Processo de insolvência;
venda em leilão electrónico; regime aplicável
1. O sumário de RP 24/9/2024 (1844/22.8T8AMT-E.P1) é o seguinte:
I - A Portaria o nº 282/2013, de 29/8 diferiu para momento ulterior a definição da entidade gestora da plataforma electrónica para realização dos leilões – que, nos termos do despacho nº 12624/2015, de 9/11 foi a Câmara dos Solicitadores – bem como a homologação das regras desse sistema informático, homologação esta que ocorreu por via desse mesmo despacho.
II - Tais regras só podem ser as relativas ao específico funcionamento da plataforma electrónica, pois que não cabe nem à Câmara dos Solicitadores, nem a um membro do governo, por mero despacho, definir regras de que resulte a concessão ou a restrição de quaisquer direitos dos utilizadores do sistema, maxime aqueles que estejam definidos por leis, decretos-lei ou, no limite, por portarias.
III - Não estabelece um tal despacho ministerial um regime processual específico para a conclusão do negócio de venda em leilão electrónico nos termos do qual o agente de execução ou o administrador de insolvência, podem decidir se aceitam ou não propostas validamente apresentadas na plataforma.
IV - De forma alguma se admite, no nº 10 do art. 8º do Anexo ao referido Despacho, a abertura de um prazo para, através de uma solução em muito semelhante à da negociação por negociação particular, se abrir, após a certificação do encerramento do leilão electrónico, um prazo para o oferecimento de propostas de valor superior àquela que foi obtida no leilão electrónico, que havia sido a modalidade escolhida para a venda.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Não cabendo a este Tribunal conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC - é nelas que deve identificar-se o objecto do recurso.
Assim, caberá decidir se, nas circunstâncias da venda do imóvel da insolvente, por leilão electrónico, em que apenas foi apresentada a proposta dos apelantes, esta não poderia deixar de ser aceite, sendo irrelevante o surgimento ulterior de propostas de valor mais elevado.
Já resultam do relatório antecedente os elementos relevantes para a decisão, sem prejuízo do que agora melhor se especificam:
1. No âmbito do processo de insolvência 1844/22.8T8AMT, após apreensão do imóvel constituído por prédio urbano destinado a habitação, com 8 frações suscetíveis de utilização independente, sito na Rua ..., Lote ..., freguesia ..., concelho de Felgueiras, inscrito na matriz Predial Urbana sob o artigo n.º... e descrito na conservatória do Registo Predial de Felgueiras sob o n.º ...., foi determinada a respectiva venda por leilão eletrónico.2. A modalidade da venda e o valor pelo qual deveria ser promovido o referido leilão eletrónico, foram decididos após consulta efetuada ao credor reclamante com garantia hipotecária.3. O Ex.mo Sr. Administrador Insolvência veio indicar o valor que atribuiu ao prédio e a modalidade da venda, não tendo essa informação sido objeto de qualquer reparo pelos credores.3. O primeiro Recorrente apresentou por conta e em nome da segunda Recorrente, proposta no referido leilão eletrónico, sob o número ....4. A proposta apresentada pelos mesmos, no valor de 520.200,00 Euros (quinhentos e vinte mil e duzentos euros) que corresponde a um valor igual ao valor mínimo anunciado no suprarreferido leilão eletrónico, foi a única.5. A proposta efetuada foi considerada uma proposta de valor superior ao mínimo, na certidão do acto, apesar de o A.I, em informação prestada, ter referido que ela correspondia ao valor mínimo (inf. de 7/3/2024).6. Em 11/3/2024, o tribunal determinou que os autos aguardassem pela junção do título de transmissão, por referência à proposta de valor mínimo em questão.7. Em 19/3/2024, o A.I. informou o tribunal da não aceitação da referida proposta, justificando-o com o facto de, após encerramento do leilão electrónico, ter recebido duas propostas: uma no valor de 545.000,00€ e outra no valor de 550.000,00€.8. O tribunal determinou que o Sr. A.I. juntasse documento comprovativo de comunicação da não aceitação da proposta de 520.000,00€ ao proponente,9. O Sr. A.I. vem comprovar ter feito tal comunicação por email de 13/3/2024.
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Cabe, em suma, decidir se, por não ser sido apresentada qualquer proposta de compra que não a dos ora apelantes, até ao encerramento do leilão electrónico, não podia o Sr. A.I. ter deixado de lhes adjudicar o imóvel a vender.
A regra elementar que enquadra a situação sob apreciação é a do art. 164º do CIRE, como se afirma pacificamente neste processo. Todavia, no caso, nenhuma questão se coloca quanto a matérias ali reguladas.
Para além disso, já à luz do regime do art. 837º do CPC, nenhuma controvérsia se instalou quanto à opção assumida pela venda do imóvel através de leilão electrónico.
Dispõe o respectivo nº 3 que a esta modalidade de venda se aplicarão as regras relativas à venda em estabelecimento de leilão, em tudo o que não estiver definido na Portaria publicada pelo Ministério da Justiça, prevista no nº 1 da mesma norma.
