"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



20/05/2025

Jurisprudência 2024 (170)


Título executivo;
confissão de dívida*


I. O sumário de RG 19/9/2024 (79/23.7T8VCT-A.G1) é o seguinte:

1 – A exequibilidade do título apresentado à execução não depende da “prova” da entrega da quantia cuja cobrança coerciva se pretende efetuar através da instauração da execução.

2 – A declaração de confissão de dívida constante de escritura pública constitui título executivo ainda que o contrato de mútuo subjacente à emissão da declaração seja nulo por vício de forma.

3 - Se o documento particular com autoria reconhecida faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, por maioria de razão tal acontece quanto às declarações constantes de documento autêntico, como a escritura pública, nos termos do art.º 376.º, n.º1, do C. Civil.

4 – A condenação da parte como litigante de má-fé exige que se individualizem os fundamentos de tal condenação, não bastando para tal que o embargante não tenha logrado provar o pagamento que alegava ter feito da quantia exequenda.


II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"1 – Começa a recorrente por colocar em causa a decisão proferida em sede de despacho saneador e relativa à invalidade / inexequibilidade do título executivo.

Para a recorrente embargante, estando invocados dois contratos de mútuo que seriam, considerando o seu montante, nulos por vício de forma, os documentos de confissão de dívida não poderiam constituir título executivo, apesar de constarem de escritura pública.

Alega ainda a recorrente que os títulos executivos não referem, nem provam, a entrega das quantias à embargante.

É inequívoco que, considerando os valores de 105.500,00 euros e 45.000,00 euros, o contrato de mútuo que tivesse sido celebrado entre as partes, nos anos de 2008 e 2010, teria de ser outorgado por escritura pública – art.º 1143.º do C. Civil, na redação em vigor à data da celebração de cada um dos acordos de mútuo.

É também inequívoco que as declarações de confissão de dívida, reportando-se às quantias que haviam sido entregues à executada em data anterior à da emissão da declaração, não suprem a falta de forma dos contratos de mútuo celebrados (a quantia de 105.500,00 euros foi recebida antes do dia 20/10/2008 e a quantia de 45.000,00 euros foi recebida antes do dia 17/05/2010, datas que correspondem às datas em que foram elaboradas as declarações de dívida).

Na decisão proferida concluiu-se que “em execução fundamentada em título executivo correspondente a declaração de dívida em que o executado reconhece haver recebido do exequente quantia determinada em razão da outorga entre ambos de mútuo nulo, porque não celebrado por escritura pública, nada obsta ao prosseguimento da execução com vista à cobrança pelo exequente do montante mutuado, ao abrigo do disposto no art.º 289.º, n.º 1, do Cód. Civil”.

Ou seja, entendeu-se que, ainda que o mútuo subjacente à emissão do documento que constitui título executivo seja nulo, este documento pode ser utilizado como título executivo para a restituição da quantia mutuada, obrigação que decorre, precisamente, da declaração da nulidade do mútuo.

Que as escrituras públicas juntas constituem título executivo decorre do disposto no art.º 703º, n.º 1, alínea b), do C. P. Civil.

Que a declaração confessória de dívida se reporta a um mútuo nulo por violação da forma legal, também, considerando os valores das quantias mutuadas, como acima se disse, resultando tal nulidade dos termos em que a própria exequente alegou a obrigação exequenda constante do requerimento executivo.

Ora, esta realidade não torna o título inválido, nem inexequível.

Note-se que o único Acórdão citado pela recorrente nesta matéria refere-se a circunstâncias que não se verificam na situação em apreço (“II - Se não constar do documento a causa da obrigação e a válida constituição da obrigação fundamental a que se reporta o crédito reconhecido estiver sujeita a determinada forma, mais solene que a do documento utilizado como título, o documento não poderá constituir já título executivo”).

Com efeito, nestes autos, consta dos documentos apresentados como título executivo a causa da obrigação – o mútuo – e, estando este sujeito à forma legal de escritura pública, a confissão de dívida observa esta forma mais solene.

Daqui decorre que os dois títulos executivos apresentados, atenta a sua forma, não substituem a forma legal exigida para a celebração dos contratos de mútuo, que são nulos, mas, considerando a sua forma, escritura pública, e o que deles consta como tendo sido reconhecido pela executada, nos termos do art.º 703º, n.º 1, alínea b), do C. P. Civil, constituem título executivo bastante para a obrigação de restituição das quantias mutuadas.

Vide, neste exato sentido, citando vasta jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e a doutrina, o Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 1//09/2015, da Juiz Desembargadora Maria Purificação Carvalho, proc. 3150/13.0TBGMR-A.G1, in www.dgsi.pt.

Como se referiu supra, nas suas alegações, tal como acontecera já na oposição deduzida por embargos, a recorrente fundamenta ainda esta invalidade ou inexequibilidade das declarações de confissão de dívida na alegação de que em momento algum é efetuada prova da efetiva realização dos empréstimos.

A lei não exige que o título executivo mencione a entrega da quantia que é exigida na execução. Pelo contrário, ao admitir como título executivo o documento que importe o reconhecimento de qualquer obrigação, desde que seja exarado ou autenticado pelas entidades referidas no art.º 703.º do C. P. Civil, expressamente se aceita que este existe e pode fundamentar a execução se contiver tais características.

A “prova” dos empréstimos pode ser relevante para se afirmar a existência ou inexistência da obrigação exequenda, mas não releva para que se considere válido ou exequível o título executivo.

Inexiste assim qualquer invalidade ou inexequibilidade do título executivo.

Sempre se dirá que esta invalidade ou inexequibilidade não constituíram exceções dilatórias que implicassem qualquer nulidade do processo.

Apreciando esta invalidade ou inexequibilidade está, afinal, o Tribunal a apreciar o mérito dos embargos e, a sua verificação (que não se constata na situação sub judice), implicaria a sua procedência e a extinção da execução.

Assim, não obstante a imprecisão da parte final da decisão proferida em sede de despacho saneador, mantém-se a decisão proferida de improcedência da exceção."


*3. [Comentário] Segundo se percebe, a divergência entre a a 1.ª instância e a RG reside em que aquela entendeu que havia título executivo para a restituição da quantia mutuada com base na nulidade do contrato de mútuo (daí a referência ao art. 289.º, n.º 1, CC) e a RG considerou que há título executivo para a cobrança da dívida mutuada com base na confissão da dívida.

A razão está do lado da RG.

MTS