Escritura de justificação notarial;
acção de impugnação; legitimidade activa*
1. O sumário de RL 26/9/2024 (4454/23.9T8FNC.L1-2) é o seguinte:
I – A legitimidade ativa para a propositura de ação de impugnação de escritura de justificação notarial é definida pelo disposto no nº 1, do artigo 101º do Código do Notariado, decorrendo da sua literalidade não ser exigível a intervenção de todos os interessados, mas apenas de algum deles.
II – A ratio subjacente ao disposto no artigo 2091º do Código Civil, ao exigir a intervenção de todos os interessados na herança aberta e indivisa para o exercício de direitos à mesma relativos, radica no escopo de proteção do respetivo património premente apenas relativamente a atos de disposição.
III – O pedido de impugnação de escritura de justificação notarial deduzido no âmbito de ação de petição de herança, tendo por efeito o incremento do património hereditário, pode ser deduzido apenas por algum dos herdeiros, por tal legitimidade ativa lhes ser conferida pelo disposto no artigo 101º, nº 1, do Código do Notariado e por a exigência de intervenção de todos os interessados no exercício de direitos relativos à herança indivisa consagrada no artigo 2091º, do Código Civil apenas se justificar quando estiverem em causa atos de disposição.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"O tribunal recorrido, no despacho saneador, conheceu da exceção de ilegitimidade ativa dos autores, considerando, para tanto, que a pretensão de impugnação de justificação notarial que deduziram demandava a presença, no lado ativo da lide, dos restantes herdeiros de F e de G.
Interessa, pois, definir se a ação de impugnação da escritura de justificação notarial demanda a presença, no lado ativo, de todos os herdeiros das heranças indivisas, abertas por óbito dos avós dos autores e da ré, como defenderam os réus e foi consignado na decisão recorrida, ou se pode ser intentada por algum dos seus herdeiros.
É sabido que com vista à resolução definitiva do litígio, e à produção do seu efeito útil normal, a ação deve reunir, quer no seu lado ativo, quer no seu lado passivo, os titulares da relação material em causa. Como resulta do artigo 30º, nº 1, do Código de Processo Civil, o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar, sendo o réu parte legítima quando tem interesse direto em contradizer. A legitimidade constitui assim um pressuposto processual, sendo aferida em função do critério do interesse em demandar/contradizer.
De acordo com esse critério legal, a legitimidade deve ser aferida de acordo com o interesse direto que as partes têm no objeto do processo. [...]
Ora, assente que a legitimidade das partes terá que ser definida em função dos pedidos deduzidos, in casu forçosa é a conclusão de que as pretensões deduzidas se identificam com o reconhecimento da qualidade de herdeiros dos autores nas heranças abertas por F e G, com a impugnação de escritura de justificação que os autores consideram que incidiu sobre bem que integra as heranças, a declaração de ineficácia da escritura de compra e venda subsequente e a restituição de tal imóvel ao acervo dos bens a partilhar.
Afigura-se, pois que, as pretensões deduzidas, no essencial, reconduzem-se às típicas de uma ação de petição de herança e de uma ação de impugnação de escritura de justificação notarial.
A ação de petição da herança, mediante a qual o herdeiro pede judicialmente “o reconhecimento da sua qualidade sucessória, e a consequente restituição de todos os bens da herança ou de parte deles, contra quem os possua como herdeiro, ou por outro título, ou mesmo sem título” – artigo 2075º, nº 1, do Código Civil – reconduz-se a faculdade que pode exercer isoladamente (sem os restantes co-herdeiros) e a todo o tempo – artigos 2075º, n.º 2, e 2078º, n.º 1, do Código Civil. [...]
A definição da legitimidade ativa para a ação da petição de herança não oferece dúvidas, dado encontrar-se legalmente prevista a possibilidade de tal ação ser instaurada por um só herdeiro, como resulta do estabelecido no nº 1 do artigo 2078º, CC, com a seguinte redação: “Sendo vários os herdeiros, qualquer deles tem legitimidade para pedir separadamente a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que este possa opor-lhe que tais bens lhe não pertencem por inteiro”.
