"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/07/2024

Jurisprudência 2023 (210)


Constitucionalidade; 
fiscalização abstracta; incompetência material


1. O sumário de RE 23/11/2023 (1103/22.6T8FAR.E1) é o seguinte:

Inexistindo um concreto litígio cuja resolução seja solicitada ao tribunal comum, não é este tribunal o competente para conhecer da pretensão formulada pelas Autoras visando o reconhecimento do direito ao exercício de uma atividade comercial, que lhes foi vedada por lei, pois que as pretensões de apreciação e declaração da sua inconstitucionalidade e ilegalidade não configuram in casu uma questão incidental, mas a pretensão principal, pelo que, a sua apreciação por um tribunal comum nas descritas circunstâncias redundaria numa fiscalização abstrata da constitucionalidade, que aos tribunais comuns está vedada, por ser da competência exclusiva do Tribunal Constitucional.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Pretendem as Apelantes que o tribunal a quo, incorreu em erro ao atribuir a competência para a apreciação das pretensões formuladas ora ao Tribunal Constitucional, ora aos tribunais administrativos, em primeiro lugar, por na apreciação do objeto da ação se confinar aos pedidos e em função deles não admitir a requerida modificação do pedido, defendendo que a ação tem a natureza de simples apreciação positiva, sendo da competência dos tribunais comuns.

Apreciando.

Em face do disposto no artigo 211.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa [---], os Tribunais Judiciais são os tribunais comuns em matéria civil e criminal, e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas, estabelecendo os artigos 64.º do CPC e 40.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26/08 – Lei da Organização do Sistema Judiciário [---] –, que os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, tendo consequentemente também competência residual no confronto com as outras ordens de tribunais. [...]

Vem apontado à decisão recorrida [...] o erro na determinação da competência entre jurisdições, in casu, entre o tribunal a quo, de competência especializada em matéria cível, versus os tribunais qualificados como especiais por terem as suas competências limitadas às matérias que lhes são especialmente atribuídas, os tribunais administrativos pela lei, e o Tribunal Constitucional pela Constituição, que lhe confere uma posição autónoma relativamente aos outros tribunais, e com a especificidade de ele próprio definir as questões relativas à delimitação da sua competência.

Sintetizando a ideia vertida pelas Apelantes nas alegações recursivas, «a presente ação tem por objeto matéria cível (direito de comércio e de atividade comercial e direito de propriedade) da exclusiva competência do tribunal judicial, nos termos do art. 40, nº 1, da LOSJ e do art. 64, nº 1, do CPC. As questões constitucionais suscitadas na causa de pedir correspondem aos próprios direitos que se pretendem defender. Os pedidos relativos à constitucionalidade são instrumentais e o pedido de reconhecimento do direito de exercício da atividade e da manutenção da propriedade é o pedido fundamental».

Admitindo que os pedidos poderiam ter sido concebidos de outro modo, sustentam que, ainda assim, estes estão numa relação de identidade com a causa de pedir e merecem tutela judicial, porque «aquela legislação, no que respeita às normas concretamente limitativas apontadas na p.i., constituem apropriação de bens alheios, confisco e restrição arbitrária da sua atividade económica», não sendo a ação constitutiva, como se afirmou na sentença recorrida, já que o Estado não é condenado a revogar a lei, mas tendo a natureza de simples apreciação positiva: «Aprecia o direito de as Autoras exercerem atividade comercial, de fazerem seus, conservarem, transacionarem ou entregarem para reciclagem bens com valor económico, embora classificados de resíduos, nos termos do art. 10, nº 3, a), do CPC».

Vejamos.

As apelantes creem que a qualificação da ação que propuseram como sendo uma ação de simples apreciação e a modificação do pedido formulado na alínea c), por forma a que em vez de “Autorize as Autoras a”, passe a ler-se “reconheça às Autoras o direito de”, determinaria o prosseguimento da ação, mas, a nosso ver, não têm razão.

