"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/07/2024

Jurisprudência 2023 (213)


Instrução da causa; facto complementar;
violação do contraditório; decisão-surpresa*


1. O sumário de STJ 7/12/2023 (2017/11.0TVLSB.L1.S1) é o seguinte:

I. A possibilidade de serem considerados factos não alegados pelas partes que resultaram da instrução da causa, nos termos do artigo 5.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, exige que ambas as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar sobre os factos aditados, o que inclui a possibilidade de produzir prova e contraprova sobre eles.

II. Essa possibilidade só pode ser proporcionada se o tribunal, antes de proferir a sentença, sinalizar às partes os factos que, apesar de não terem sido por elas alegados, se evidenciaram na instrução da causa e sejam relevante para a decisão da mesma, permitindo que estas se pronunciem sobre eles e concedendo-lhes prazo para indicarem os meios de prova que pretendam produzir, relativamente aos factos aditados ao objeto do litígio.

III. Em caso de ausência ou deficiência de fundamentação da decisão da matéria de facto pelo tribunal da 1.ª instância, o Tribunal da Relação apenas está vinculado a determinar a remessa dos autos àquele tribunal para proceder à fundamentação em falta, quando a mesma seja requerida por alguma das partes que, face a essa omissão ou deficiência, invoque dificuldades em deduzir ou contrariar a impugnação da decisão sobre matéria de facto, ou, por iniciativa do tribunal de recurso, quando essa falta ou deficiência o impeça de apreciar devidamente a impugnação deduzida, por não saber qual a motivação do tribunal da 1.ª instância.

IV. Nesses casos, ao Tribunal da Relação, agindo como tribunal de substituição, não lhe está vedado, caso não entenda não ser necessário conhecer a motivação do tribunal da 1.º instância, relativamente aos factos considerados provados ou não provados, proceder à valoração da prova produzida, segundo a sua apreciação, ou seja, com autonomia, relativamente ao que foi decidido na 1.ª instância.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Na sentença da 1.ª instância julgou-se provado no número 17 da lista dos factos provados que no dia 18 de julho de 2008 foi dada alta hospitalar à filha do Réu, tendo a mesma e o ora Réu sido informados pelo Hospital SAMS que a operação havia corrido bem.

O Réu, impugnando a decisão sobre a matéria de facto, no recurso de apelação interposto para o Tribunal da Relação, solicitou, face à prova produzida, que se aditasse àquele facto que não tinha sido realizado qualquer exame para apurar da existência de fistula, não obstante tal exame ser prática médica do Autor.

O Tribunal da Relação, apreciando este fundamento do recurso de apelação, após ter analisado as provas produzidas considerou que o facto em questão resultou da discussão da causa e a parte contrária teve oportunidade de exercer o contraditório a tal respeito (nomeadamente, juntando aos autos, até ao encerramento da discussão da causa, o registo da realização do mencionado exame radiográfico), pode e deve dar-se como provado que foi dada alta à filha do Réu, no dia 18 de julho de 2008, sem que se tivesse realizado qualquer exame prévio de deteção de eventuais fístulas.

Consequentemente, decide-se alterar a redação dada, em 1.ª instância, ao item 17) dos Factos considerados provados, conferindo-lhe estoutra: "No dia 18 de julho de 2008 foi dada alta hospitalar à filha do réu, tendo a mesma e o ora R. sido informados pelo Hospital SAMS que a operação havia corrido bem, não tendo a paciente sido antes submetida a qualquer exame destinado especificamente a detetar o aparecimento de eventuais fístulas".

Assim sendo, a Apelação do Réu procede, quanto a esta questão.

O Autor alega, no recurso de revista, a ilegalidade deste aditamento, uma vez que se tratava de um facto novo que a Ré não teve oportunidade de contraditar, dado que nunca foi sinalizado que esse facto ira ser sujeito a avaliação probatória.

Efetivamente, o facto em questão não havia sido alegado pelas partes nos articulados.

Dispõe, no entanto, o artigo 5.º, n.º 2, b), do Código de Processo Civil:

2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:

(...)

b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar.

O facto aditado pelo Tribunal da Relação é efetivamente um facto complementar da factualidade alegada pelo Réu, na contestação, em defesa por exceção perentória impeditiva, na qual imputou à Ré um cumprimento defeituoso da prestação de cuidados de saúde cujo pagamento o Autor reclama na presente ação.

Será, por isso, suficiente, que o mesmo tenha resultado da prova produzida na instrução da causa para o tribunal da Relação o poder aditar, a pedido do Réu, na impugnação da decisão da matéria de facto deduzida nas alegações do recurso de apelação ?

