Na sentença decidiu-se, de jure, nos seguintes termos:
«Vem, desde logo, o Ministério Público, na sua resposta ao recurso, arguido a violação de caso julgado em face do recurso de impugnação que correu termos sob o citado 174/22.....
Sustenta, para tanto, que, entre o presente recurso e o dito processo 174/22.... existe identidade de sujeitos (referindo, a esse particular, que pese embora estejam em causa Conservatórias diferentes sempre as mesmas assumem a mesma qualidade jurídica), de pedido e de causa de pedir.
Ao invés, sustenta o recorrente que, embora a causa de pedir seja idêntica em ambos os recursos, inexiste identidade de sujeitos, na medida em que, apesar de o requerente ser o mesmo, as Conservatórias, embora tenham a mesma qualidade jurídica, são dirigidas por Conservadores que são pessoas diferentes, com entendimentos e apreciações diferentes; inexiste identidade de pedido, na medida em que as requisições dos pedidos de registo são diferentes, sendo que, além do pedido de registo de aquisição dos dois prédios rústicos em nome do recorrente, a requisição apresentada na Conservatória ... continha ainda a alínea b) da sentença do Julgado de Paz, pedido este que foi omitido na requisição apresentada na Conservatória ....
Vejamos.
A excepção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira já ter sido decidida por sentença que não admite recurso ordinário e visa evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (cf. o art. 580.º n.ºs 1 e 2 do novo CPC). Desta forma, a excepção de caso julgado impede que seja proferida uma decisão de mérito na acção posteriormente intentada, razão pela qual é qualificada de excepção dilatória [cf. o art. 577.º al. i) do novo CPC], com os efeitos estabelecidos no art. 576.º n.º2 do mesmo código.
O caso julgado que releva para efeitos da excepção em análise é o caso julgado material, no sentido em que transitada a sentença que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele quando se verifique a instauração de nova acção com a tríplice identidade quanto ao objecto [causa de pedir e pedido] e sujeitos processuais.
Ou seja, como decorre do art. 581.º do novo CPC, a repetição de uma causa pressupõe, além da identidade de sujeitos, que se esteja perante o mesmo pedido e a mesma causa de pedir, o que cumpre analisar.
Sobre a identidade dos sujeitos, dispõe o art. 581.º n.º 2 do novo CPC que esta tem lugar “quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica”, sendo pacífico na doutrina e na jurisprudência que aquilo que interessa para o efeito não é a identidade física dos sujeitos, mas sim a sua identidade em face de uma concreta relação material controvertida, existindo identidade ainda que, processualmente, os sujeitos daquela relação material, processualmente, estejam em posições diferentes.
No caso em apreço, cumpre apreciar da verificação de caso julgado, tendo por base os procedimentos iniciais de inscrição da aquisição dos dois prédios rústicos em nome do aqui recorrente. Ou seja, a Conservatória do Registo Predial, seja de ..., seja de ..., não tem a qualidade de parte, mas sim de entidade decisora, que funciona, no âmbito do procedimento administrativo em causa, como “primeira instância”, sendo irrelevante a identificação individual do Conservador em funções [tal como ocorre, aliás, com os tribunais judiciais].
Como tal, in casu, verifica-se a existência da identidade de sujeitos quanto ao aqui recorrente, que foi requerente de ambas as apresentações para registo de aquisição, sendo esta a única que releva.
Por sua vez o pedido é o meio de tutela jurisdicional pretendido pelo requerente, é o efeito jurídico que o requerente pretende obter com a propositura da acção. A causa de pedir, por seu turno, é o facto concreto que serve de fundamento ao direito invocado pelo requerente.
Descendo ao caso concreto, temos, assim, que, em ambas as apresentações, existe identidade, quer do pedido – inscrição dos prédios rústicos ...15 e ...16 em nome do recorrente -, e da causa de pedir – aquisição da propriedade sobre os referidos prédios declarada pela sentença proferida pelo Julgado de Paz ..., com fundamento na usucapião.
Ou seja, na medida em que o pedido de registo apresentado na Conservatória ... não introduz quaisquer factos novos em face da primeira decisão de recusa, proferida pela Conservatória ..., quiçá, não vem suprida a violação do trato sucessivo…, não vem suprida a sobreposição de artigos matriciais [ou seja, a criação ex novo de dois artigos/prédios tendo por base a desanexação de um artigo/prédio pré-existente], no caso dos autos torna-se evidente a existência de identidade de ambos os pedido de registo apresentados pelo recorrente e, bem assim, da causa de pedir subjacente aos mesmos.