Com efeito, conforme se sumariou no aresto do Supremo Tribunal de Justiça de 25.11.2008 [---]«[o] autor que intenta uma acção de simples apreciação tem de demonstrar o seu interesse em propor a acção, a sua necessidade em obter a declaração judicial da existência ou inexistência de um direito ou de um facto.

Tendo as acções de simples apreciação por único objectivo pôr termo a uma situação de incerteza, só é legítimo o recurso a este tipo de acções quando o autor estiver perante uma incerteza real, séria ou objectiva, de que lhe possa resultar um dano».

Também no acórdão deste Tribunal da Relação de 02.10.2018 [---], se concluiu naqueles termos – num caso em que se confirmou a decisão recorrida que havia absolvido o réu da instância por falta de interesse em agir dos ali autores que haviam peticionado a declaração da existência do seu direito legal de preferência –, salientando o já afirmado pelo nosso mais Alto Tribunal, e a lição da doutrina, ponderando que «[na acção declarativa de simples apreciação, “não se exige do réu prestação alguma, porque não se lhe imputa a falta de cumprimento de qualquer obrigação. O autor tem simplesmente em vista pôr termo a uma incerteza que o prejudica: incerteza sobre a existência de um direito” (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, pág. 15). Como justificação das acções de simples apreciação, escreve ainda o mesmo autor (R.L.J. Ano 80º- 231): “o estado de incerteza sobre a existência de um direito ou de um facto é susceptível de causar prejuízo a uma pessoa; deve, por isso, pôr-se à disposição dessa pessoa um meio de se defender contra tais prejuízos. Esse meio é a acção declarativa. Quer dizer, o prejuízo inerente à incerteza do direito ou do facto legitima e justifica o uso da acção de simples declaração positiva ou negativa”.

Com efeito, este pressuposto processual, «consiste em o direito do demandante estar carecido de tutela judicial. É o interesse em utilizar a arma judiciária – em recorrer ao processo. Não se trata de uma necessidade estrita, nem tão-pouco de um qualquer interesse por vago e remoto que seja; trata-se de algo de intermédio: de um estado de coisas reputado bastante grave para o demandante, por isso tornando legítima a sua pretensão a conseguir por via judiciária o bem que a ordem jurídica lhe reconhece» [
MANUEL DE ANDRADE prefere o termo “interesse processual”, também usado por CALAMANDREI (págs. 79 e 80). [...]]. [...]

Por seu turno, no sumário do Acórdão do TRP de 10.01.2022 [---], enfatizou-se que o interesse processual ou interesse em agir, «tem como finalidade limitar a liberdade de ação do Autor para agir em juízo por forma a, circunscrevendo o direito de ação às situações objetivamente carecidas de tutela jurisdicional, garantir a eficácia e o prestígio dos tribunais, aos quais se reservam, apenas, os casos de objetiva necessidade, merecedores de tutela judicial.

Aferindo-se face à petição inicial, para que se verifique tal pressuposto processual tem o Autor de invocar situação justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo para nele fazer valer direito seu carecido de tutela judiciária.

Os princípios constitucionais do acesso ao direito e à justiça impõem solução equilibrada, por proporcional e adequada, que não vede o acesso necessário ou útil nem permita o acesso supérfluo e inútil».

Ora, revertendo estes ensinamentos à situação em apreciação, mesmo que se admitisse que a presente ação – tendo em conta apenas aquele pedido de reconhecimento do direito das autoras a exercerem a sua atividade comercial nos termos ali concretizados e a causa de pedir formulados –, configurasse uma ação de simples apreciação (positiva), por ter por fim obter unicamente a declaração da existência desse direito (cfr. artigo 10.º, n.ºs 2 e 3, alínea a) do CPC), a verdade é que não seria legítimo às autoras o recurso a esse tipo de ação para os fins em vista, por não estarem perante uma situação de incerteza objetiva sobre a existência desse seu direito. De acordo com a sua própria alegação, trata-se de direito que tinham na sua esfera de atividade antes da alteração legislativa que o veio retirar. Portanto, as autoras sabem bem que atualmente, mercê da alteração legislativa contra a qual se insurgem na presente ação, não têm o direito cujo reconhecimento pretendem seja feito por via desta demanda.