Porém, nos presentes autos, pretendem ainda os autores impugnar a escritura de justificação notarial outorgada em …-…-2009 que teve como efeito a aquisição por usucapião do prédio em discussão nos autos pelo falecido E. A tal pretensão cumularam os autores a de declaração de ineficácia da escritura de compra e venda celebrada em momento subsequente – …-…-2009 - pelo justificante.
Ora, em face da configuração conferida à ação, desde já se adianta que o fim visado com tal impugnação consiste na declaração de que tal prédio integra as heranças indivisas abertas por óbito de F e de G. Ou seja, os autores lograrão obter o efeito visado (restituição às heranças do prédio misto em causa) se tiverem êxito na impugnação da escritura de justificação já que, em caso contrário, forçoso será o reconhecimento de que os réus dispõem de título que justifica a manutenção na sua esfera jurídica do direito de propriedade sobre o referido prédio misto.
A escritura de justificação notarial confere ao adquirente a possibilidade de obter a primeira inscrição do seu direito, mostrando-se estabelecido no artigo 116º, nº 1 do Código de Registo Predial (aprovado pelo Dl 224/84, de 6 de julho, com as suas sucessivas alterações): “O adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito pode obter a primeira inscrição mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo”.
Sob a epígrafe “Justificação para estabelecimento do trato sucessivo no registo predial”, dispõe o artigo 89º do Código do Notariado (aprovado pelo Dl 207/95, de 14 de agosto e com as sucessivas atualizações), que:
“1 - A justificação, para os efeitos do n.º 1 do artigo 116.º do Código do Registo Predial, consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais.2 - Quando for alegada a usucapião baseada em posse não titulada, devem mencionar-se expressamente as circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse geradora da usucapião.”
Certo é que o facto justificado por meio de escritura de justificação notarial pode ser objeto de impugnação, como resulta do disposto no artigo 101º do Código do Notariado, mediante a instauração de ação de impugnação.
Ora, nos presentes autos, tal pedido, a par com as pretensões próprias da petição da herança, foi também formulado pelos autores por considerarem que a escritura impugnada colocou em causa o direito de propriedade das heranças sobre o prédio misto em discussão nos autos. Consequentemente, no que a tal pretensão se reporta, a demanda foi configurada como uma ação de simples apreciação negativa, destinada a afirmar que o justificante E não adquiriu o prédio em questão.
Em tal ação, incumbe aos réus a alegação e prova de que o justificante adquiriu o prédio por usucapião, nos termos afirmados na escritura de justificação em análise, mostrando-se onerados com a prova desse facto, nos termos do disposto no artigo 343º, nº 1, CC, sem que beneficie da presunção registral consagrada no artigo 7º do Código do Registo Predial – a este propósito, cfr. o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 1/2008, de 04-12-2007 [---] nos termos do qual: “Na ação de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116º, nº 1 do Cód. de Registo Predial e 89ºº e 101º do Cód. do Notariado, tendo sido os réus que nela firmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7º do Cód. de Registo Predial”. Assim, “passa a estar incerta” a aquisição por usucapião afirmada na escritura de justificação impugnada, pelo que o justificante não beneficia da referida presunção – Acórdão da Relação de Coimbra de 03-03-2015 [Proferido no processo nº 5730/06.0TBLRA.C1, disponível em www.dgsi.pt]
Relativamente à legitimidade para a instauração da ação de impugnação de escritura de justificação notarial haverá que considerar parte legítima “(…) quem, relativamente ao prédio justificado, invoque ser titular do direito ou interesse incompatível com o declarado na escritura de justificação” – Acórdão da Relação de Coimbra de 23-09-2008 [Proferido no processo nº 219/06.0TBVZL.C1, disponível em www.dgsi.pt].