Tal Portaria tem o nº 282/2013, de 29/8, sendo pertinente lembrar o disposto no respectivo art. 20º: “Entende-se por «leilão eletrónico» a modalidade de venda de bens penhorados, que se processa em plataforma eletrónica acessível na Internet, concebida especificamente para permitir a licitação dos bens a vender em processo de execução, nos termos definidos na presente portaria e nas regras do sistema que venham a ser aprovadas pela entidade gestora da plataforma e homologadas pelo membro do Governo responsável pela área da justiça”.
Mais dispõe o art. 23º desta Portaria:
“1 - As ofertas de licitação para aquisição dos bens em leilão são introduzidas na plataforma a que se refere o artigo 20.º, entre o momento de abertura do leilão e o dia e hora designados na plataforma eletrónica referida no artigo anterior para o seu termo.2 - Só podem ser aceites ofertas de valor igual ou superior ao valor base da licitação de cada bem a vender e, de entre estas, é escolhida a proposta cuja oferta corresponda ao maior dos valores de qualquer das ofertas anteriormente inseridas no sistema para essa venda.3 - As ofertas, uma vez introduzidas no sistema, não podem ser retiradas.”
Depois, o art. 24º dispõe que o resultado do leilão eletrónico é disponibilizado no sítio da Internet de acesso público a que se refere o n.º 1 do artigo 21.º, acrescentando o art. 26º que Compete ao agente de execução a decisão de adjudicação dos bens.
Como resulta do art. 20º acima citado, ficou diferido para momento ulterior a definição da entidade gestora da plataforma electrónica para realização dos leilões – que, nos termos do despacho nº 12624/2015, de 9/11 foi a Câmara dos Solicitadores – bem como a homologação das regras desse sistema informático, homologação esta que ocorreu por via desse mesmo despacho.
Não pode, porém, esquecer-se que tais regras só podem ser as relativas ao específico funcionamento da plataforma electrónica, pois que não cabe nem à Câmara dos Solicitadores, nem a um membro do governo, por mero despacho, definir regras de que resulte a concessão ou a restrição de quaisquer direitos dos utilizadores do sistema, maxime aqueles que estejam definidos por leis, decretos-lei ou, no limite, por portarias.
Inútil se torna, pois, o elenco de definições constante daquele despacho, bem como a interpretação de qualquer conteúdo do mesmo em ordem a dali retirar qualquer restrição de direitos que advenham do sistema legal aplicável. De resto, assim se compreende a redundância da previsão de tais definições, ou da regras como a constante, por exemplo, do art. 6º, a), nos termos da qual “O administrador da plataforma pode suspender a colocação em leilão … a) De bens que legalmente não possam ali ser vendidos.”
É este pressuposto que deve ter-se presente na interpretação das regras que, segundo consta do Anexo que as elenca (Anexo ao Despacho nº 12624/2015, de 09 de Novembro) são simples “regras de funcionamento da plataforma de leilão eletrónico”
E só essa relevância pode ser conferida ao disposto no respectivo art. 8º (nºs 1 e 3), ao definir que deve elaborar-se uma certificação de encerramento do leilão, bem como à regra do nº 10, que dispõe: “10 - No prazo de 10 dias contados da certificação da conclusão do leilão, o agente de execução titular do processo deve dar cumprimento a toda a tramitação necessária para que a proposta se considere aceite e o bem seja adjudicado ao proponente, nos termos previstos para a venda por proposta em carta fechada.”
Constata-se que, ao contrário do que entendeu o tribunal recorrido, não estabelece um tal despacho ministerial um regime processual específico para a conclusão do negócio de venda em leilão electrónico nos termos do qual o agente de execução, in casu, o administrador de insolvência, pode decidir se aceita ou não a proposta validamente apresentada na plataforma.
Refere a decisão recorrida o regime processual próprio da venda por propostas em carta fechada. Porém, daí nada cumpre retirar de contrário em relação ao regime da venda em leilão electrónico para o qual o nº 2 do art. 23º da Portaria nº 282/2013, de 29 de Agosto dispõe com suficiência que “Só podem ser aceites ofertas de valor igual ou superior ao valor base da licitação de cada bem a vender e, de entre estas, é escolhida a proposta cuja oferta corresponda ao maior dos valores de qualquer das ofertas anteriormente inseridas no sistema para essa venda.”
É de acordo com tal regra que haverá o administrador de insolvência de dar cumprimento ao disposto no art. 26º, nº 1 do mesmo diploma, decidindo a adjudicação do bem.
E é única e exclusivamente para operacionalizar esse sistema que tem de se entender o estabelecido no citado nº 10 do art. 8º do Anexo ao Despacho nº 12624/2015, de 09 de Novembro. Deste anexo não se podem retirar regras que alterem ou restrinjam o anteriormente referido.
De resto, dispondo o art. 837º do CPC, no seu nº 3, que à venda em leilão eletrónico se aplicarão as regras relativas à venda em estabelecimento de leilão, em tudo o que não estiver definido na Portaria nº 282/2013, jamais poderia admitir-se a aplicação subsidiária de outras regras – designadamente as relativas à venda por propostas em carta fechada – por decisão da Câmara dos Solicitadores e sua aceitação por mero despacho ministerial.