Como assim, não haveria qualquer situação de incerteza real que prejudicasse as Autoras, donde não se verificaria a necessária justificação/utilidade para o recurso à ação de simples apreciação, o que sempre determinaria (pelo menos) o mesmo resultado a que chegou o tribunal a quo: a absolvição da instância dos réus, desta feita, com fundamento na falta desse pressuposto processual inominado, que não se confunde com o interesse subjetivo que as autoras possam ter na prossecução de uma atividade comercial que antes exerciam e cujo exercício o legislador lhes vedou. [...]

Na realidade, o cerne da questão decidenda, independentemente das vestes com que as Apelantes a apresentam, é tão-somente a de saber se, a pretexto da invocação de direitos tutelados pela Constituição e pelo Código Civil, podem ser postos em crise atos legislativos, em si mesmo considerados, por via de pretensão formulada nos tribunais comuns que na sua essência se consubstancia na não aplicação às autoras das invocadas normas legais. Dito de outro modo, in casu está em causa aquilatar se a ordem jurídica reconhece às autoras o direito a instaurarem uma ação que tenha como escopo o reconhecimento pelos tribunais judiciais, sem existência de um concreto litígio, do seu direito a exercerem uma atividade comercial cuja possibilidade de exercício tinham anteriormente, mas cuja prática a lei que entendem ser inconstitucional e ilegal, lhes vedou.

Aventam ainda as Apelantes que «caso tivesse sido pedida indemnização (nos termos da lei 67/2007), à causa de pedir atual estaria subordinada a do prejuízo, e a ação implicaria a simples apreciação (da causa principal e da subordinada) e a consequente condenação (na indemnização)».

Pois bem, são as mesmas que avançam com fundamento que desfavorece até a defesa da sua tese. Com efeito, se as Apelantes tivessem peticionado uma indemnização nos sobreditos termos, havia notoriamente interesse em agir, mas os tribunais competentes para o dirimir seriam os tribunais administrativos, que poderiam então incidentalmente conhecer das invocada inconstitucionalidade e ilegalidade.

A questão é, pois, de competência material, e a resposta não pode deixar de ser negativa, sem que de tal decorra qualquer violação do direito constitucional de acesso à justiça, que não assume um caráter absoluto, nem acolhe um recurso incondicionado aos tribunais que, sem a existência de um litígio subjacente, permita que os particulares aos mesmos se dirijam visando o reconhecimento de um direito que se reconduz afinal à pretensão de uma declaração judicial que lhes permita o exercício de uma atividade que o legislador entendeu dever vedar-lhes.

Com efeito, conforme o Tribunal Constitucional [
Cfr., a título meramente exemplificativo, e convocando anteriores arestos no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal Constitucional de 08.10.2013, proferido no processo n.º 272/12, 3.ª Secção [...]] tem vindo reiteradamente a afirmar, «o artigo 20.º da CRP garante a todos o direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, impondo igualmente que esse direito se efetive – na conformação normativa pelo legislador e na concreta condução do processo pelo juiz - através de um processo equitativo (n.º 4).

Como o Tribunal Constitucional tem repetidamente sublinhado, o direito de acesso aos tribunais é, entre o mais, o direito a uma solução jurídica dos conflitos a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e independência, mediante o correto funcionamento das regras do contraditório (acórdão n.º 86/88, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11º, pág. 741). (…) (entre muitos outros, o acórdão n.º 1193/96).

