"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



24/07/2024

Jurisprudência 2023 (220)

 
Direito à prova;
prova ilícita


1. O sumário de RG 19/12/2023 (3628/22.4T8VCT-A.G1) é o seguinte:

I - O direito à prova não é absoluto nem ilimitado, antes contém limitações de natureza intrínseca e extrínseca.

II - Numa ação em que está em causa a ilisão da presunção estabelecida no art. 1724º do Cód. Civil, não é de admitir a junção aos autos, pelo réu, de duas missivas endereçadas à autora pelo seu pai, sem o consentimento do remetente e da destinatária, se tais missivas, além de revestirem um conteúdo circunscrito ao âmbito familiar, filial e privado – abrangido, portanto, pelo direito à reserva da intimidade da vida privada e do sigilo da correspondência (arts. 26º, n.º 1 e 34º da CRP) – não se revelarem o único meio tendente a provar a facticidade controvertida, nem se afigurarem de valor probatório fundamental para a prova dos factos controvertidos.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A autora, ora recorrida, na ação declarativa que instaurou pretende ver reconhecida: i) a titularidade a seu favor das participações sociais de duas sociedades comerciais que identifica; ii) que a casa de morada de família foi adquirida na proporção de um terço, com dinheiro próprio da autora, devendo por isso ser ilidida a presunção de meação da titularidade e ser declarado que a autora é proprietária de dois terços do imóvel, descrito na Conservatória do Registo Predial ... ...43/...; iii) que o imóvel correspondente ao prédio rústico, composto por bouça de mato e pinheiros, sito no lugar ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...36/..., é bem próprio da autora, procedendo-se ao registo respetivo; iv) que os veículos automóveis foram adquiridos na constância do casamento, que por isso são bens comuns.

Através da referida ação da qual emerge o presente recurso pretende a autora demonstrar que as descritas verbas descritas [sic] – com exceção da verba n.º 1 e 2 da reclamação (veículos), que é comum –, são bens próprios da autora, propondo-se para tanto ilidir a presunção estabelecida no art. 1724º do Cód. Civil.

Entre outros meios de prova indicados, a autora juntou aos autos, com a sua petição inicial, uma declaração, datada de 30 de junho de 2020, subscrita pelos pais, na qual estes declaram os bens que doaram às suas filhas durante a vigência dos seus casamentos (cfr. documento de fls. 35 e 36 do recurso).

O réu, no sentido de contrariar a veracidade do ter [sic] da aludida declaração emitida pelos pais da autora, juntou com a contestação, entre o mais, duas missivas endereçadas à autora pelo pai desta (intitulados documentos nºs. ... e ...0), sendo uma delas datada de .../... de 2007 e uma outra, incompleta, da qual não se evidencia a data (cujas cópias constam de fls. 73 e 74 do recurso).

Opôs-se a autora à junção das duas missivas, alegando tratar-se de correspondência pessoal da demandante e que a conduta do réu é violadora dos princípios de privacidade de correspondência e dos direitos da autora.

Esta posição veio a ser acolhida na decisão recorrida, tendo a Mm.ª Juíza “a quo” considerado «estar em causa correspondência dirigida a uma das partes e que foi junta aos autos pela contraparte, estando em causa a reserva da correspondência e da intimidade da vida privada», pelo que determinou o desentranhamento dos documentos em causa e a sua devolução ao réu apresentante.

Do assim decidido discorda o Réu e daí a dedução do presente recurso.

Urge desde logo questionar: estaremos perante uma situação de “prova ilícita em si mesma”, ou seja, aquela cuja utilização, independentemente do modo de obtenção, suscita problemas de ilicitude?

Como já vimos, no caso sub judice estão em causa duas missivas (cartas) endereçadas à autora pelo seu pai.

Desconhece-se como tais missivas entraram na posse do réu, alegando este que a correspondência em causa foi do seu conhecimento directo e pessoal, ao passo que a autora indica que o réu se apropriou dessa correspondência pessoal recebida dos seus pais, sem o seu consentimento.

Tais missivas não foram endereçadas com a expressa menção de confidencialidade – tendo em consideração o que delas resulta.