Por conseguinte, o prazo de 10 dias mencionado no nº 10 do art. 8º do anexo ao citado Despacho nº 12624/2015, de 09 de Novembro servirá para o administrador de insolvência, por referência à proposta já selecionada, dar execução às operações necessárias à adjudicação do bem a vender. É claro que, tal como acontece noutras modalidades da venda (até na venda por propostas em carta fechada) incidentes podem ocorrer que impeçam a adjudicação.
É o caso, por exemplo, do exercício de um direito de preferência ou de um direito de remição. E a esses terá o administrador de insolvência de dar resposta. Todavia, o que de forma alguma se prevê é a abertura de um prazo para, através de uma solução em muito semelhante à da negociação por negociação particular, se abrir um prazo para o oferecimento de propostas de valor superior àquela que foi obtida no leilão electrónico, que havia sido a modalidade escolhida para a venda.
Com efeito, a solução identificada na decisão recorrida consubstancia em si mesma a total inutilidade do procedimento do leilão electrónico. A qualquer interessado na aquisição de um bem em venda em leilão electrónico conviria não apresentar qualquer proposta durante o prazo de funcionamento do leilão, após qualquer outra que tivesse sido apresentada, assim obviando à subida do preço. Depois, encerrado o leilão, poderia oferecer apenas um pouco mais, para eliminar a eficácia daquela que antes tinha sido apresentada. De resto, afinal, tal como aconteceu no caso sub judice.
Assim, ao nº 10 do art. 8º do anexo ao referido despacho não pode dar-se o significado que lhe foi conferido pela decisão recorrida, nos termos da qual, após o encerramento do leilão, o agente de execução ou o administrador de insolvência dispõe de um prazo de dez dias para decidir da aceitação da proposta mais alta formulada no âmbito do leilão, desde que válida, por ser do valor mínimo de venda ou superior, sem prejuízo de poder admitir outra que, entretanto, lhe seja apresentada. Pelo contrário, aquele prazo destina-se a operacionalizar a venda ao proponente ganhador, desde que nada o impeça – como por exemplo o exercício de um direito de preferência ou de remição, como se referiu.
Afirmou o tribunal recorrido: “Em suma, (…) manifestando um único credor a sua oposição à aceitação da proposta mais elevada ou a rejeição de todas as propostas apresentadas para que se tenha por não aceite, não prosseguindo o processo para adjudicação.
Isto para dizer que, se é assim no âmbito da venda a que se alude no art. 821.º do CPC referente à deliberação das propostas em carta fechada ou depois de efetuada a licitação ou sorteio a que houver lugar, regime este para que remete a venda em leilão eletrónico, temos de concluir que, apesar de se ter apresentado uma única proposta até ao encerramento do leilão, a cuja aceitação se opôs o credor hipotecário, não se pode a mesma ter por aceite, nem pode o AE/AI ou Juiz sobrepor-se à vontade soberana dos credores e tê-la como aceite, ainda que, no caso, seja apenas um único credor a manifestar-se nesse sentido, pois que mais nenhum apresentou posição contrária.”
É precisamente com esta conclusão que não se pode concordar, desde logo por se alicerçar no apelo ilegítimo ao regime da venda por propostas em carta fechada. Com efeito, o art. 837º do CPC (aplicável por remissão do art. 17º do CIRE) remete, isso sim, para o regime da venda em estabelecimento de leilão. Ora, não se pode retirar do anexo ao Despacho 12624/2015, de 09 de Novembro, uma solução diferente, pois que daí apenas se devem retirar regras referentes ao funcionamento da plataforma informática dos leilões electrónicos.
Acresce que o regime da Portaria nº 282/2013, aplicável por remissão do nº 1 do art. 837º não prevê um procedimento tal como o idealizado na decisão recorrida, comportando uma possibilidade de rejeição de qualquer proposta validamente submetida na plataforma de leilão electrónico, por simples apreciação negativa de qualquer credor, maxime do credor hipotecário e perante o surgimento ulterior, fora da modalidade de venda que fora escolhida e implementada, de propostas de valor superior.
Isto mesmo concluiu lapidarmente o Ac. do TRE de 23/5/2024, nos seguintes termos: “(…), mesmo que seja apresentada uma proposta de valor superior, a mesma não pode ser considerada se esta foi feita fora da plataforma de leilões escolhida e em momento posterior ao termo final do calendário constante do anúncio.”
Pelo exposto, resta concluir pela inadmissibilidade da decisão do Sr. Administrador da Insolvência, rejeitando a proposta válida submetida em tempo oportuno, pelos ora apelantes AA, representando “B..., Lda, designadamente com fundamento na audição de um credor e no surgimento de propostas de valor superior àquela.
Com efeito, tais propostas não se podem ter por válidas e inexiste qualquer fundamento – pelo menos até agora invocado e que possa ser alvo de apreciação - para que se possa justificar a rejeição da proposta única que foi submetida em tempo oportuno e por valor admissível, ao leilão electrónico executado para a venda do imóvel em questão."
[MTS]