Importa reter, no entanto, que o legislador dispõe de uma ampla margem de liberdade na concreta modelação do processo, cabendo-lhe designadamente ponderar os diversos direitos e interesses constitucionalmente relevantes. (…)

«O direito de acesso aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos e obtenção de uma sua tutela jurisdicional, plena e efetiva, constitui um direito ou garantia fundamental que se encontra consagrada no art.º 20.º da Constituição. Mas daí não decorre que seja um direito absoluto, de uso incondicionado. Desde logo, ele consente as restrições que caibam nos parâmetros estabelecidos nos n.ºs 2 e 3 do art.º 18.º da CRP. (…) Ponto é que esses condicionamentos, pressupostos e prazos não se revelem desnecessários, desadequados, irrazoáveis ou arbitrários, e que não diminuam a extensão e o alcance do conteúdo desse direito fundamental de acesso aos tribunais” (Acórdão n.º 178/2007)».

Ora, nesses condicionamentos enquadram-se as regras atinentes à competência material.

Conforme enfatizam JOÃO DE CASTRO MENDES e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA [
In Manual de Processo Civil, vol. I, AAFDL EDITORA, Lisboa, 2022, págs. 141.], «[a] competência é, grosso modo, a adstrição a certo tribunal de certa categoria de processos. Vista pelo ângulo do tribunal, a competência pertence à organização judiciária e como tal é regulada pelas leis de organização judiciária (art. 37.º, n.º 1, 40.º, 41.º e 42.º, n.º 1 e 2 da LOSJ) e, por vezes, pelo CPC (art. 65.º e 66.º)».

Assim, perante um caso concreto em que se suscite a questão da delimitação da jurisdição competente, a primeira tarefa é determinar qual a específica matéria em causa, já que é por esta que se afere a competência.

Ora, decorrendo do artigo 64.º do CPC que “[s]ão da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”, a delimitação da competência material dos tribunais judiciais faz-se pela negativa, tratando-se de uma competência residual, cabendo a estes tribunais julgar os feitos que não estejam cometidos a outras ordens jurisdicionais. Donde, havendo competência positiva no confronto com outras jurisdições, fica afastada a competência material genérica ou residual dos tribunais comuns. [...]

Na esteira da mais autorizada doutrina, a jurisprudência dos Tribunais Superiores, e designadamente do Tribunal de Conflitos, tem repetidamente enfatizado que «[a] competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo» [Cfr., Acórdão de 01.10.2015, proferido no processo n.º 08/14, e mais recentemente, evidenciando a dita uniformidade, o já acima indicado aresto.].

A forma como as Autoras estruturaram a causa e a(s) pretensão(ões) deduzida(s), já acima consta no relatório, e foi por nós delimitada, não divergindo da forma como as próprias Apelantes a circunscrevem: as Autoras pretendem que o tribunal comum lhes reconheça o direito a exercerem a sua atividade comercial com uma amplitude que a lei lhes vedou. Para aquele efeito, pugnam pela inconstitucionalidade e ilegalidade da alteração legislativa que limitou aquela atividade tal como a exerciam, e que peticionaram, sem que, porém, esteja subjacente a esta causa um verdadeiro litígio.

Para o efeito, avançaremos desde já que os tribunais administrativos não são competentes.

Na realidade, o artigo 212.º, n.º 3, da CRP, e o artigo 1.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais [---], estabelecem respetivamente que aquela categoria de tribunais tem competência para o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, «nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto», sendo essa competência aferida à data da propositura da ação [---]. [...]

Dispõe, na parte pertinente, o referido preceito legal que:

«1. Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto: d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos».

