"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



31/07/2024

Jurisprudência 2023 (225)

 
Certificados de aforro;
prescrição


1. O sumário de RL 21/12/2023 (23037/22.4T8LSB.L1-6) é o seguinte:

- O processo civil norteia-se pelo princípio do dispositivo, segundo o qual, com algumas excepções, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas (art.º 5.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e não provados (art.º 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil). Em princípio, não é lícito ao juiz ao resolver o litígio socorrendo-se de factos não alegados pelas partes, com as excepções expressamente previstas na lei (vg. factos notórios).- Relativamente à série de certificados de aforro, denominada «série B», o Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho, estabeleceu que são nominativos, reembolsáveis, só transmissíveis por morte e assentados apenas a pessoas singulares.

- Actualmente, por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de 10 anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem, efectivada pela emissão de novos certificados, que manterão a data da emissão dos que lhes deram origem, ou o respectivo reembolso, pelo valor que o certificado tiver à data em que o reembolso for autorizado.

- Para a contagem desse prazo, deverá ser adoptado o sistema subjectivo, que considera que respectivo início só se dá quando o credor tenha conhecimento dos elementos essenciais relativos ao seu direito.

- O Estado não pode impor aos herdeiros um dever de exaustiva procura de bens e direitos do de cujus, quando nada indiciará a sua existência.

- Para a procedência da excepção de prescrição do artigo 7.º, do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho, seria necessário que a ré alegasse e demonstrasse que decorreram dez anos desde o momento em que os herdeiros, após a aceitação da herança, tiveram conhecimento que os certificados de aforro da série B a integravam, até ao momento em que requereram a transmissão da titularidade ou o resgate.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"3.4. Uma vez que a ré não questionou o direito de MC titulado pelos certificados de aforro e se mostra demonstrada a habilitação-legitimidade dos autores para que lhes seja reconhecida a transmissão desse direito ou o reembolso, o recurso está centrado nas conclusões relativas à questão da excepção de prescrição.

O artigo 14.º, do Decreto-lei 43453, de 30 de Dezembro, autorizou o Ministro das Finanças a mandar emitir, por intermédio da Junta do Crédito Público e nos termos a estabelecer, títulos da dívida pública nominativos e amortizáveis, denominados certificados de aforro, destinados a conceder uma aplicação remuneradora aos pequenos capitais.

Relativamente à série de certificados de aforro, denominada «série B» - que é o caso sub judice – o Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho, estabeleceu que são nominativos, reembolsáveis, só transmissíveis por morte e assentados apenas a pessoas singulares. Mais ainda, o artigo 7.º, desse diploma estabelecia que:

1 - Por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de cinco anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem, efectivada pela emissão de novos certificados, que manterão a data da emissão dos que lhes deram origem, ou o respectivo reembolso, pelo valor que o certificado tiver à data em que o reembolso for autorizado.
2 - Findo o prazo a que se refere o número anterior, consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos respectivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições em vigor relativas à prescrição.
 
Esse n.º 1, do artigo 7.º, foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 122/2002, de 4 de maio, que lhe conferiu a seguinte redacção:

1 - Por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de 10 anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem, efectivada pela emissão de novos certificados, que manterão a data da emissão dos que lhes deram origem, ou o respectivo reembolso, pelo valor que o certificado tiver à data em que o reembolso for autorizado.

Esse mesmo Decreto-Lei n.º 122/2002, de 4 de maio, também estipulou que: “Aplicam-se aos certificados de aforro as disposições gerais relativas à prescrição dos juros e do capital de empréstimos da dívida pública, constantes da Lei n.º 7/98, de 3 de Fevereiro” – art.º 7.º.

Por último, o Decreto-Lei n.º 47/2008, de 13 de Março, conferiu a seguinte redacção ao artigo 7.º, do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho:

1 - Por morte do titular de um certificado de aforro, podem os herdeiros requerer, dentro do prazo de 10 anos:
a) A transmissão da totalidade das unidades que o constituem; ou
b) O respectivo reembolso, pelo valor que o certificado tenha à data em que o reembolso seja autorizado(…).
 
O tempo é um importantíssimo facto jurídico que pode afectar as relações jurídicas de várias formas, nomeadamente em termos de extinção de direitos. O artigo 297.º, do Código Civil, estabelece que:

1. Estão sujeitos a prescrição, pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei, os direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos de prescrição.        
2. Quando, por força da lei ou por vontade das partes, um direito deva ser exercido dentro de certo prazo, são aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição.

