"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/07/2024

Jurisprudência 2023 (222)

 
Apresentação de documentos;
apresentação antes da audiência final*

1. O sumário de RG 19/12/2023 (7057/18.6T8BRG-A.G1) é o seguinte:

I – Para que a petição inicial seja considerada apta, basta que nela sejam alegados, de forma substanciada, os factos essenciais, que são aqueles que permitem fundamentar o pedido à luz do enquadramento jurídico feito pelo autor – “as razões de direito que servem de fundamento à ação”, no dizer do art. 552/1, d), do CPC – e, assim, individualizar a ação.

II – Não sendo esses factos enquadráveis na previsão das normas jurídicas em que o autor estriba o pedido, nem na de quaisquer outras suscetíveis de conduzirem ao mesmo resultado, a petição inicial será inconcludente, o que terá como consequência a improcedência da ação.

III - Para aferir da legitimidade direta não relevam elementos externos ao objeto formal do processo, mas apenas a posição das partes em relação a esse objeto, tal como ele é gizado pelo autor na petição inicial.

IV – É de admitir a junção aos autos de documentos apresentados até vinte dias antes da data em que se realize a audiência final e que não sejam impertinentes para a prova dos factos que integram os temas da prova.

V – Sem prejuízo, deve ser condenada em multa a parte que apresenta documentos que, não obstante terem sido produzidos depois do articulado em que foram alegados os factos que se destinam a provar, são do seu conhecimento e estão no seu poder há mais de três anos.
 

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"§ 116. º 6).5. Analisando a situação dos autos à luz das precedentes considerações, importa começar por dizer que permanecem controvertidos e integram os temas da prova os factos que substanciam a execução do plano de apropriação da participação da Autora no capital social da Ré EMP01..., SA. Permanecem também controvertidos os factos que substanciam o móbil de toda a atuação dos Réus – alegadamente, a obtenção dos lucros provenientes da exploração do lítio na região de ... a que a titularidade daquela quota permitirá aceder, por via indireta, através do direito de quinhoar no lucros da sociedade beneficiária da concessão.

§ 117.º Os documentos em causa, na medida em que demonstram a celebração do contrato de exploração do lítio e, bem assim, o papel que os Réus AA, BB, por si e na qualidade de gerente da Ré EMP02..., e JJ, alguns dos alegados coautores do ato ilícito, tiveram nesse processo, são idóneos, a partir do plano abstrato em que, neste momento, nos situamos, a contribuir para a formação de um juízo probatório sobre os factos referidos  no § anterior, o que permite refutar a tese da sua impertinência e, assim, justificar a sua junção aos autos.

§ 118.º A questão que se coloca a seguir prende-se com o momento em que tais documentos foram apresentados – depois da petição inicial, articulado em que, como vimos, foram alegados os factos para os quais podem ter relevo.

§ 119.º É sabido que o CPC vigente introduziu significativas alterações em sede de apresentação de prova documental, concretizadas no respetivo art. 423, com as quais se pretendeu disciplinar a tramitação processual e, no dizer de António Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Pires de Sousa (Código de Processo Civil cit., p. 499), “contrariar uma certa tendência, que se constituíra em verdadeira estratégia processual, traduzida em protelar a junção de documentos para o decurso da audiência final.”

§ 120.º Assim, no preceito em causa começa por se definir o regime-regra, de acordo com o qual “[o]s documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes” (n.º 1). De seguida, prevê situações de exceção: - no n.º 2, permite que “[s]e não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado”; - no n.º 3, acrescenta que “[a]pós o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.”

§ 121.º O regime assim definido funciona até ao encerramento da discussão, como decorre do art. 425 (“Apresentação em momento posterior”), onde se admite que, depois “do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.

§ 122.º No caso, não tendo ainda sido indicada data para a realização da audiência final, situamo-nos no âmbito de aplicação da exceção do n.º 2, pelo que não há obstáculo temporal à junção dos documentos.

§ 123.º Afigura-se, no entanto, que deve haver lugar a multa: é que, não obstante estarem em causa documentos ulteriores à petição inicial, o que torna evidente a impossibilidade da sua apresentação com este articulado, certo é que a Autora os tem em seu poder, pelo menos, desde 19 de junho de 2019, conforme demonstra o facto de nessa data os ter para prova dos factos alegados no articulado superveniente que veio a ser rejeitado pelo despacho de 6 de fevereiro de 2020. Devia, por isso, tê-los apresentado imediatamente, com o escopo que agora tem em vista (a prova de factos alegados na petição inicial), em lugar de esperar três longos anos para o fazer, com a consequente perturbação da tramitação da causa.

§ 124.º Não ignoramos que a Autora apresentou os documentos nos dez dias subsequentes à notificação do despacho de enunciação dos temas da prova.

§ 125.º De acordo com Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, p. 676), não havendo ou tendo sido dispensada a audiência prévia, as partes podem alterar os respetivos requerimentos probatórios no prazo geral de dez dias contado da notificação do despacho previsto no art. 596/1 do CPC. Trata-se de uma solução, obtida por analogia com a prevista no art. 598/2, que visa garantir às partes o exercício do mesmo direito que teriam se houvesse lugar ou não tivesse sido dispensada a audiência prévia.

§ 126.º Entendemos, porém, que, como salientam os mesmos Autores (ob. cit., p. 676), o art. 598 não se aplica à prova documental, uma vez que esta está sujeita a um regime próprio de apresentação (arts. 423 a 425). No mesmo sentido, Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil cit, p. 705.

§ 127.º Em resumo, o despacho recorrido deve ser revogado no sentido do deferimento da junção dos documentos apresentados pela Autora com a condenação desta no pagamento de multa, situada entre 0,5 UC e 5 UC’s (art. 27 do RCP), sendo que, no caso, tendo em conta o número de documentos apresentados e, bem assim, o hiato temporal entre o momento em que a Recorrente devia ter feito a apresentação e aquele em que a fez, temos como adequado fixar a multa em duas unidades de conta.
 

*3. [Comentário] No acórdão reconhece-se "estarem em causa documentos ulteriores à petição inicial, o que torna evidente a impossibilidade da sua apresentação com este articulado". Sendo assim, não é possível concluir, salvo melhor opinião, que a multa pode ser fundamentada no disposto no art. 423.º, n.º 2, CPC.

A RG alega que a Autora tinha os documentos em sua posse há mais de três anos, dado que -- segundo se percebe -- apresentou esses documentos com um articulado superveniente que veio a ser indeferido. Nestes termos, o fundamento para a aplicação de uma multa não poderia ser o disposto no art., 423.º,, n.º 2, CPC, mas antes a eventual a litigância de má fé dessa Demandante (art. 542.º, n.º 1, e 2, al. d), CPC). No fundo, a censura que pode ser dirigida à Autora é a de não ter voltado a apresentar os documentos logo que o articulado superveniente foi indeferido.

MTS