Impugnação de justificação notarial;
natureza jurídica; ónus de alegação; ónus da prova*
1. O sumário de RG 19/9/2024 (2/20.0T8MDL.G1) é o seguinte:
I “[A] natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas.”
II - Não obstante a questão da legitimidade dos autores/recorridos constituir uma questão nova, porquanto não foi suscitada no tribunal a quo, é possível conhecê-la em via de recurso, uma vez que a legitimidade constitui exceção dilatória de conhecimento oficioso (arts. 577º, al. e) e 578º, do CPC).
III - Na tarefa de aferição do cumprimento do ónus imposto pelo art. 640º do CPC importa que os aspetos de natureza formal sejam analisados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, em conformidade com a filosofia subjacente ao atual direito processual civil de prevalência da dimensão material ou substancial sobre a dimensão meramente formal.
IV - Em princípio e como regra geral, os factos devem ser impugnados de forma individual, com referência aos concretos meios probatórios que sustentam a pretensão impugnatória, e não de forma conjunta ou em bloco.
Não obstante, tratando-se de factos intimamente relacionados, designadamente porque respeitam à mesma realidade, é de admitir a impugnação em bloco.
V - A ação de impugnação de justificação notarial é uma ação declarativa de simples apreciação negativa visto com ela se pretender a declaração da inexistência do direito justificado na escritura.
VI - Nesta ação, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"IV – Verificação dos pressupostos legais para que a escritura de justificação notarial seja declarada ineficaz e para que seja reconhecido que os autores são donos da totalidade do imóvel
Com a presente ação, os autores pretendem que se declare impugnado o facto justificado na escritura de justificação outorgada em 20 de novembro de 2017, por os réus não terem adquirido, por usucapião, a metade indivisa do prédio nela identificado e que se declare ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura, por forma a que os réus não possam, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio e se ordene o cancelamento de quaisquer registos operados com base na dita escritura (pedidos a), b) e c)).
Trata-se assim de uma ação de impugnação de justificação notarial.
A justificação notarial é um meio que permite ao adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito obter a primeira inscrição, ou, caso exista inscrição de aquisição, reconhecimento ou mera posse, um meio que permite suprir a falta de intervenção do respetivo titular (art. 116º, do Código do Registo Predial).
Nos termos dos arts. 89º a 91º, do Cód. do Notariado, a justificação pode ter como finalidade:
a) o estabelecimento do trato sucessivo;b) o reatamento do trato sucessivo;c) o estabelecimento de novo trato sucessivo.
Recorrendo às palavras do Acórdão do STJ, de 5.11.2019, Relatora Maria Clara Sottomayor (in www.dgsi.pt) “a escritura de justificação notarial é um instituto que contribui para a paz social e para a justiça, na medida em que, nos casos em que os interessados encontram dificuldades no registo, derivadas da falta ou insuficiência dos documentos normalmente necessários, e estão impossibilitados de demonstrar o seu direito e, consequentemente, de transmitir ou onerar os seus bens, a lei permite-lhes a prova da aquisição por usucapião. Criou, assim, a lei uma providência de natureza excecional, a justificação, destinada a possibilitar o estabelecimento do princípio do trato sucessivo (inscrição prévia e continuidade das inscrições), sempre que os interessados não disponham de títulos que comprovem os seus direitos.”
No acórdão do Supremo Tribunal, de 25.06.2015, Relator Abrantes Geraldes (in www.dgsi.pt) refere-se que a justificação notarial é um instrumento com “uma elevada dose de pragmatismo e de eficácia que confluem para o objectivo da regularização registral de prédios, através da obtenção de um instrumento formal sem as exigências, os custos e as demoras inerentes quer à acção de justificação judicial, quer à acção de simples apreciação positiva para reconhecimento do direito real por usucapião, meios processuais de natureza contenciosa.
Relativamente aos casos verdadeiramente patológicos, os efeitos negativos para os titulares inscritos, cujos interesses podem ser afectados pela justificação notarial, acabam por ser atenuados com a atribuição do direito de acção que lhes permite confrontar judicialmente o justificante e onerá-lo com a prova dos factos justificativos da usucapião, à semelhança do que ocorreria numa acção de reconhecimento do direito real pela mesma via.
A experiência demonstra, aliás, que o uso razoável daquele mecanismo facilita e simplifica a regularização tabular dos prédios num sistema como o nosso em que, essencialmente fora dos grandes meios urbanos, ainda não está generalizada a percepção das vantagens do cumprimento dos requisitos formais no que concerne aos negócios que têm por objecto prédios rústicos e urbanos (outorga de escritura pública e registo predial dos factos) ou em que, com elevada frequência, se verifica uma desconformidade entre os aspectos de ordem substancial ou material e os aspectos de ordem formal atinentes ao património imobiliário”.
