"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/07/2024

Jurisprudência 2023 (205)


Articulado superveniente; admissibilidade;
confisão ficta; efeitos


1. O sumário de RP 23/10/2023 (448/23.2T8PRT.P1) é o seguinte:

I - Ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 567º do Código de Processo Civil é legalmente admissível uma fundamentação sumária por meio de uma remissão para os fundamentos de facto e de direito vertidos na petição inicial, desde que os mesmos sejam suficientes, isto é, desde que nesse articulado constem os factos essenciais que integram a causa de pedir e bem assim as razões de direito que servem de fundamento à ação.

II - A incoerência de fundamentos jurídicos ou a impertinência de normativos invocados na decisão recorrida não integra a nulidade da sentença por falta de fundamentação mas sim, a ocorrer, um típico erro de julgamento.

III - A dedução da pretensão de reforma da sentença fora de recurso interposto, sendo a sentença reformanda recorrível, não pode ser havida como uma renúncia tácita ao recurso, constituindo antes um erro no uso de meio processual.

IV - Proferida a sentença é legalmente inadmissível a introdução de novos factos mediante articulado superveniente, pois que, como bem se vê do nº 3 do artigo 588º do Código de Processo Civil, o termo final para o oferecimento de tal peça processual é a audiência final que necessariamente precede a sentença.

V - Sempre que a fixação da matéria de facto relevante para a decisão final sob censura decorreu da inobservância pelos demandados do ónus de contestar (veja-se o nº 1 do artigo 567º do Código de Processo Civil), há uma confissão ficta da factualidade vertida na petição inicial, admitindo-se, em tese, que se discuta a reunião dos pressupostos legais para que opere esta confissão ficta, nomeadamente, a indicação da cominação aos réus aquando da citação ou, eventualmente, a ocorrência de alguma ou algumas das exceções previstas no artigo 568º do Código de Processo Civil ou até do alcance de tal confissão ficta, mas está de todo afastada uma verdadeira impugnação da decisão da matéria de facto, como previsto no artigo 662º do Código de Processo Civil, já que no caso dos autos não há uma tal decisão mas sim e apenas a confissão ficta da matéria contida na petição inicial em consequência da inobservância de um ónus processual pelos demandados.

VI - A compensação por danos não patrimoniais é fixada equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º do Código Civil.

VII - Pela sua própria natureza, os danos não patrimoniais não são passíveis de reconstituição natural e, por outro lado, nem em rigor são indemnizáveis mas apenas compensáveis pecuniariamente.

VIII - Apenas são compensáveis os danos não patrimoniais merecedores de tutela jurídica, estando afastados do círculo dos danos indemnizáveis os simples incómodos.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"3. Fundamentos
3.1 Da nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação e por omissão de pronúncia

Os recorrentes invocam a nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação de facto e de direito no que respeita a condenação do réu ao pagamento de compensação por danos não patrimoniais e por omissão de pronúncia por não se ter pronunciado sobre o pedido referente a articulado superveniente que qualificam de supletivo e formulado em sede de requerimento para reforma da sentença.

Cumpre apreciar e decidir. [...]

Debrucemo-nos agora sobre a nulidade por omissão de pronúncia, patologia que é imputada à decisão de reforma da sentença sob censura.

A decisão de reforma parcial da sentença, como se verificou no caso dos autos, integra-se na sentença reformada (artigo 617º, nº 2, do Código de Processo Civil) [---], irrelevando, a nosso ver, a circunstância de essa pretensão e decisão terem ocorrido fora de recurso interposto, como deveria ter sucedido (veja-se o nº 2 do artigo 616º do Código de Processo Civil e os nºs 1 e 2, do artigo 617º do mesmo diploma legal). Esta patologia deveria ter sido conhecida pelo tribunal recorrido e, não o tendo sido, cumpre-nos apenas constatar a anomalia.

Além disso, afigura-se-nos que a dedução da pretensão de reforma da sentença fora de recurso interposto, pois que a sentença recorrida era recorrível, não pode ser havida como uma renúncia tácita ao recurso, constituindo antes um erro jurídico a que o tribunal recorrido deu guarida ao conhecer dessa pretensão (veja-se o nº 3 do artigo 193º do Código de Processo Civil), em vez de convidar os ora recorrentes à dedução dessa pretensão através do recurso ao meio processual próprio [---].