Porém, como se observa no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 09-06-2022 [---], no quadro da enunciação e definição de critérios de diferenciação entre atos legislativos e atos administrativos, «não é possível proceder à impugnação direta nos tribunais administrativos de atos praticados no exercício da função legislativa, salvo se esses atos emanados sob a forma de atos legislativos contenham, todavia, decisões materialmente administrativas e que, por isso, sob o ponto de vista material não constituam atos emitidos no quadro daquela função [cfr. arts. 268.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP), e 52.º, n.º 1, do CPTA], (…). [E]staremos em presença de um ato materialmente legislativo quando este introduz na ordem jurídica disciplina normativa reveladora de uma opção primária e inovadora, que tem como parâmetro de validade a Constituição ou outras leis que, por força daquela, sejam pressuposto normativo necessário ou que por outras devam ser respeitadas [cfr. n.º 3 do art. 112.º da CRP], e isso «independentemente de saber se essa materialidade se exprime com caráter geral e abstrato, visando destinatários determináveis ou indetermináveis ou através de uma determinação individual e concreta» (…)».

Adverte-se ainda no citado aresto, citando SÉRVULO CORREIA e FRANCISCO PAES MARQUES [
In “Noções de Direito Administrativo”, vol. I, 2.ª edição, (2021), págs. 40, 44, 46 e 47.] que “«nem a generalidade e abstração podem considerar-se propriedades necessárias dos atos legislativos, nem a individualidade e concretude são insuscetíveis de constituir traços exclusivos dos atos da função administrativa» e que a primariedade da disciplina legislativa «é inegável a sua importância na caraterização da função legislativa», sendo que é «na lei que se positiva juridicamente a definição pelo Estado dos fins últimos da comunidade que seguidamente preside ao desempenho aplicativo das funções jurisdicional e administrativa», presente que «quando se queira concentrar numa fórmula definitória … a essência da função legislativa em face das outras funções do Estado, se impõe manter as vertentes orgânica, formal e hierárquica, sem as quais esta atividade perderia a feição que a Constituição lhe confere, mas circunscrevendo-lhes o âmbito em função da primariedade da disciplina preceituada, ainda que se reconheça a presença desta também nos atos legislativos de desenvolvimento de leis», já que «em face da abertura ou incompletude dos princípios ou das bases gerais dos regimes jurídicos contidos em leis que a eles se circunscrevam, os decretos-leis … que os desenvolvem se mantêm ainda na área da definição de uma disciplina primária», tanto mais que «se a intensa especificidade da disciplina primária poderá disciplinar excecionalmente (na “lei-medida”) a generalidade e abstração do ato legislativo, estas constituirão em regra um seu atributo» dado que «a primariedade da disciplina estatuída não constitui hoje exclusivo do ato legislativo, a convocação desta para a caraterização da função legislativa só faz sentido graças à sua conjugação com os critérios formal e hierárquico», definindo a função legislativa como a «atividade estadual exercida pela Assembleia da República, pelo Governo … sob as formas de lei, decreto-lei …, consistindo na estatuição de normas jurídicas providas de superioridade hierárquica quanto a quaisquer outras normas jurídicas internas de valor infraconstitucional, caraterizadas pela primariedade da disciplina estabelecida em um só diploma ou também através de desenvolvimento de leis e princípios e bases gerais, e revestidas de generalidade e abstração a menos que a intensa especificidade de uma disciplina primária as dispense»”.

Não sofre dúvidas que as disposições legais cuja inconstitucionalidade e ilegalidade as Autoras colocam em causa, são de considerar-se como atos legislativos, estando, portanto, a apreciação da sua inconstitucionalidade e legalidade qua tal subtraída à jurisdição administrativa e à jurisdição comum, na decorrência do princípio da separação de poderes e da necessidade de distinção substancial entre as funções estaduais, e mais concretamente entre a função legislativa e a função judicial.

Consequentemente, e enquanto ato legislativo emanado do órgão competente, não pode a vontade do legislador expressa em letra de lei ser afastada pelos tribunais comuns – o que necessariamente ocorreria para dar procedência ao pedido formulado em c) –, senão no âmbito do quadro legal vigente.

A primeira instância, em decisão profusa e corretamente fundamentada com recurso aos ensinamentos da mais autorizada doutrina, afastou a competência material dos tribunais comuns para decisão dos pedidos formulados em a) e b).