A justificação notarial não constitui ela própria o ato translativo ou constitutivo do direito real. Tal direito, no caso de invocação da usucapião, decorre dos concretos atos materiais de posse, revestidos de determinadas caraterísticas e mantidos durante certo período temporal, que conduzem a essa forma originária de aquisição e que são invocados na escritura de justificação.
Esses atos podem ser impugnados judicialmente, nos termos do art. 101º do Código do Notariado, em ação de impugnação de justificação notarial, a qual é uma ação declarativa de simples apreciação negativa visto com ela se pretender a declaração da inexistência do direito justificado na escritura.
Assim, como decorre do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 1/08, de 4.12.2007 (in DR, SÉRIE I, de 2008-03-31) “Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º1, do Código do Registo Predial e 89.º e 101.º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7.º do Código do Registo Predial.”
Os réus na escritura de justificação declararam, para além situações relativas a outros prédios que para o caso não relevam, que adquiriram metade indivisa do prédio descrito e identificado na verba nº 2, no ano de 1989, na sequência de compra verbal efetuada aos referidos titulares inscritos, sendo que o titular inscrito é a EMP01..., Lda. como consta da descrição do imóvel feita na verba nº 2.
Declararam ainda que possuem o referido prédio há mais de 20 anos, posse que exerceram pacífica a publicamente, à frente e com conhecimento de toda a gente e sem a oposição de ninguém, com convicção de serem os legítimos proprietários, mantida e exercida em nome e interesse próprio, participando nas vantagens e encargos, praticando atos concretos em relação ao direito possuído, exercendo sobre ele todos os atos de posse, designadamente, cultivando o prédio, roçando o mato e ervas, colhendo os seus frutos, pagando as respetivas contribuições e impostos, agindo sempre por forma correspondente ao exercício pleno do direito de propriedade, posse que conduziu à aquisição por usucapião do prédio e que também invocam para efeitos de estabelecimento de novo trato sucessivo na conservatória e do competente registo em seu favor.
Dispõe o art. 1251º, do CC, que posse é o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.
Como se lê no art. 1287º, do CC, a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida durante certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua atuação: é o que se chama usucapião.
A usucapião constitui assim uma forma de aquisição originária do direito real por aquele que tem uma posse com determinadas caraterísticas, mantidas durante determinado lapso temporal.
E constitui um modo de aquisição originária porque o direito surge, ou melhor, constitui-se ex novo na ordem jurídica.
A usucapião é uma forma de constituição de direitos reais e não uma forma de transmissão e, por isso, os direitos que nela tenham a sua origem não sofrem em nada com os vícios de que possam eventualmente padecer os anteriores proprietários sobre a mesma coisa (Menezes Cordeiro; Direitos Reais; II; pág. 684).
A “aquisição por usucapião é uma constituição originária, que tem como sua fonte e génese a posse, geradora do direito, com título, sem título, contra um título de terceiro ou mesmo com um título afectado de nulidade substantiva” (Fernando Pereira Rodrigues, Usucapião. Constituição Originária De Direitos Através da Posse, Almedina, Coimbra, 2008, págs. 12-13).
“Porque se trata de uma aquisição originária, o decurso do tempo necessário à sua conformação faz com que desapareçam todas as incidências que neste processo eventualmente possam ter surgido - a posse que interessa para efeitos de usucapião não é a posse causal, ou seja, a posse conforme com um direito que inquestionavelmente se tem e de que representa simples exteriorização; é a posse formal, correspondente a um direito que comprovadamente se não tem ou que poderá não se ter, mas cujos poderes se exercem como sendo um titular, posse vista com abstracção do direito possuído, algo com existência por si, susceptível de conduzir, pela via da usucapião, à aquisição do direito, caso não se seja, já, senhor dele (Galvão Telles, O Direito, 121.º - 652)” (Acórdão do STJ, de 9.2.2017, Relator Silva Gonçalves, in www.dgsi.pt).
“Subjacente a esta orientação está a prevalência de interesses ligados à estabilidade e segurança jurídica que conduzem à consideração de que não faz sentido que, perante um longo período de tempo, se eternizem situações de incerteza pelo que se permite a realização das expectativas criadas à luz de uma prolongada configuração factual. Em suma, o sistema jurídico admite que certas situações de facto adquiram tutela jurídica e possam dar lugar ao reconhecimento de direitos em homenagem a interesses de natureza social e económica que acolhe como relevantes” (Luís Filipe Pires de Sousa, Acções Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 1.ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2011, pág. 62).