Contudo, como já vimos, a natureza confidencial da carta não tem necessariamente de resultar de forma expressa, podendo essa declaração ser tácita, nos termos do disposto no art. 217º, n.º 1, do CC.

A favor da natureza confidencial das missivas sobreleva desde logo o tom intimista, pessoal e privado que às mesmas subjaz, sendo o doc. ... encabeçado como se de um “desabafo” do remetente se tratasse pelo qual pede desculpa, em que o pai da autora, dirigindo-se à autora, tece variadas considerações sobre o modo de vida do casal, revelando angústias e inquietações e não deixando de apelar aos afectos/coração. Trata-se de uma missiva que tem subjacente o relacionamento afetivo entre o progenitor e a descendente, em que aquele, no fundo, em jeito de desabafo, enuncia preocupações que lhe vão na alma.

A segunda missiva (doc. ...0) tem também um caráter intimista e pessoal, aludindo a características e/ou atributos que o remetente atribui à autora – “sempre soube escolher os amigos (…)”; “é amiga fiel do seu marido (…)” –, à família que a autora e o então marido constituíram – desse amor “nasceram dois filhos que são para eles e para os avós a grande esperança (…)” –, bem como ao facto do casal ter adquirido casa em local onde o remetente sempre sonhou para eles e de a decoração interior da casa traduzir «um conjunto harmonioso de bom gosto e tranquilidade» e que “mais parece magia”.

Diversamente do propugnado pelo recorrente, as duas missivas não têm como destinatários ambos os membros do então casal formado pela autora e réu, mas tão só a autora, filha do remetente. Isto não obstante no seu teor se faça menção ao Réu, enquanto membro do casal [“tu e o BB (…)”; “A DD é amiga fiel do seu marido (…)”; “Do Amor da DD e do BB (…)”].

Estão em causa, por conseguinte, duas cartas dirigidas pelo pai à filha cujo conteúdo se circunscreve ao âmbito familiar, filial e privado.

Tendemos, assim, a considerar estarem em causa missivas de natureza confidencial.

Além de que versam sobre a reserva da intimidade da vida privada da autora.

Por outro lado, ao redigi-las, tendo em conta o seu teor e a sua natureza, nomeadamente as angústias, os receios, as emoções e os sentimentos neles expressos, pressupondo um animus confidendi entre o remetente e a destinatária, não é crível que o seu autor tivesse em mente que as mesmas pudessem ser divulgadas ou exorbitar do âmbito pessoal da sua destinatária. Essa convicção sai reforçada se tivermos em consideração que as referidas missivas mais não correspondem do que a um “desabafo” do remetente – como numa delas é expressamente referido – e os desabafos, para mais íntimos, por regra, estão reservados a pessoas que mereçam extrema confiança.

Releva também o facto de as missivas juntas pelo réu serem da autoria de alguém estranho à ação, no caso o pai da autora (então sogro do réu), e não consta que o réu tenha cuidado de obter a anuência ou autorização do autor das mesmas para essa junção, tão pouco da destinatária de tais cartas.

Estando a destinatária (autora) vinculada ao segredo da correspondência, por maioria de razão tal sigilo estende-se a um terceiro, como seja o caso do réu.

Nesta ponderação sobreleva também o facto de as referidas missivas não se revelarem o único meio tendente a provar a facticidade controvertida.

Não está igualmente em causa a aquisição de um meio de prova sobre factos que dificilmente poderiam ser provados por outra forma.

Tão pouco os documentos cuja junção se pretende se afiguram de valor probatório fundamental para a prova dos factos controvertidos e, consequentemente, para o desfecho da acção.

Assim, tal divulgação, por desnecessária, constitui uma abusiva intromissão da vida privada e a violação do direito à correspondência de terceiros (cfr. arts. 75º do CCivil e 26º da Constituição).
Estamos, portanto, neste caso, perante uma situação de utilização injustificada da prova.

Conclui-se desta forma que, para além de se configurar no caso uma abusiva intromissão na vida privada e de violação do sigilo da correspondência, à luz da valoração da prova em causa e da ponderação de interesses não se justifica a junção aos autos dos documentos nºs. ... e ...0 apresentados com a contestação."

[MTS]