Por outro lado, o artigo 306.º, n.º 1, do mesmo código refere que: O prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido; se, porém, o beneficiário da prescrição só estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a interpelação, só findo esse tempo se inicia o prazo da prescrição.

Subjacente a este instituto temos os princípios basilares da segurança e certeza, pressupondo, geralmente, a inércia do titular do direito.

Vistas estas considerações, desde já importa afirmar que a consagração de um prazo prescricional de 5 anos, depois alargado para 10 anos, não se traduz em qualquer favorecimento ou protecção dos titulares dos certificados de aforro, mas sim da entidade emitente. Esta é que beneficia da significativa redução do prazo ordinário de prescrição (extintiva) de 20 anos (art.º 309.º, do Código Civil) para 10 anos (em vigor no momento em que faleceu o titular dos certificados de aforro).

Ao contrário do que a apelada defende, não se vislumbra que o legislador tenha optado pela contagem do prazo a partir do momento do falecimento do titular. Pelo menos, essa alegada opção não é clara ou expressa. A lei extravagante não refere o momento a partir do qual se deverá iniciar a contagem do prazo. A lei simplesmente menciona um evento (Por morte do titular de um certificado de aforro) e estatui um prazo (poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de 10 anos, a transmissão da totalidade das unidades ou o reembolso).

Tendo presente as altíssimas considerações e valores que norteiam estes instrumentos financeiros (o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 47/2008, de 13 de Março, apela à sua criação especificamente para captar a poupança das famílias e com distribuição directa ao retalho; difusão generalizada que levou a que hoje em dia represente cerca de 16 % da dívida em circulação do Estado; o cumprimento de uma finalidade de financiamento do Estado; e o estímulo à aplicação das poupanças familiares) seria espectável que o legislador consagrasse, de forma expressa e clara, que a morte do titular desencadearia logo a contagem do prazo especial e reduzido para o exercício dos direitos pelos seus herdeiros – se fosse essa a sua intenção – cfr. artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil. A importância social e económica do direito, a necessidade de tutelar especiosamente a confiança do público a quem é dirigido (pessoas singulares e, particularmente, as famílias) e a necessidade de acautelar a segurança deveriam consagrar essa solução. Mas a lei extravagante não estipulou o momento a considerar para o início da contagem desse prazo prescricional, pelo que teremos que recorrer às regras gerais da prescrição.

Também não oferece dúvida que o Estado pode limitar ou condicionar o direito dos subscritores dos certificados de aforro, nomeadamente reduzindo o prazo de prescrição ordinário. O acórdão do Tribunal Constitucional n.º 396/2020 citado pela apelada já se pronunciou pela não inconstitucionalidade artigo 7.º do Regime dos Certificados de Aforro Série B, mas apenas na vertente e pressupostos que estavam aí em discussão. Esse juízo esgotou-se na questão concretamente colocada ao tribunal e que difere substancialmente do presente caso, pois ali provou-se que: “Em 15-02-2006, a Autora, na qualidade de herdeira e munida da documentação necessária, dirigiu-se aos serviços da Autoridade Tributária e Aduaneira, onde participou o óbito de sua mãe e relacionou os bens por ela deixados, de onde constam os referidos Certificados de Aforro”. Ou seja, a herdeira sabia da existência dos certificados de aforro e omitiu o pedido de transmissão ou resgate. Esse pressuposto factual não se verifica no caso em apreço.

Quanto ao início da contagem do prazo, o acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 11/5/2023, citando Menezes Cordeiro, refere que, em termos de direito comparado, se observam dois grandes sistemas: o objectivo e o subjectivo.

