Cumpre-nos assim decidir a primeira questão objecto de recurso, ou seja, se o regime específico do inventário obsta à aplicação das regras gerais de processo civil no que se reporta à possibilidade de alteração dos requerimentos probatórios.
Da aplicabilidade do artº 598 do C.P.C. aos processos de inventário.
Alega o recorrente que, a esta reclamação, se aplicam as normas especiais do processo de inventário não sendo aplicável o regime geral do artº 598 do C.P.C. Indica em abono da sua pretensão dois Acórdãos desta Relação, proferidos no âmbito do regime vigente no Código de Processo Civil de 1961 (nomeadamente na vigência dos revogados artigos 1340º, nº 3; 1344º, nº 2; 1345º, nº 1; 1348º, nº 1, e 1349º, nº 3 daquele código) e um da Relação do Porto, este último sem qualquer relevo para a decisão porque se reporta à ausência de indicação de prova e não à alteração da já indicada.
Não tem o recorrente razão, no entanto, como intentaremos demonstrar, com todo o respeito por opinião contrária, pois que o regime de inventário instituído pela Lei nº 117/2019 de 13 de Setembro, não afasta a aplicabilidade das regras gerais de processo civil, no que não for contrário os fins visados pelo normas que regem sobre a partilha de bens nesta sede (artº 549, nº 1 do C.P.C.). Há assim que definir o alcance e os princípios que se visaram com a introdução deste novo regime de inventário e com a revogação do RJPI instituído pela Lei nº 23/2013 de 5 de Março.
No actual modelo, apresentada relação de bens em sede de inventário, prescreve o artigo 1104.º, n.º 1, alínea e), do CPC, que o interessado pode apresentar reclamação à relação de bens, decorrendo do artigo 1105.º a tramitação a seguir para decisão desta reclamação, ou seja, a notificação da reclamação ao cabeça de casal, cabendo ao mesmo apresentar a respetiva resposta também no prazo de 30 dias.
No que se reporta à produção de prova, dispõe o nº 2, do artº 1105 do C.P.C. que se for deduzida oposição, impugnação ao inventário ou reclamação da relação de bens nele apresentada, é no respectivo requerimento e na resposta subsequente que devem ser indicados os meios de prova.
Seguem-se após, a realização das diligências probatórias que couberem ao caso, requeridas ou ordenadas oficiosamente (n.º 3, do referido artigo 1105.º), com prévia realização de uma audiência prévia se o juiz o julgar necessário (artigo 1109.º) ou o saneamento do processo (artigo 1110.º), decidindo-se as questões suscitadas pelas partes que possam influenciar a determinação dos bens a partilhar e a partilha (de acordo com o artº 1110, nº 1 alíneas a) e b)). Decididas estas questões, é ordenada a notificação dos interessados para, querendo, proporem a forma à partilha, designando-se dia para a conferência de interessados, seguindo-se a tramitação processual necessária à prossecução da finalidade última do inventário: a efectiva partilha de bens pelos interessados.
Trata-se de regime diverso do estipulado no Regime Jurídico da Lei do Inventário (RJPI), introduzido pela Lei nº 23/2013 de 5 de Março, comportando fases distintas e estanques, segundo o modelo de uma acção declarativa, procurando em cada fase a decisão das questões que possam influir na partilha dos bens e na definição dos interessados. Como refere Lopes do Rego [REGO, Carlos Lopes do, “A recapitulação do inventário”, Julgar Online, Dezembro de 2019, pág. 15 e segs] “o modelo procedimental instituído para o inventário na Lei n.º 117/19 comporta: I) Uma fase de articulados (em que as partes, para além de requererem a instauração do processo, têm obrigatoriamente de suscitar e discutir todas as questões que condicionam a partilha, alegando e sustentando quem são os interessados e respetivas quotas ideais e qual o acervo patrimonial, ativo e passivo, que constitui objeto da sucessão) – abrangendo a fase inicial e a fase das oposições e verificação do passivo. Na verdade, nos arts. 1097.