matéria de facto (processualmente adquirida). [...]

4. Conclusão

Resta-nos, pois, concluir, pela revogação da decisão proferida, determinando-se ao tribunal a quo que, em sua substituição, profira outra em que convide a ré a suprir as insuficiências na alegação da exceção de exercício abusivo do direito, norteando-se pela factualidade acima considerada no capítulo 4.1 deste acórdão – tendo especialmente em vista o aperfeiçoamento do alegado nos art.ºs 14.º e 62.º da contestação –, apenas não se proferindo desde já este despacho (art.º 665.º do Cód. Proc. Civil) de modo a permitir ao tribunal a quo refletir no convite a dirigir à ré, também, se necessário, dúvidas (sobre a alegação de facto) com que tenha ficado apenas em resultado da leitura deste acórdão. Conforme já foi referido, a decisão vertente inscreve-se na reponderação da decisão sob apreciação (toda a proferida), sem prejuízo para os apelantes (art.º 635.º, n.º 5, do Cód. Proc. Civil), antes se determinando a revogação da decisão desfavorável, tal como é pedido nas conclusões da alegação. [...]

Esta pronúncia não importa a destruição do julgamento já realizado, mantendo-se a decisão sobre a matéria de facto já proferida, por não estar afetada pela falha detetada. Sendo aceite utilmente o convite ao aperfeiçoamento da contestação, e depois de satisfeito o disposto no art.º 590.º, n.º 5, do Cód. Proc. Civil, deverá ser produzida a prova que for oferecida (apenas sobre os factos objeto de esclarecimento, aditamento ou correção) em audiência contraditória (art.º 415.º do Cód. Proc. Civil) e, finalmente, proferida sobre tais factos – bem como o facto já alegado sob o art.º 45.º da contestação –, seguida de nova decisão de mérito."


*III. [Comentário] a) O acórdão da RL pronuncia-se sobre a seguinte situação: o tribunal de 1.ª instância considerou procedente uma excepção peremptória; a RL entende que faltam elementos de facto que possam fundamentar essa procedência e que esses elementos podem ser adquiridos através de um convite ao aperfeiçoamento da contestação apresentada pela parte demandada.

Neste enquadramento, não se pode aceitar, salvo o devido respeito, a qualificação da situação como um "error in judicando sobre uma questão processual", por duas razões:

-- A excepção peremptória -- que era a questão judicanda -- não é uma questão processual;
 
-- O tribunal de 1.ª instância considerou a excepção procedente, mas, na opinião da RL, não há factos suficientes que justifiquem essa procedência; por esta óptica, qualquer decisão que julgue procedente um pedido quando não há factos suficientes que o justifiquem deveria ser considerada como padecendo um "error in judicando sobre uma questão processual".

Se a RL entende que a matéria de facto considerada pelo tribunal de 1.ª instância não é suficiente para fundamentar a procedência da excepção peremptória e que a matéria em falta pode ser obtida através do convite ao aperfeiçoamento, o que devia ter feito era ter mandado ampliar a matéria de facto com base no disposto no art. 662.º, n.º 2, al. c), CPC. O que o caso apreciado pela RL mostra é precisamente que este preceito também pode ser aplicado quando a Relação entende que a matéria a adquirir para fundamentar a procedência do pedido decidida em 1.ª instância pode ser obtida através de um convite ao aperfeiçoamento dirigida a uma das partes.

b) Apenas para evitar qualquer confusão, acrescenta-se que, no caso analisado no acordão da RL, o tribunal de 1.ª instância proferiu uma decisão de procedência, naturalmente entendendo que possuía todos os factos relevantes e, por isso, omitindo qualquer convite ao aperfeiçoamento. O caso é distinto daquele no qual o tribunal de 1.ª instância omite um convite ao aperfeiçoamento e depois profere uma decisão de improcedência por falta de factos relevantes. Esta situação conduz à nulidade da decisão por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC).

MTS