Como se afirma no sumário acórdão da Relação de Guimarães de 18-12-2017 [ Proferido no processo nº 448/17.1T8CHV.G1, disponível em www.dgsi.pt]:
“I - Numa ação de impugnação de justificação notarial, o autor vem reagir contra a afirmação de titularidade do direito de propriedade por parte do justificante; trata-se, pois, de uma “ação de simples apreciação negativa” (art. 10º, n.º 3, al. a), do C. P. Civil).II- A impugnação da justificação notarial não está limitada apenas aos que afirmam ser os proprietários do imóvel ou que invocam direito real em colisão com o direito daqueles que justificaram notarialmente; reconhecendo-se também interesse em agir àqueles que invocam direito, diverso do direito de propriedade ou outro direito real, cujo exercício pode ser afetado se a ação não for proposta.III- Poderemos assim concluir que “interessados” para efeitos de impugnação da justificação, são os titulares de uma relação jurídica ou direito que pode ser afetado, posto em crise pelo facto justificado de modo que a declaração da inexistência do direito do justificante seja apta a pôr termo à situação de dúvida objetiva e grave em que se encontra o direito invocado pelo autor.IV- Neste tipo de ação, o interesse em demandar exprime-se, desde logo, pela utilidade derivada da procedência da ação (art. 30º, n.º 2, do C. P. Civil), sendo que, porém, deverão ser fundadas e ponderadas criteriosamente as razões que são indicadas pelo impugnante, designadamente quando este não invoca direito que esteja em colisão direta com o direito de propriedade que o justificante conseguiu ver reconhecido. (…)”
Em face do exposto, afigura-se forçosa a conclusão de que os autores, atenta a respetiva qualidade de herdeiros nas heranças em causa nos autos, não poderão deixar de ser havidos como interessados relativamente à pretensão de impugnação da escritura de justificação, dado que ali se afirmou a aquisição de um direito de propriedade pelo justificante, que consideram conflituante com o direito das próprias heranças.
Porém, interessa ainda definir se os autores, encontrando-se desacompanhados dos demais herdeiros, podem deduzir tal pedido de impugnação de escritura de justificação, nos presentes autos, relativamente ao único bem que pretendem ver restituído à herança dos seus avós. Está, pois, em causa a legitimidade dos autores para a cumulação das pretensões inerentes à ação de petição de herança com as da impugnação de escritura de justificação notarial.
Nuclear no âmbito desta controvérsia, é o regime consagrado no artigo 2091º, nº 1, CPC, que, sob a epígrafe “Exercício de outros direitos”, dispõe:
“1. Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no artigo 2078.º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.2. O disposto no número anterior não prejudica os direitos que tenham sido atribuídos pelo testador ao testamenteiro nos termos dos artigos 2327.º e 2328.º, sendo o testamenteiro cabeça-de-casal.”
Tal norma estabelece a regra do exercício conjunto dos direitos relativos à herança por todos os herdeiros, excecionando, expressamente, a legitimidade singular do herdeiro (desacompanhado dos demais) em caso de ação de petição da herança.
A propósito desta norma refere Capelo de Sousa [Lições de Direito das Sucessões, Vol. II, Coimbra Editora, 1980, pág. 68]:
“A lei exige a intervenção conjunta de todos os herdeiros para conferir legitimidade ativa e passiva a esses atos de disposição, uma vez que tratando-se de atos de disposição que põem em causa o valor e a composição da herança em si mesma, apesar de se poderem referir apenas a alguns dos bens hereditários, justo é que intervenham todos os titulares desse património autónomo”. Ou seja, a exigência de intervenção conjunta de todos os herdeiros justifica-se quando estejam em causa atos de disposição dos bens da herança.
Porém, pretendendo o herdeiro fazer operar o retorno à herança de bem que considera de que esta foi desapossada, em rigor não está a praticar qualquer ato de disposição, visando, ao invés, aumentar o acervo dos bens que a integram.
O certo é que, relativamente à legitimidade do herdeiro desacompanhado dos restantes para deduzir pedido de impugnação de justificação notarial nos termos do disposto no artigo 101º, nº 1 do Código do Notariado, relativamente a prédio cuja restituição é pedida em ação de petição de herança, constata-se que a questão não tem merecido um tratamento unívoco por parte da jurisprudência. [...].
