"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



23/07/2024

Jurisprudência 2023 (219)

Servidão de passagem;
qualificação jurídica; decisão-surpresa


1. O sumário de RC 21/11/2023 (1416/22.7T8SRE.C1) é o seguinte:

I – O reconhecimento da existência de uma servidão de passagem com base em usucapião, quando tinha sido pedido o reconhecimento da mesma servidão de passagem com base na destinação de pai de família, não constitui condenação em objecto diverso do peticionado.

II – O reconhecimento da existência de uma servidão de passagem com base em usucapião, quando tinha sido pedido o reconhecimento da mesma servidão de passagem com base na destinação de pai de família, sem prévia audição das partes sobre a nova fundamentação jurídica, não anteriormente discutida no processo, não sendo expectável a sua utilização, constitui uma «decisão-surpresa», proferida em violação do art. 5º n.º 3 do CPC e nula por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º n.º1 al. d), 2ª parte, do CPC.
 

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

7. No caso, entende-se que existe uma decisão-surpresa. Com efeito, a questão da aquisição por usucapião reconduz-se à invocação de novas regras jurídicas que, ajustadas aos factos já alegados (não há alteração de factos, pelo que o problema aqui em discussão não supera os limites da «questão de direito»), permitem o reconhecimento da existência da servidão de passagem. Essas novas regras (ou o instituto jurídico em causa) surgem pela primeira vez na sentença, sem terem sido objecto de discussão prévia a essa sentença, como deriva do teor dos articulados e das posições que foram sendo assumidas no processo pelas partes, e sem que às partes tenha sido dada a possibilidade expressa de a discutir. E surge de forma surpreendente, no sentido de não expectável, porque, a partir da posição da A. (e pese embora esta tenha alegado factos possessórios), não era antecipável ou expectável que a decisão se desviasse do fundamento jurídico invocado. A partir apenas da referência aos factos possessórios na petição inicial, e tendo em conta o estreitamento da alegação jurídica da A. (sempre direcionada em sentido diverso ao da usucapião), a relevância jurídica de tais factos não parece antecipável. Ponto onde a circunstância de a A. ter repetido esse fundamento no próprio pedido (indevidamente mas de forma que condiciona o destinatário do acto postulativo [---]) constitui dado que tende a condicionar e consolidar a perspectiva das partes (sobretudo dos RR.) sobre o assento jurídico da pretensão, e tende dessa forma a revelar o carácter inusitado e não antecipável (não previsível) da inovação jurídica empreendida.

Existe assim uma inovação jurídica tardia, lícita em si face às regras processuais (citado art. 5º n.º3 do CPC ) mas que não parece ajustar-se ao respeito pelo contraditório (ou ao menos pela audição) imposto pelo também referido art. 3º n.º3 do CPC – mesmo do ponto de vista da concepção mais restritiva da decisão-surpresa, e que se julga mais ajustada [sendo que também não ocorrem outros limites externos por vezes invocados contra o exercício do contraditório, a saber, ter a audição já sido assegurada de outra forma, ou não poder essa audição influir na decisão [---]].

8. Cabe ainda fixar o enquadramento jurídico do vício, questão sobre a qual são possíveis essencialmente três posições [---]. Uma primeira, tende a evidenciar o vício processual e a sujeitá-lo às regras da patologia do próprio procedimento: existiria a omissão de um acto legalmente devido (que podia influir na decisão da causa), que a decisão-surpresa permite revelar mas que existiria antes e com independência dela, sujeitando-se assim ao regime do art. 195º n.º1 do CPC, devendo ser o vício invocado no prazo geral (10 dias) e nos termos do art. 199º n.º1 do CPC. Uma segunda posição continua a partir da afirmação da existência de um vício processual prévio à decisão, nos termos do citado art. 195º n.º1 do CPC, mas considera existir uma conexão directa entre o vício e a decisão (é esta que desencadeia o vício) de modo que aquela nulidade fica coberta ou sancionada pela decisão (mormente pela existência de um «julgamento implícito») e assim deverá ser invocada no recurso da decisão e no prazo de interposição deste recurso. Uma terceira posição considera que o vício só surge com a decisão (ou porque esta está viciada, ou porque consome o anterior vício) e, sendo esta que está viciada (por excesso de pronúncia, conhecendo questão que, sem o contraditório prévio, não poderia conhecer), fica subordinada ao regime do art. 615º n.º1 al. d) do CPC. O desvalor existente radicaria no acto (a decisão), não na omissão (da audição) [---] [apenas a título exemplificativo, para dar conta da dissensão existente, a favor da primeira solução podem ver-se Acs. do TRP proc. 14227/19.8T8PRT.P1, do TRC proc. 3550/17.6T8CBR.C1 ou 1250/20.9T8VIS.C1ou do TRL 286/09.5T2AMD-B.L1-1; também J. L. de Freitas e I. Alexandre parecem inclinar-se neste sentido (CPC Anotado, Vol. 1º, Almedina 2021, pág. 32 [Embora no vol 2º já pareçam admitir outra solução (pág. 739).]); a favor da segunda, Ac. do STJ proc. 5384/15.3T8GMR.G1.S1, do TRG proc. 533/04.0TMBRG-K.G1 ou 1299/17.9T8CHV-A.G1 ou do TRP 1378/14.4TBMAI.P1 ou do TRL 2898/17.4T8CSC-B.L1-7, e ainda R. Pinto, Manual do Recurso Civil, vol. I, AAFDL 2020, pág. 91, no que à decisão-surpresa atinente à qualificação jurídica, como ocorre no caso, respeita; a favor da terceira, e para além dos escritos do Prof. T. de Sousa (disponíveis no blog do IPCC, incluindo no CPC anotado que ali disponibiliza), Ac. do STJ 1937/15.8T8BCL.S1, 2019/18.6T8FNC.L1.S1, 392/14.4T8CHV-A.G1.S1, 1129/09.5TBVRL-H.G1.S1 ou 4260/15.4T8FNC-E.L1.S1, ou do TRL 6141/17.8T8ALM.L1.L1-6 (todos os Ac. em 3w.dgsi.pt), ou A. Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina 2022, pág. 25 e ss., e A. Geraldes, P. Pimenta e L. Sousa, CPC Anotado, Almedina 2023, pág. 792].