Dissentem as Apelantes invocando que «[a] questão da constitucionalidade das leis cabe obviamente na competência do tribunal cível e é suscitada em concreto pelas Autoras – em concreto, na medida que diz respeito à sua atividade concreta, à atividade que estão expressamente proibidas de exercer como exerciam até à entrada em vigor da lei impugnada, melhor especificada na p.i., à propriedade que perdem, etc., entendimento extensivo às questões da ilegalidade também suscitada na p.i. As matérias de direito europeu são matérias de direito interno que cabem na competência dos tribunais portugueses, embora com reenvio em certos casos especiais».

É certo, mas o modo como vem colocada a questão já não é o correto.

Com efeito, não se reportando a um concreto litígio, é a pretensão deduzida pelas Apelantes que não é da competência material dos tribunais judiciais, por constituir uma forma encapotada de fazer entrar pela janela aquilo a que o legislador fechou a porta.

Na realidade, a fiscalização concreta da constitucionalidade não se confunde com o facto de ser a “concreta atividade” das autoras que foi afetada pelos indicados atos legislativos. O ponto está em que, o reconhecimento do direito que as Autoras pretendem ver efetuado pelo tribunal comum, configura, em rigor, uma apreciação abstrata da constitucionalidade das normas em questão, cuja competência o legislador constituinte reservou ao Tribunal Constitucional, já que, nos termos do disposto no artigo 281.º, n.º 1, al. a) da CRP, é o Tribunal Constitucional o único órgão jurisdicional com competência para apreciar e declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das referidas normas. Porém, as entidades com poder geral de pedir a fiscalização abstrata são o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República, o Primeiro-Ministro, o Provedor de Justiça, o Procurador-Geral da República e um décimo dos Deputados à Assembleia da República, nos termos previstos no artigo 281.º, n.º 2, als. a) a f) da CRP. Como as Autoras carecem de legitimidade para tal pedido, não podem obviamente vir obter a mesma finalidade por via do seu conhecimento, ainda que incidental nestes autos, onde, como se disse e repete, não existe um litígio para dirimir.

Como impressivamente se observou no Acórdão do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 03.06.2020 [---]: «(…) II - A impugnação directa da constitucionalidade e legalidade das normas, com autoridade para a declaração da sua inconstitucionalidade ou ilegalidade com força obrigatória geral, deve ser submetida, em exclusivo, à apreciação do Tribunal Constitucional, no âmbito da sua competência para a fiscalização abstracta; aos tribunais apenas compete desaplicar as normas aplicáveis à resolução das questões suscitadas nos casos concretos, com fundamento na sua inconstitucionalidade, se houver um nexo incindível entre a questão de constitucionalidade e a decisão da causa (arts.204.º, 280.º n.º 1 al. a) e 281.º n.º 1 C.R.P.)».

Subscreve-se, pois, o entendimento expresso na decisão recorrida que os pedidos formulados não reúnem os requisitos para que o Juízo Local Cível os possa apreciar, usando da competência para fiscalização concreta da constitucionalidade, nos termos do disposto nos artigos 204.º e 280.º da CRP, respigando-se os seguintes segmentos por absolutamente elucidativos do infundado da pretensão das recorrentes.