Pelo sistema objectivo, o prazo começa a correr assim que o direito possa ser exercido e independentemente do conhecimento que, disso, tenha ou possa ter o respectivo credor. Pelo subjectivo, tal início só se dá quando o credor tenha conhecimento dos elementos essenciais relativos ao seu direito”. O sistema objectivo é o tradicional sendo compatível com prazos longos ao invés do sistema subjectivo que postula, em regra, prazos curtos.
O Código Civil optou, como regra, pelo sistema objectivo, veja-se o art.º 306º, nº1.
Há, no entanto, situações em que o Código adoptou o sistema subjectivo: a prescrição só se inicia a contar do momento em que o credor tenha conhecimento do direito que lhe compete, como sucede com os casos previstos no art.º 482º (prescrição do direito à restituição do enriquecimento, e no art.º 498º (prescrição do direito à indemnização).
No caso particular da contagem do prazo de prescrição do pedido de reembolso dos certificados de aforro, o Supremo Tribunal de Justiça, de forma unânime, que se saiba, tem seguido o sistema subjectivo, basicamente por duas ordens de razões: por a questão se colocar num contexto sucessório, e pelo fundamento específico da prescrição, a saber, a negligência do titular do direito e que, por isso, só a exigência do conhecimento da existência e titularidade do direito satisfaz o pressuposto de o direito poder ser exigido, referido no art.º 306º do CC" – disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 10463/21.5T8LSB.

Acompanha-se o entendimento desse douto aresto – aliás, no seguimento da demais jurisprudência aí citada – por ser o conforme à lei e necessariamente justo. Na verdade, o legislador nacional sentiu a necessidade de adoptar o sistema subjectivo na contagem de alguns prazos, afastando-se da solução exclusivamente objectiva. Subjacente a essa distinção está o desconhecimento por parte do titular da existência do próprio direito. A realidade sociológica evidencia que os herdeiros geralmente desconhecem em toda a extensão a universalidade que compõe a herança. O próprio legislador reconhece essa realidade e dificuldade dos herdeiros como é salientado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/2/2021 (citado no anterior aresto): “Ora, na transmissão de bens por via sucessória, os herdeiros, muitas vezes, podem não ter conhecimento da totalidade dos bens que integram o património do de cujus, realidade que se reflete em alguns aspectos do regime sucessório, como a possibilidade do herdeiro pedir judicialmente, a todo o tempo, a restituição de bens da herança a quem os possua (art.º 2075º do CC), a do legatário poder reivindicar a entrega dos bens legados sem dependência de prazo (art.º 2279º do CC), ou a previsão de partilhas adicionais, quando se verifique a omissão de bens (art.º 2122º do CC).  (…)

Assim sendo, o prazo de prescrição de 10 anos aqui em análise deve ser considerado um prazo sujeito a um sistema subjectivo, cuja contagem só se inicia quando, após a aceitação da herança, os herdeiros têm conhecimento da existência de certificados de aforro da série B no património do de cujus, sem prejuízo do decurso do prazo de prescrição ordinária, cuja contagem se inicia com a aceitação da herança, nos termos do art.º 306º do CCivil”.

O Estado – como pessoa de bem – deverá acautelar os interesses das famílias que lhe confiam as suas poupanças, particularmente nas situações de transmissão por morte da titularidade de direitos sobre certificados de aforro, não onerando os herdeiros com encargos e deveres desproporcionados, particularmente quanto a factos que desconhecem e não estão obrigados a conhecer.

A própria instituição de um registo central de certificados de aforro através do Decreto-Lei n.º 47/2008, de 13 de Março, evidencia as dificuldades no acesso à informação, se bem que não seja claro se a sua criação se deveu à premência de informar os interessados ou ao interesse do Estado na pronta prescrição dos valores de reembolso.

O Estado não pode impor aos herdeiros um dever de exaustiva procura de bens e direitos do de cujus (certificados de aforro na Agência de Gestão da Tesouraria e da Dívida Pública, contas bancárias na Suíça, imóveis em todos os Registos Prediais do país, etc.), quando nada indiciará a sua existência.

Ao contrário do que é sustentado pelos apelantes, entende-se que não se verifica a invocada nulidade da sentença por excesso de pronúncia, porquanto o tribunal foi expressamente chamado a conhecer da excepção de prescrição – o que fez dentro dos limites e com a liberdade que lhe é concedida pela lei: O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – art.º 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

No caso dos autos, o titular dos certificados de aforro, MC, faleceu no dia 23-11-2002. Para a procedência da excepção de prescrição do artigo 7.º, do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho, seria necessário que a ré alegasse e demonstrasse que decorreram dez anos desde o momento em que os herdeiros, após a aceitação da herança, tiveram conhecimento que os certificados de aforro da série B a integravam, até ao momento em que requereram a transmissão da titularidade ou o resgate.

Era à ré que competia a alegação e comprovação dos factos em que assenta a invocada prescrição – cfr. citado art.º 342.º, n.º 2, do Código Civil. Não o tendo feito, a excepção será julgada improcedente."

[MTS]