O disposto no artigo 5.º, n.º 2, b), do Código de Processo Civil de 2013, corresponde essencialmente ao que constava do n.º 3, do artigo 264.º, do Código de Processo Civil de 1961, o qual havia sido introduzido pelo Decreto-lei n.º 180/96, de 25 de setembro 4, tendo a redação do código atual deixado de exigir a manifestação da parte interessada, para que integrem a factualidade relevante, os factos complementares ou concretizadores dos factos já alegados que apenas resultem da instrução da causa, podendo, por isso, a sua inclusão na factualidade integrante do objeto do processo ser da iniciativa do tribunal 5.

De modo a garantir o imprescindível exercício do contraditório, continua, no entanto, a exigir-se que ambas as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar sobre os factos aditados, o que inclui a possibilidade de produzir prova e contraprova sobre eles 6. Essa possibilidade só pode ser proporcionada se o tribunal, antes de proferir a sentença, sinalizar às partes os factos que, apesar de não terem sido por elas alegados, se evidenciaram na instrução da causa e sejam relevante para a decisão da mesma, permitindo que estas se pronunciem sobre eles, concedendo-lhes prazo para indicarem os meios de prova que pretendam produzir, relativamente aos factos aditados ao objeto do litígio 7.

Como bem se explicou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.02.2017 8:

Admitir-se que o juiz possa, sem mais (isto é, apenas com a exigência de audiência contraditória na produção do meio de prova), considerar o facto novo, essencial (complementar ou concretizador), corresponderia a exigir ao mandatário da parte interessada um grau de atenção e diligência incomum, dirigida não só à produção e valoração da prova que fosse sendo realizada, mas também, antecipando o juízo valorativo do tribunal, à possibilidade de vir a ser retirado desse meio de prova e considerado provado um novo facto nele mencionado.

Crê-se que a disciplina prevista no art. 5º, nº 2, al. b), do CPC exige que o tribunal se pronuncie expressamente sobre a possibilidade de ampliar a matéria de facto com os factos referidos, disso dando conhecimento às partes antes do encerramento da discussão. Só depois poderá considerar esses factos (mesmo que sem requerimento das partes nesse sentido).

Só assim é conferida à parte "a possibilidade de se pronunciar" sobre o facto que o tribunal se propõe aditar. E só assim se assegurará um processo equitativo (art. 547º do CPC), facultando-se às partes o exercício pleno do contraditório, requerendo – como é admitido por qualquer das teses –, se for caso disso, novos meios de prova em relação aos factos novos, quer para reafirmar a realidade desses factos, no sentido da sua prova, quer para opor contraprova a respeito dos mesmos, infirmando a realidade que aparentam.

Consultando os autos, constata-se que essa sinalização nunca foi efetuada na 1.ª instância, pelo que não foi garantido o exercício do contraditório nem o direito à prova, relativamente ao facto aditado pela Relação no n.º 17 da lista dos factos provados, quando se refere: não tendo a paciente sido antes submetida a qualquer exame destinado especificamente a detetar o aparecimento de eventuais fístulas.

A sua invocação nas alegações do recurso de apelação, com a consequente possibilidade da parte contrária, na resposta, se pronunciar sobre a pretensão de aditamento de facto não alegado mas que sobressaiu na instrução da causa, não é suficiente para que encontre garantido o contraditório exigido na parte final da alínea b), do n.º 2, do artigo 5.º, do Código de Processo Civil, não sendo, pois, permitido ao tribunal da Relação, nos casos em que o contraditório não foi assegurado na 1.ª instância, valorar a prova aí produzida, e decidir que o mesmo se encontra provado, aditando-o à lista dos factos provados [---]

Nessas situações, como ocorre no presente caso, deve a Relação, caso entenda que o facto é complementar dos factos já alegados, se evidenciou na instrução da causa e é relevante para o seu desfecho, utilizar o poder que lhe é conferido pelo artigo 662.º, n.º 1, c), do Código de Processo Civil, para ampliação da matéria de facto [PAULO RAMOS FARIA e ANA LUÍSA LOUREIRO [Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª ed., Almedina, 2014], p. 45.]

Ao ter feito um juízo probatório sobre o facto aditado sob o n.º 17 da lista dos factos provados, concluindo pela sua prova, o acórdão recorrido excedeu os poderes de modificação da matéria de facto por parte do tribunal de recurso.

Revelando-se que o facto indevidamente aditado fundamentou a decisão do recurso, justifica-se a anulação do acórdão recorrido, de modo a que o Tribunal recorrido exerça o poder que lhe é conferido pelo artigo 662.º, n.º 1, c), do Código de Processo Civil, relativamente a tal facto.

*III. [Comentário] Salvo o devido respeito, não é fácil compreender como é que de uma violação do contraditório quanto a certa matéria de facto se chega à decisão sobre a necessidade de ampliação daquela matéria. Mais curial é entender que a não audição prévia das partes sobre determinado facto complementar as leva a concluir pela irrelevância desse facto, pelo que a consideração do facto na sentença conduz ao proferimento de uma decisão-surpresa (art. 3.º, n.º 3, CPC), ou seja, de uma sentença que é nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC).

MTS