«Nas palavras de JORGE MIRANDA (Manual de Direito Constitucional, vol. III, Tomo VI, Coimbra Editora, 2014, pág. 244-245) a fiscalização concreta da constitucionalidade significa que: «a) Todos os tribunais, seja qual for a sua categoria (art. 209.º), exercem fiscalização (…); b) Por conseguinte, todos os juízes são necessariamente juízes constitucionais (…); c) A fiscalização dá-se nos “feitos submetidos a julgamento”, nos processos em curso em tribunal, incidentalmente, não a título principal; d) Ninguém pode dirigir-se a tribunal a pedir a declaração de inconstitucionalidade de uma norma, mas (…) é admissível que alguém se lhe dirija propondo uma ação tendente à declaração, à realização ou à reparação de um seu direito ou interesse, cuja procedência depende de uma decisão positiva de inconstitucionalidade; e) A questão de inconstitucionalidade só pode e só deve ser conhecida e decidida na medida em que haja um nexo incindível entre ela e a questão principal objeto do processo, entre ela e o feito submetido a julgamento; f) Trata-se de questão prejudicial imprópria, porque questão que se cumula com a questão objeto do processo e cujo julgamento cabe ao mesmo tribunal, não se devolve para outro processo ou para outro tribunal. (…); g) O juiz conhece da questão em qualquer fase do processo e, por conseguinte, a sua decisão pode não ser uma decisão final (pode ser o despacho saneador ou a decisão sobre reclamação) (…)».

Resulta, assim, das palavras do Insigne Professor, que não é constitucionalmente admissível o pedido a título principal, a um tribunal judicial, da declaração de inconstitucionalidade formulado pelas Autoras (…)

Por fim, acresce que, as normas contidas nos artigos 10.º, n.º 3, a contrario, e o artigo 117.º, n.º 1, als. u) e bb) e n.º 2, als. c) e p) até x), do RGGR, aprovado pelo anexo i do Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10 de dezembro, e os artigos 59.º, n.º 4, al. g), e 65.º, n.º 2 RGFER, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 152-D/2017, são lei em sentido material e em sentido formal, que provieram de órgão com competência legislativa (o Governo), nos termos do artigo 112.º, n.º 1 da CRP, aprovados ao abrigo do artigo 198.º, n.º 1, al. a) da CRP, sendo pois o seu conteúdo constituído de normas jurídicas, isto é, comandos gerais, por se dirigirem a uma generalidade de destinatários, e abstratos, por regularem um número indeterminado de casos. [...]

Compulsada toda a petição inicial, cuja síntese se deixou no relatório, para o qual se remete por razões de economia da presente decisão, inexiste a invocação por banda das Autoras de qualquer litígio existente entre estas e os Réus, que exija, por este Juízo Local Cível, a aplicação, num primeiro passo, das normas contidas nos artigos 10.º, n.º 3, a contrario, e 117.º, n.º 1, als. u) e bb) e n.º 2, als. c) e p) até x), do RGGR, aprovado pelo anexo i do Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10 de dezembro, e nos artigos 59.º, n.º 4, al. g), e 65.º, n.º 2 RGFER, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 152-D/2017, de 11 de Dezembro.

Assim, pressuposto da fiscalização concreta da constitucionalidade das normas citadas, por este Juízo Local Cível, era, como já se deixou transparecer, a existência de um «feito submetido a julgamento» (cfr. artigo 204.º da CRP), de um litígio, de um caso concreto, que exigisse, para a sua decisão, a ponderação entre a aplicação da estatuição das referidas normas, por um lado, e a apreciação conforme ou desconforme das mesmas com as normas e os princípios constitucionais que daquela aplicação resultaria, funcionando aquela aplicação ou desaplicação como resultado do pedido principal e este juízo ponderativo de constitucionalidade como efeito do pedido incidental.

Na verdade, o que sucede, é que as Autoras se limitam a peticionar, a título principal, que seja declarada a inconstitucionalidade daquelas normas, constituindo esta a questão principal objeto do processo, quando deveria constituir a questão incidental (se principal houvesse, o que não se verifica). É ostensivo que não é invocado nenhum litígio inter partes, mas sim a inconstitucionalidade propriamente dita de várias normas contidas nos referidos diplomas, o que determina a incompetência material deste Juízo Local Cível para conhecer deste pedido das Autoras».

E é por esta razão que a pretensão deduzida pelas Apelantes não pode proceder, independentemente da apresentação que do seu caso tentam fazer, agora perante este Tribunal."

[MTS]