º/1108.º CPC procura construir-se uma verdadeira fase de articulados: o processo inicia-se tendencialmente (ao menos, quando requerido por quem deva exercer as funções de cabeça de casal) com uma verdadeira petição inicial (e não como o mero requerimento tabelar de instauração de inventário) de que devem constar todos os elementos relevantes para a partilha. (…) Após despacho liminar (em que o juiz verifica se o processo está em condições de passar à fase subsequente), inicia-se a fase seguinte, da oposição ou do contraditório, exercendo os interessados citados o direito ao contraditório, cabendo-lhes impugnar concentradamente no próprio articulado de oposição tudo o que respeite à definição do universo dos interessados diretos e respetivas quotas hereditárias, à competência do cabeça de casal e à delimitação do património hereditário, incluindo o passivo (cuja verificação é, deste modo, antecipada – do momento da conferência de interessados – para o da dedução de oposição e impugnações); II) Uma fase de saneamento, em que o juiz, após realização das diligências necessárias, e com a possibilidade de realizar uma audiência/conferência prévia, deve decidir, em princípio, todas as questões ou matérias litigiosas que condicionam a partilha e a definição do património a partilhar, proferindo também, nesse momento processual – e após contraditório das partes – despacho contendo a forma à partilha (também ele agora antecipado para esta fase de saneamento, anterior à conferência de interessados), em que define as quotas ideais dos vários interessados na herança, conferência de interessados; (…)”
Assim não acontecia no âmbito do RJPI, permitindo-se no que se reporta à reclamação da relação de bens, a dedução desta reclamação, quer no prazo fixado no nº 1 do artº 30 (20 dias a contar da notificação da relação de bens), quer no início da audiência preparatória, conforme o permite o artº 32, nº5 do RJPI. Neste modelo, a reclamação da relação de bens, seguia o regime específico previsto para os incidentes do inventário, de acordo com os normativos expressos nos artºs 14 e 15 do RJPI (preceitos muito semelhantes ao disposto para os incidentes da instância em processo comum, nos artºs 293 e 294 do C.P.C.)
O actual modelo afastou-se da fluidez que regia o RJPI e veio estabelecer fases nas quais têm de ser decididas as questões fundamentais do inventário, nomeadamente a fase de oposição e saneamento do processo, com decisão de todas as questões relativas ao inventário (nomeadamente das reclamações de bens), sem a decisão das quais os autos não prosseguem.
É nesta fase de oposição que devem ser apresentadas as provas necessárias à decisão, seguindo-se após a instrução com produção dos meios de prova necessários, quer os indicados pelos interessados quer os determinados oficiosamente pelo juiz da causa, seguindo-se o saneamento do processo.
Tendo em conta este novo modelo e as diversas fases estipuladas neste processo, a oposição, impugnação ou reclamação traduzem-se já não na dedução de um incidente no inventário (a que se aplicariam as regras específicas e as contidas nos artºs 292 e 293 do C.P.C., ex vi do artº 1091), mas “no exercício pelos citados de um direito de defesa que é processado nos próprios autos e inserido na tramitação normal e típica do processo de inventário. Também a resposta dos interessados a essa oposição, impugnação ou reclamação se insere na tramitação do processo de inventário (n.º 1)” [SOUSA, Miguel Teixeira de, REGO, Carlos Lopes do, GERALDES, António Abrantes e TORRES, Pedro Pinheiro, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, 2020, pág. 86.], a que são aplicáveis as regras gerais previstas no C.P.C. (ex vi do artº 549 nº 1 do C.P.C.), nomeadamente as que regem sobre a prova.