A omissão de pronúncia na decisão de reforma resultaria, na perspetiva dos recorrentes, da circunstância de o tribunal recorrido ter omitido o despacho liminar de admissão do articulado superveniente.

No despacho em que admitiu o recurso, o tribunal a quo sustenta não se verificar esta nulidade porque, “uma vez que, por despacho de 23/03, foi determinado que os autos aguardassem o decurso de prazo de resposta por parte da autora, o que pressupõe que aquele requerimento tenha sido admitido, sendo esse (e apenas esse) o pedido formulado”.

Será assim?

Nos termos do disposto no nº 4 do artigo 588º do Código de Processo Civil, o juiz profere despacho liminar sobre a admissão do articulado superveniente, rejeitando-o quando, por culpa da parte, for apresentado fora de tempo, ou quando for manifesto que os factos não interessam à boa decisão da causa; ou ordenando a notificação da parte contrária para, querendo, responder em dez dias, observando-se quanto à resposta o disposto no artigo 587º do mesmo diploma legal.

Da previsão legal que se acaba de citar resulta que tem de haver um despacho liminar expresso de admissão ou não do articulado superveniente e que o prazo para responder ao articulado superveniente pela parte contrária só começa a correr a partir da notificação para o efeito determinada judicialmente.

Assim, para efeitos de resposta ao articulado superveniente não importa a notificação eletrónica da parte contrária realizada pelo apresentante desse articulado, apenas relevando a execução da ordem judicial de notificação da contraparte a fim de, querendo, responder, ordem proferida depois da admissão liminar daquele articulado.

Aliás, parece que nem o tribunal recorrido leva a sério a sua argumentação pois que se acaso entendesse que tinha já admitido liminarmente o articulado superveniente e que o prazo para resposta da parte contrária se iniciara com a notificação eletrónica desse articulado via citius, ficaria por explicar por que razão nada decidiu sobre essa matéria quando, nessa perspetiva, há já muito expirara o prazo para a resposta.

Parece absurdo entender, como parece sustentar o tribunal a quo, que com o oferecimento de um articulado superveniente e requerendo-se apenas a sua admissão, admitido esse articulado, de forma implícita, como entende o tribunal recorrido, nada mais haveria a decidir sobre essa matéria.

Então, se assim fosse, para que serviria o articulado superveniente?

Na lógica do tribunal recorrido e se de facto assim fosse, dada a proibição da prática de atos inúteis no processo (artigo 130º do Código de Processo Civil), em vez de uma alegada admissão implícita do articulado superveniente impunha-se a sua imediata rejeição já que, nessa perspetiva, para nada serviria a não ser para engrossar o processo...

Pelo que precede, entende-se que o tribunal recorrido omitiu na decisão de reforma da sentença recorrida despacho liminar sobre o articulado superveniente, verificando-se a nulidade parcial da decisão recorrida por omissão de pronúncia, o que, contudo, por força do disposto no nº 1 do artigo 665º do Código de Processo Civil, não obsta ao conhecimento do objeto da apelação no que esta questão respeita.

Cumpre assim proferir despacho liminar sobre o articulado superveniente “enxertado” no requerimento para reforma da sentença.

Estabelece-se no nº 1 do artigo 611º do Código de Processo Civil que, sem prejuízo das restrições estabelecidas noutros preceitos, designadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir, a sentença deve tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à instauração da ação, de modo a que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.

O instrumento processual para alcançar este desiderato legal é a figura do articulado superveniente.

De acordo com o disposto no nº 1 do artigo 588º do Código de Processo Civil, “[o]s factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitam, até ao encerramento da discussão.”

A superveniência dos factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito pode ser objetiva, ou seja, quando aqueles se verificam após o termo do prazo para oferecimento dos articulados permitidos em cada forma de processo ou subjetiva, sempre que respeite a factos ocorridos anteriormente mas de que a parte apenas teve conhecimento depois de terminarem os prazos para a apresentação dos articulados na respetiva forma processual (artigo 588º nº 2 do Código de Processo Civil).

Tem-se entendido que o articulado superveniente pode ser usado para completar a causa de pedir inicial [Neste sentido veja-se Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3ª Edição, Almedina 2022, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, página 723, anotação 6. [...]].

