"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/07/2024

Jurisprudência 2023 (203)


Litigância de má fé;
audição prévia


1. O sumário de STJ 16/11/2023 (8782/19.0T8PRT.P1.S1) é o seguinte:

I – Os herdeiros de um co-herdeiro falecido antes da partilha da primeira herança também gozam do direito de preferência na cessão de quinhão hereditário dessa 1.ª herança.

II - O exercício do direito ao contraditório em processo civil, diferentemente do que ocorre em sede de procedimento administrativo não exige que seja enviado ao interessado um projecto de decisão que, posteriormente depois de rebatidos os argumentos da defesa possa ser convertido em decisão definitiva bastando a concreta referência à sua possível condenação como litigante de má fé porque tal lhe permite exercer o seu direito de defesa.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Alega a ré que a sua condenação como litigante de má-fé em 2.ª Instância ocorre com fundamentos confusos e inexistentes e excesso de pronúncia, com violação do disposto nos artigos 542.º, 615.°, n.° l, alínea d), 609.°, n.°l, todos do Código de Processo Civil, por exceder os limites da condenação ao seu alcance e o princípio do contraditório e ainda o art.º 20, nº.4 da Constituição da República Portuguesa.

Por último invoca a violação de caso julgado por não ter sido condenada como litigante de má fé e vir invocada uma conduta repetida em ambas as instâncias.

Os autores formularam na réplica o pedido de condenação das 3 primeiras rés como litigantes de má-fé em multa e indemnização quando após a contestação ficaram a saber da celebração de mais um contrato entre estas rés que entenderam ter como único propósito tornar mais difícil o exercício do direito de preferência que pretendiam fazer valer em juízo.

O Tribunal de 1.ª instância não analisou este pedido e não proferiu qualquer decisão fosse a condenar, fosse a absolver as rés de tal pedido de condenação como litigantes de má-fé.

Os autores não apelaram da sentença, tendo apenas sido interposto recurso de apelação por parte da ré, sem qualquer formulação de pedido recursivo por parte dos autores seja a título principal seja a título subordinado.

O relator no Tribunal da Relação fez notificar as partes do seguinte despacho:

Feita a análise do processo e a audição inicial da prova e apuradas as questões a decidir, antevemos a possibilidade/necessidade de no Acórdão a proferir esta Relação se pronunciar sobre as seguintes questões que não vêm suscitadas/tratadas pelas partes:

- a questão de definir se face ao disposto no artigo 2039.º do Código Civil os autores AA e BB são mesmo, como afirmam, herdeiros dos avós por direito de representação do pai e titulares do direito que querem exercer.

- a questão da litigância de má fé da recorrente no recurso.

Por conseguinte, ao abrigo do princípio do contraditório convido as partes a tomarem posição, querendo, sobre tais questões, no prazo de 10 dias.”.

A recorrente apresentou em resposta um requerimento do seguinte teor:

1.º Tendo EE falecido em .../09/2018 e, por isso, em data posterior ao óbito dos seus pais, .../01/2005 e .../08/2016, respectivamente, e não se achando demonstrado nos autos a recusa daquele em aceitar a herança, não se verifica o invocado direito de representação alegado pelos Autores.

2.º A recorrente ofereceu recurso na convicção do exercício de um direito conforme à teleologia subjacente, não violando os deveres de verdade e cooperação.

3.º De qualquer modo, existindo a intenção da sua condenação nesse sentido, que não é invocado pela Recorrida, sempre deverá a mesma ser notificada sobre a sua concretização, para se defender em conformidade, e não ser objeto de decisão surpresa.”

A recorrente refere que foi objecto de uma decisão-surpresa quanto à sua condenação como litigante de má fé em 2.ª instância não só porque ofereceu recurso na convicção do exercício de um direito conforme à teleologia subjacente, não violando os deveres de verdade e cooperação, como por, como refere, haver sido absolvida, ou pelo menos não condenada como litigante de má fé pelo Tribunal de 1.ª instância, pese embora os AA. haverem formulado pedido nesse sentido, sem que estes hajam recorrido dessa decisão omissiva.

A recorrente não foi absolvida do pedido de condenação como litigante de má fé formulado pelos autores. Tal pedido não foi objecto de decisão e, com isso se conformaram os autores na medida em que não alegaram omissão de pronúncia a este propósito, nem, por qualquer outro modo suscitaram junto do tribunal de apelação a condenação das rés como litigantes de má fé.