9. Entende-se, neste momento, que esta última solução é a que melhor corresponde ao sentido do vício diagnosticado. A ênfase estará não na omissão prévia mas na impropriedade da decisão ao conhecer do que, nas condições em que é editada, lhe estava vedado. Será um vício genético, que surge com a decisão e se esgota nela. Com efeito, na omissão típica, o acto omitido é revelado pelo acto seguinte, dado aquele acto omitido constituir acto legalmente imposto: a mera prática do acto seguinte demonstra que faltou um momento prévio na lógica legal do procedimento (enquanto sequência de actos). Em situações como a vertente, não é a decisão, como acto do processo, que revela a omissão, mas o conteúdo da decisão (ou melhor, um certo conteúdo da decisão) que revela o desrespeito pelas regras. Neste sentido, o desvalor insere-se na própria decisão dado o concreto conteúdo adoptado. Ou seja, como a audição das partes neste caso não constitui um acto típico do procedimento (ele é meramente eventual), não é tanto a sua falta como a decisão indevida que suporta o vício. Por outro lado, o vício só se torna patente pelo conteúdo da decisão, que o constitui. Nesse sentido, a decisão conforma o vício, por ser surpreendente para as partes, não por ter prescindido do contraditório. O exercício do contraditório exclui o carácter surpreendente da decisão, e assim o vício que a afecta.

A afirmação de que é a própria lei a impor o conhecimento oficioso da questão; que não é o conteúdo deste conhecimento oficioso que se questiona no recurso; e que a decisão, considerada nos seus elementos estritamente formais, é irrepreensível, corresponde a final a uma questão de perspectiva. Porque se se considerar que «o perfil de garantia» do art. 3º n.º3 do CPC vincula o juiz e integra o âmbito da decisão (delimitando a sua extensão sem contraditório), então já não se pode falar da imposição do conhecimento oficioso per se (porque esta imposição não é absoluta em si), e o conteúdo da decisão não é irrepreensível.

Admite-se que a solução não é inteiramente à prova de reparo. O desacerto entre as várias soluções propostas e a divisão da jurisprudência e da doutrina comprova-o. E bem assim a forma como L. Correia de Mendonça, excluindo todas as soluções referidas, propõe um quarto caminho que reconduz a uma nulidade extraformal da sentença por violação do contraditório enquanto direito processual fundamental – que se reputa desnecessária, dada a solução formal encontrada, sem necessidade de novas vias dogmáticas. Mas entende-se que esta é a solução que melhor se ajusta aos termos da questão.

Tal solução não acolhe o fundamento legal invocado pelo recorrente mas pode ser aqui conhecida, ao abrigo do citado art. 5º n.º3 do CPC – e nesta sede sem violação do contraditório porque, de um lado, os recorrentes colocaram a questão logo no âmbito da nulidade da sentença (e não da omissão prévia) e, de outro lado, a extensão e actualidade da controvérsia (e a sua visibilidade) tornava inevitável a discussão da questão e claramente antecipável a possibilidade de ocorrer diferente enquadramento jurídico.

10. Resta apreciar os efeitos da nulidade diagnosticada.

Pese embora o art. 665º n.º1 do CPC contenha uma regra de substituição, impondo ao tribunal de recurso avaliar o mérito da apelação em caso de verificação de nulidade da sentença, a solução não pode ser uniforme, havendo que avaliar os contornos do caso, pois o objecto da nulidade ou o seu fundamento podem impor solução diversa. Aquele regime pressupõe que o vício só afecta a decisão e que, afirmado tal vício, se retoma o procedimento corrente, com o conhecimento do mérito [---], o que nem sempre se verifica. E é o que se entende ocorrer com a nulidade derivada da decisão-surpresa, ao menos nos casos como o vertente em que o recorrente prescindiu de discutir os contornos jurídicos do caso no recurso (impugnando apenas, de forma que disse ser subsidiária, certo facto provado), pois prosseguir com o conhecimento do mérito equivaleria a manter a omissão do exercício do contraditório, mostrando-se tal incoerente com o vício encontrado: censurando-se o acto por não ser precedido de contraditório, prossegue-se na avaliação continuando a desse contraditório se prescindir. De certo modo, o vencedor continuava vencido. Ora, «não sendo de exigir à parte interessada que alegue as concretas deduções defensivas que teria utilizado se o acto omitido (de actuação do contraditório) tivesse sido praticado e que se tivessem sido devidamente levadas em conta pelo juiz teriam podido razoavelmente conduzir a uma decisão diversa daquela que foi realmente tomada», nem o tendo feito os RR. no seu recurso como se disse, tem que se lhes garantir a possibilidade de o fazer no momento processual adequado para assim eliminar o juízo negativo oposto ao procedimento adoptado.

A única forma de recuperar a regularidade processual e material consiste em manifestar a nulidade da sentença, sem substituição, impondo-se o cumprimento do regime do art. 3º n.º3 do CPC antes de nova decisão de mérito. É a própria natureza e fundamento do vício diagnosticado que impõe esta solução."

[MTS]