Tratando-se de factos subjetivamente supervenientes, a parte que oferece o articulado superveniente tem de alegar factos e oferecer prova dessa superveniência (veja-se a parte final do nº 2 do artigo 588º do Código de Processo Civil).

“O novo articulado em que se aleguem factos supervenientes é oferecido:
a) Na audiência prévia, quando os factos hajam ocorrido ou sido conhecidos até ao respetivo encerramento;
b) Nos 10 dias posteriores à notificação da data designada para a realização da audiência final, quando não se tenha realizado a audiência prévia;
c) Na audiência final, se os factos ocorreram ou a parte deles teve conhecimento em data posterior às referidas nas alíneas anteriores” (nº 3 do artigo 588º do Código de Processo Civil).

No caso dos autos, por força da revelia absoluta operante dos ora recorrentes, a tramitação processual foi abreviada, sendo proferida sentença sem que se tenha realizado audiência final.

Ora, proferida a sentença é legalmente inadmissível a introdução de novos factos mediante articulado superveniente, pois que como bem se vê do nº 3 do artigo 588º do Código de Processo Civil, o termo final para o oferecimento de tal peça processual é a audiência final que necessariamente precede a sentença.

Pelo exposto, por ostensivamente intempestivo, o articulado superveniente oferecido pelos recorrentes com o requerimento de reforma da sentença recorrida deve ser liminarmente indeferido, o que se decide.

3.2 Da alteração da decisão da matéria de facto

Os recorrentes pugnam pela alteração da decisão da matéria de facto, rectius pela sua ampliação, incluindo-se nos factos provados da fundamentação de facto da sentença a seguinte matéria:

- “As partes celebraram acordo nos termos do qual foi posto fim ao litígio, com o pagamento pelo Autor à Ré de € 265,50 e entrega pelo Autor à Ré da B...;
 
O Autor, no âmbito do referido acordo, declarou que “não existem quaisquer dívidas ou obrigações pendentes de parte a parte nesta data”.

Cumpre apreciar e decidir.

A pretensão de ampliação da decisão da matéria de facto formulada pelos recorrentes baseia-se no articulado superveniente que apresentaram em sede de requerimento para reforma da sentença recorrida e na prova documental oferecida com essa peça processual e de novo junta com a sua apelação, articulado superveniente e prova documental que não foram admitidos nesta instância.

Neste circunstancialismo processual, esta pretensão recursória está irremediavelmente votada ao fracasso total.

Ainda que assim não fosse, importa não perder de vista que a fixação da matéria de facto relevante para a decisão final sob censura decorreu da inobservância pelos ora recorrentes do ónus de contestar (veja-se o nº 1 do artigo 567º do Código de Processo Civil), havendo assim uma confissão ficta dos recorrentes da factualidade vertida na petição inicial [Discute-se na doutrina se são ou não aplicáveis a esta confissão ficta as causas de nulidade e de anulabilidade previstas no artigo 359º do Código Civil para a confissão propriamente dita (sobre esta problemática vejam-se: Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora 1979, Manuel A. Domingues de Andrade, com a colaboração do Prof. Antunes Varela, Nova Edição Revista e Actualizada pelo Dr. Herculano Esteves, páginas 162 a 164; Manual de Processo Civil, Coimbra Editora 1985, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, 2ª Edição Revista e Actualizada de acordo com o Dec.-Lei 242/85, páginas 345 e 346 e 565, nota 1).].

Admite-se, em tese, que se discuta a reunião dos pressupostos legais para que opere esta confissão ficta, nomeadamente, por falta de indicação da cominação aos réus aquando da citação ou, eventualmente, a ocorrência de alguma ou algumas das exceções previstas no artigo 568º do Código de Processo Civil ou até do alcance de tal confissão ficta, mas está de todo afastada uma verdadeira impugnação da decisão da matéria de facto, como previsto no artigo 662º do Código de Processo Civil, já que no caso dos autos não há uma tal decisão mas sim e apenas a confissão ficta da matéria contida na petição inicial em consequência da inobservância de um ónus processual pelo demandados.

Pelo exposto, improcede a pretensão dos recorrentes de que seja ampliada a matéria de facto contida na sentença recorrida, com inclusão na mesma da factualidade que os mesmos indicam nas alegações e conclusões da sua apelação."

[MTS]