Pode acontecer que uma parte adopte um comportamento em 1.ª instância que este tribunal não avalie como integrando a litigância de má fé, seja porque o comportamento processual foi exemplar, seja porque por qualquer outra razão o tribunal de 1.ª instância o não haja avaliado como suficiente para integrar o conceito de litigância de má fé, e, a parte adopte um diverso e mais pernicioso comportamento em fase de apelação que possa integrar o conceito de litigante de má fé.

A condenação como litigante de má fé pode ocorrer sem pedido da parte contrária por decorrer também dos poderes oficiosos do tribunal de recurso.

Uma decisão que não é proferida não goza de qualquer força de caso julgado, pela própria natureza das coisas e pelas funções do caso julgado. O que não foi decidido não é susceptível, em caso algum, de colocar o tribunal perante a prolação de decisões contraditórias ou, por qualquer modo, em desrespeito de uma anterior decisão judicial que não foi proferida.

A presente situação não goza pois de força de caso julgado total ou parcial, e nem mesmo fere qualquer legítima expectativa da recorrente, nomeadamente de que por não haver sido condenada em 1.ª instância, não o seria igualmente nas instâncias de recurso.

O exercício do direito ao contraditório em processo civil, diferentemente do que ocorre em sede de procedimento administrativo não exige que seja enviado ao interessado um projecto de decisão que, posteriormente depois de rebatidos os argumentos da defesa possa ser convertido em decisão definitiva. Tratando-se de uma questão bastante concreta – condenação por litigância de má fé – com consequências tão limitadas como a condenação em multa, no uso de poderes oficiosos do tribunal e não já uma indemnização à parte contrária, entende-se que o despacho que acima transcrevemos permite à parte apresentar a defesa adequada à sanção que é passível de ser-lhe aplicada. De resto, a recorrente apresentou a defesa contra essa possível condenação indicando que ofereceu recurso na convicção do exercício de um direito conforme à teleologia subjacente, não violando os deveres de verdade e cooperação, não se vislumbrando como pode o acórdão recorrido ter violado o disposto no art.º 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.

A decisão recorrida condenou a recorrente como litigante de má fé estribada:

1. Na motivação da decisão sobre a matéria de facto, na qual se assinala a absoluta inverosimilhança e improbabilidade dos factos alegados;

2. Na inaudita tentativa de convencer o tribunal daquilo que a todos os títulos se mostra falso e inventado com intenção fraudulenta;

3. Na apresentação do recurso da sentença da 1.ª instância, insistindo despudoradamente na demonstração dos factos que bem sabe serem falsos e com intenção de impedir a descoberta da verdade e o exercício de legítimos direitos;

4. Na reincidência na dedução com dolo directo de uma pretensão que sabia não ter fundamento.

Quando o acórdão diz que a recorrente reincidiu na dedução com dolo directo de uma pretensão que sabia não ter fundamento refere-se, como aliás concorda a recorrente, que esta deduziu a defesa na contestação, e repetiu-a na apelação. No recurso de apelação tentou que fosse alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto, nomeadamente quanto ao preço pelo qual os réus II e JJ cederam os respectivos quinhões nas heranças abertas por óbito dos pais à ré sociedade recorrente: se o preço foi o de €62.500 por cada quinhão, num total de €250.000, que veio a ser julgada improcedente reafirmando o que já havia sido decidido pelo tribunal de 1.ª instância - 44. O documento denominado “contrato sob condição” e a escritura pública de rectificação não correspondem à vontade dos declarantes, foi celebrado com o intuito de enganar os autores.-.

Reincidiu na conduta, na medida em que a repetiu e tentou convencer o Tribunal de recurso de factos que não eram verdadeiros. Para tal não é necessário que tenha existido uma primeira condenação, basta a repetição da conduta.

Analisadas as questões de ordem formal colocadas pela recorrente a propósito da sua condenação em 2.ª instância como litigante de má fé, manifestamente improcedentes, e não tendo sido apesentada qualquer questão de natureza substantiva que possa conduzir à alteração ou revogação de tal decisão, confirma-se integralmente a decisão condenatória em apreço."

[MTS]