E, nesta medida, a apresentação de registo n.º...12, apresentada na Conservatória ..., consubstancia uma repetição da apresentação n.º539, apresentada e recusada [com decisão transitada em julgado] na Conservatória ....
Termos em que importa concluir que existe caso julgado relativamente ao pedido formulado através da apresentação n.º...12, que integra o objecto do presente recurso, procedendo, em consequência, a excepção de caso julgado arguida pelo Ministério Público.
A excepção de caso julgado constitui uma excepção dilatória que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância - cf. os arts. 576.º n.º2.º, 577.º al. i) e 578.º, todos do novo CPC -, in casu, à manutenção da decisão impugnada.
Ainda assim, mesmo que assim, não se entendesse, sempre o presente recurso teria de improceder.
Efectivamente, tal como exarado na douta sentença proferido no processo 174/22...., que acompanhamos na íntegra, não obstante as decisões do Julgado de Paz terem o valor de sentença proferida por tribunal de 1.ª instância para efeitos do disposto no art. 205.º n.º2 da CRP, não podem substituir-se às demais autoridades, maxime, do Conservador na prática dos seus actos próprios, nem sobrepor-se à competência especifica do mesmo. Como tal, a decisão proferida pelo Julgado de Paz não pode ser entendida como uma ordem directa e concreta dirigida ao Conservador, para a qual os tribunais judiciais não têm legitimidade. Ou seja, compete ao Conservador, perante a decisão judicial que lhe é apresentada, verificar, além do mais, a identidade dos sujeitos e dos prédios e o respeito do trato sucessivo, de molde a praticar o acto próprio da sua competência [registo da aquisição] em conformidade com a lei – cf. o art. 68.º do Código de Registo Predial.
Ao invés, com o devido respeito, a inscrição do direito de propriedade invocado pelo recorrente nos termos decididos pelo Julgado de Paz ..., sem documentar e registar as desanexações que, alegadamente, terão dado origem às parcelas identificadas da referida sentença, e em violação dos arts. 34.º, 80.º e 116.º do Código de Registo Predial, daria necessariamente origem à sobreposição de descrições prediais e à criação de dois tratos sucessivos incompatíveis entre si.
Assim, transpondo para o caso em análise a douta sentença proferida no processo 174/22...., constatando, como constatou, a sra. Conservadora da Conservatória de ..., no exercício da qualificação, perante os documentos apresentados e as disposições legais aplicáveis, existirem razões de natureza registral e de quebra do trato sucessivo, que, aliás, também subscrevemos na íntegra, para recusar o pedido de registo concretamente formulado pelo recorrente, consideramos legal a decisão de recusa sub judice
Concluindo, bem andou a Sra. Conservadora, termos em que o presente recurso sempre seria julgado improcedente.»
6.2.
Verifica-se assim que na sentença o recurso foi indeferido e a decisão da Conservatória confirmada desde logo, em primeira mão e a título principal, por um motivo processual formal, qual seja a conclusão pela existência de caso julgado por reporte à sentença proferida no processo 174/22.....
E apenas se desatendeu o recurso por motivos substantivos, corroborando-se os argumentos aduzidos pela Conservatória e confirmados neste processo 174/22, a título meramente subsidiário e, quiçá, ad abundantiam. [...]
6.3.
Mas mesmo que o recorrente tivesse abordado o fundamento, primeiro e decisivo, do caso julgado pelos fundamentos já por ele aduzidos no processo, não teria razão.
A exceção do caso julgado, prevista no artº 580º do CPC pressupõe a repetição de uma causa; e esta repete-se quando exista a identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir.
Para que haja identidade de sujeitos basta que ele se verifique no atinente à sua qualidade jurídica, ie., e determinantemente, atentos os interesses que prosseguem e o estatuto e legitimidade que invocam.
Ou, por outras palavras, para este efeito, não releva o estrito conceito formal de parte, mas, na verdade, um conceito material de parte. Este apura-se pelo âmbito de eficácia material do objeto processual e não pela estrita e literal titularidade da instância.
Daqui decorre que são idênticos, v. g., o primitivo titular do direito que interveio na ação e as pessoas que, por sucessão, mortis causa ou entre vivos, - v. g. compra, doação, permuta, etc -, assumiram a posição jurídica daquele, quer a substituição se tenha operado no decurso da ação – artºs 262º e 263º do CPC -, quer se tenha verificado só após ter sido proferida a sentença.