Segundo o nosso direito substantivo, para que a aquisição originária de imóveis se verifique é necessário que se demonstre a prática efetiva de atos materiais correspondentes ao conteúdo do direito de que o adquirente se arroga, levados a cabo de forma continuada, pública e pacífica durante mais de 20 anos (arts. 1251º, 1261º, 1262º e 1263º do CC).
A circunstância de a posse ser ou não titulada e ser de boa ou má fé não se repercute na aquisição de imóveis por usucapião desde que a posse tenha sido exercida durante mais de 20 anos (arts. 1258º e ss e 1294º e ss do CC).
A posse capaz de conduzir à aquisição originária do direito correspondente deverá, assim, ser integrada por dois elementos, a saber: o corpus, elemento material que consiste no domínio de facto sobre a coisa, consubstanciado no exercício de poderes materiais sobre ela ou na possibilidade física desse exercício; e o animus, traduzido na intenção e convicção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto (Henrique Mesquita, in Direitos Reais, 1966, págs. 66 e 67).
O possuidor tem, pois, de provar a existência destes dois elementos. Porém, a prova do corpus faz presumir a existência do animus (art. 1252º, nº 2 do CC).
Invocada a usucapião, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse (art. 1288.º do CC), coincidindo a aquisição do direito de propriedade com o momento do início dessa mesma posse (art. 1317.º, al. c), do CC).
Ora, revertendo ao caso concreto, e tendo sido impugnada a justificação notarial, competia aos réus a prova da veracidade dos factos que declararam na escritura pública de justificação.
Porém, essa materialidade factual não se provou, como resulta da factualidade não provada D a J e da factualidade provada sob os nºs 12, 13 e 22.
Na verdade, não se provou um único facto que permita concluir que os réus têm a posse de metade indivisa do prédio desde há mais de 20 anos, de forma pública e pacífica e que, por isso, o adquiriram por usucapião.
Bem pelo contrário, provou-se que só após o óbito de FF, ocorrido em ../../2015, os réus começaram a cultivar o terreno e a arrogar-se dele serem proprietários (factos 1 e 16), sendo que os réus, desde que se começaram a relacionar com FF sempre souberam que a totalidade do prédio era pertença do mesmo (facto 22) e, enquanto FF foi vivo o réu nunca se arrogou proprietário do prédio (facto 27). Acresce que os réus apenas utilizaram e trataram o prédio em causa limpando-o, plantando oliveiras e colhendo os respetivos frutos, com a autorização do falecido FF enquanto este foi vivo (facto 38).
Assim, os atos materiais praticados pelos réus no imóvel durante a vida de FF, ou seja, até ../../2015, nunca o foram a título possessório, sendo unicamente atos praticados com autorização de FF.
Por conseguinte, conclui-se que os réus não cumpriram o ónus legal que sobre si impendia de provarem os factos constitutivos do direito justificado, pelo que deve ser declarado impugnado o facto justificado na escritura impugnada de 20 de novembro de 2017, deve ser declarada ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial e deve ser cancelado qualquer registo feito com base nessa escritura, tudo unicamente com referência ao prédio identificado na verba 2, sendo, por isso, de confirmar a decisão recorrida quanto os pontos iv), v) e vi)."
*3. [Comentário] Deixam-se apenas dois comentários (secundários, se assim se pode dizer):
*3. [Comentário] Deixam-se apenas dois comentários (secundários, se assim se pode dizer):
-- Constitui um verdadeiro enigma como é que uma acção de impugnação de uma justificação notarial -- que é, claramente, uma acção na qual o impugnante exerce (passe o pleonasmo) um poder de impugnação -- pode ser qualificada como um acção de apreciação negativa; aliás, é curioso como a RG "foge" para a qualificação da acção de simples apreciação: "Com a presente ação, os autores pretendem que se declare impugnado o facto justificado na escritura de justificação "; como é óbvio, o autor não pretende a declaração da impugnação do facto justificado, mas antes a impugnação desse facto e as respectivas consequências (tal como, por exemplo, numa acção de impugnação de uma deliberação social, não se pretende a declaração da impugnação, mas antes a impugnação dessa deliberação); o mais correcto é, por isso, qualificar a acção de impugnação de justificação notarial como uma acção constitutiva (art. 10.º, n.º 3, al. c), CPC);
-- Mesmo que a acção de impugnação de uma justificação notarial pudesse ser qualificada como uma acção de simples apreciação negativa, ainda assim caberia discutir se a distribuição do ónus da prova (e, consequentemente, do ónus de alegação) tem de continuar a seguir o velho esquema das acções de jactância medievais (sobre o problema, Castro Mendes/Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil I (2022), 62 s.).
MTS