Propendemos para [...] não [se] poder concluir que, para assegurar a legitimidade ativa na presente ação (na vertente da impugnação da escritura de justificação), seja necessário que os autores estejam acompanhados dos demais herdeiros das heranças indivisas que consideram titulares dos bem que constituiu o objeto de tal escritura.
E assim é, desde logo, porquanto a legitimidade substantiva para a propositura da ação é definida pelo citado artigo 101º, nº 1, do Código de Notariado, decorrendo da sua literalidade que não exige a intervenção de todos os interessados, mas apenas de um deles, ou de alguns, como se extrai da expressão “(…) algum interessado (…)” ali consignada. Ora, ao intérprete está vedada a atribuição à lei de um sentido que não encontre na sua letra um mínimo de correspondência verbal – cfr. artigo 9º, nº 2, do Código Civil.
Por outro lado, a ratio subjacente ao disposto no artigo 2091º do Código Civil, ao exigir a intervenção de todos os interessados de herança aberta e indivisa no exercício de direitos à mesma relativos, radica no escopo da proteção do respetivo património, premente apenas relativamente a atos de disposição, que não estão em causa nos autos. Ao invés, a procedência do pedido de impugnação da escritura de justificação notarial terá por efeito o incremento do património hereditário, que passará a abranger o prédio em discussão, do qual, na tese dos autores, as heranças se encontram desapossadas.
Assim, ainda que se admita a intervenção (voluntária) de todos os herdeiros no lado ativo da lide na ação de impugnação de escritura de justificação, afigura-se que tal intervenção não pode ser exigida para assegurar a legitimidade. Tal exigência mostra-se obstaculizada pela literalidade do artigo 101º, n.º 1, do Código do Notariado, que não impõe, para o efeito, a intervenção de todos os herdeiros, mas também pela ratio subjacente ao exercício de direitos relativo à herança, consagrado no artigo 2091º do Código Civil que, nos termos expostos, obriga a tal intervenção apenas quando se discutam atos de disposição do património hereditário.
Não pode ainda deixar de salientar-se que o efeito útil visado com a interposição da presente identifica-se essencialmente com o “re-ingresso” do prédio nas heranças em causa, desiderato apenas alcançável com a impugnação da escritura de justificação que constituiu a causa da sua retirada do acervo hereditário.
Em conclusão, não tem aplicação in casu o disposto no artigo 33.º do CPC, não se verificando a apontada ilegitimidade ativa, por preterição de litisconsórcio necessário, do que decorre serem os autores partes legítimas para a presente ação.
*3. [Comentário] Não deixa de se acompanhar a conclusão do acórdão de que, para a acção de impugnação de escritura de justificação notarial, não é necessária a presença, como parte activa, de todos os herdeiros. As razões para assim se entender (que não coincidem com aquelas que constam do acórdão da RL) foram referidas aqui.
A latere, cabe referir que não é muito feliz o argumento de que, "pretendendo o herdeiro fazer operar o retorno à herança de bem que considera de que esta foi desapossada, em rigor não está a praticar qualquer ato de disposição, visando, ao invés, aumentar o acervo dos bens que a integram". Cabe lembrar que, com base neste argumento, para além de muitas outras estranhas consequências, uma acção de reivindicação, ao contrário do disposto no art. 34.º, n.º 1, CPC, nunca teria de ser proposta por ambos os cônjuges.
MTS
A latere, cabe referir que não é muito feliz o argumento de que, "pretendendo o herdeiro fazer operar o retorno à herança de bem que considera de que esta foi desapossada, em rigor não está a praticar qualquer ato de disposição, visando, ao invés, aumentar o acervo dos bens que a integram". Cabe lembrar que, com base neste argumento, para além de muitas outras estranhas consequências, uma acção de reivindicação, ao contrário do disposto no art. 34.º, n.º 1, CPC, nunca teria de ser proposta por ambos os cônjuges.
MTS