E que não obsta à verificação de tal identidade a circunstância de nos dois processos as partes terem litigado na posição de réu e depois na de autor, ou vice versa – cfr. M. de Andrade: Noções Elementares, 1979, p. 310; A. Varela: Manual de Processo Civil, p.722; A. Neto: Breves Notas ao CPC, 2005, p.145 e Remédio Marques: Ação Declarativa à Luz do Código Revisto, 2007, p.452.
Já quanto ao pedido existe identidade do mesmo quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
Assim o pedido tem a ver/conexiona-se/reporta-se ao objeto da ação como definido pelo autor, reside na pretensão por si formulada a qual se identifica através da providencia solicitada ao tribunal e através do direito a ser tutelado por esse meio.
Na verdade:
«A identidade de pedido …é avaliada em função da posição das partes quanto à relação material, podendo considerar-se que existe tal identidade sempre que ocorra coincidência na enunciação da forma de tutela jurisdicional – implícita ou explícita – pretendida pelo autor, no conteúdo e objeto do direito a tutelar e nos efeitos jurídicos pretendidos.
Ocorre identidade de pedidos se o autor, numa e noutra ação, pretende obter o mesmo efeito útil, isto é, compelir os réus ao cumprimento do contrato-promessa de compra e venda de parcela de terreno.» - AC STJ de 05.12.2017, p. 1565/15.8T8VFR-A.P1.S1
E há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico.
A causa petendi é pois o facto com relevância jurídica, ie. à qual a lei atribui potenciais efeitos jurídicos, mas que, ele mesmo, deve assumir essência e contornos materiais concretos, do qual dimanarão aqueles efeitos jurídicos se a pretensão deduzida for atendida.
Há identidade de causas de pedir mesmo que os factos complementares sejam diversos.
Se os factos aditados aos factos alegados na outra ação são apenas complementares ou concretizadores de uma causa de pedir que estava suficientemente individualizada, a causa de pedir é idêntica.
Exemplo: se numa ação por acidente de viação se alega o facto danoso como tendo sido propositado e noutra ação como tendo sido inconsciente, há, ainda assim, identidade de causa de pedir.
E há identidade de causas de pedir mesmo que a qualificação jurídica seja diversa.
Assim, se o autor obteve a condenação do réu na restituição de quantia pecuniária cedida a título de mútuo fica também impedido de deduzir o mesmo pedido com fundamento nos mesmos factos, agora qualificados como contrato de mandato – cfr. Rui Pinto, in file:///C:/Users/Mj01096/Downloads/20181126-ARTIGO-JULGAR-Exce%C3%A7%C3%A3o-e-autoridade-do-caso-julgado-Rui-Pinto.pdf.
Por outro lado, importa ter presente que o caso julgado tem por objetivos defender o prestígio dos tribunais e a certeza e segurança jurídica, já que os mesmos seriam afetados por se decidir antagónica ou contraditoriamente a mesma situação concreta.
Porém, esta figura, em termos concretos da vida real, «apenas se destina a evitar uma contradição pratica de decisões e não já a sua colisão teórica ou lógica…só pretende obstar a decisões concretamente incompatíveis (que não possam executar-se ambas sem detrimento de alguma delas)…a que em novo processo o juiz possa estatuir de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta definida por anterior decisão…» - M. Andrade, ob. cit, p. 317/8. [...]
Ora no caso sub judice é meridianamente evidente que existe, entre a presente ação e os autos 174 supra aludidos, desde logo identidade de pedido: o pedido de registo dos imóveis rústicos ...15 e ...16.
E existe identidade de causa de pedir.
Pois que o facto alicerçante fundamentador é o mesmo: aquisição da propriedade sobre os referidos prédios declarada pela sentença proferida pelo Julgado de Paz ..., com fundamento na usucapião.
E tudo isto foi alegado sucessivamente nas ... e de ....
Já quanto à identidade de sujeitos ela outrossim se verifica, pois que as Conservatórias e os Tribunais são os mesmos na sua qualidade jurídica, já que exercem as mesmas competências funcionais.
Inclusive, esta identidade sai reforçada, pois que as duas Conservatórias e o Tribunal, na ação 174, aduziram, na sua essencialidade relevante, os mesmos argumentos para indeferir o registo.
E o facto de apenas existir uma discrepância geográfica entre as conservatórias, natural e quase obviamente, irreleva."
[MTS]