Ora, do disposto no nº 2 do artº 1105 do C:P.C. não resulta nenhum obstáculo à alteração posterior de meios de prova já indicados nos articulados em que são deduzidas as oposições, impugnações ao inventário ou reclamações relativamente à relação de bens apresentada. [Neste sentido vide Acs. da Relação de Guimarães de 11/01/2023, proc. n.º 487/21.8T8VCT-A.G1, de que foi relatora Alexandra Rolim Mendes; de 30/03/2023, proc. nº 215/21.8T8VVD-A.G1, de que foi relatora Anizabel Sousa Pereira; de 25.05.2023, proc. n.º 2525/21.5T8VCT-A.G1, de que foi relator Pedro Maurício; de 01/02/2024, proc. nº 2020/22.5T8VNF-A.G1 e de 14/03/2024, proc. nº 476/19.2T8MNC-C.G1, de que foi relator, em ambos, Jorge Santos; do TRE de 20/10/11, proc. nº 245/08.5TBELV-A.E1, de que foi relator Mata Ribeiro; do TRP de 22/02/2024, proc. nº 1020/22.0T8MTS-A.P1, de que foi relatora Anabela Morais; de 10/07/2024, proc. nº 645/21.5T8ALB-A.P1, relator João Proença, todos disponíveis no endereço www.dgsi.pt]
É certo que a não dedução tempestiva de meios de prova, inviabiliza o direito de a parte produzir prova. É a consequência do princípio da preclusão e da auto-responsabilização das partes, sendo certo que, apesar do disposto no nº 3 do artº 1105 do C.P.C., que constitui um afloramento do princípio do inquisitório, o “exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal pressupõe que as partes cumpriram minimamente o ónus que sobre elas prioritariamente recai de indicarem tempestivamente as provas de que pretendem socorrer-se para demonstrarem os factos cujo ónus probatório lhes assiste - não podendo naturalmente configurar-se como uma forma de suprimento oficioso de comportamentos grosseira ou indesculpavelmente negligentes das partes” [REGO, Carlos Lopes do, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, Almedina, 2004, pág. 533.]. [...]
Assim se conclui que comportando o actual modelo de processo civil, uma verdadeira fase instrutória, conforme resulta do artº 1109 do C.P.C., aplica-se por via do disposto no artº 549, nº 1 do C.P.C., as disposições do processo civil que regem sobre a possibilidade de alteração dos meios de prova, nomeadamente o disposto no artº 598, nº 2 do C.P.C.
Aliás, conforme assinala certeiramente o Acórdão do TRE de 11/05/2023 [---] a disposição contida no artº 1105, nº 2 do C.P.C., é afinal a mesma da prevista para o processo comum, conforme decorre do disposto no artº 552, nº 6 e 423, nº 1 do C.P.C.
Ainda que se considerasse que estas reclamações constituem verdadeiros incidentes do processo de inventário, entendemos possível a alteração de requerimentos probatórios, embora condicionado à superveniência de factos que venham a ser alegados ou à junção de prova documental relevante [---].
Com efeito, conforme por nós já afirmado no Acórdão desta Relação de 01/02/2022 [---], embora a respeito de um procedimento cautelar “dispõe o artº 365 nº 1 do C.P.C que a prova do direito ameaçado e do receio de lesão deve ser oferecida como o r.i., à semelhança aliás do disposto para os acidentes da instância, conforme decorre do disposto no artº 293 do C.P.C., aplicável por via da remissão do nº 3 do citado preceito legal.
Existindo contraditório do requerido prévio à decisão, na oposição deduzida deve este oferecer igualmente os seus meios de prova, seguindo-se após, sem mais articulados, a fase da audiência final.
Assim sendo, nos procedimentos cautelares, os meios de prova terão de ser requeridos com o requerimento inicial e com a oposição que lhe vier a ser deduzida. E, dada a natureza urgente deste procedimento, não são admitidos outros articulados, mormente de resposta a eventuais excepções, sem prejuízo do disposto no artº 3 nº 4 do C.P.C, nem apresentação posterior de novos meios de prova.
Da conjugação destes preceitos legais resulta que o legislador estabeleceu momentos processuais para a apresentação de meios de prova pelas partes neste tipo de procedimentos, sob pena de preclusão deste direito para ambas as partes, sem prejuízo da produção de meios de prova pelo tribunal, oficiosamente, conforme decorre do disposto no artº 367 nº 1 do C.P.C.
Não é assim aplicável aos procedimentos cautelares, pela sua urgência, o disposto no artº 598 do C.P.C., sem prejuízo da possibilidade de junção de documentos nos momentos processuais previstos no artº 423 do C.P.C.”
Mas mesmo a considerar esta reclamação um incidente do inventário, no sentido da admissibilidade da alteração dos meios de prova, a respeito dos artºs 1349 e 1334 (este último remetida para os artºs 302 a 304 daquele código, preceitos aplicáveis aos incidentes da instância), defendeu-se em Ac. do TRG de 04/06/2013 [---], que “não se nos oferecem dúvidas de que, em matéria de apresentação das provas, continua a vigora o princípio da preclusão, devendo cada uma das partes, no incidente em causa, juntar o rol de testemunhas e requerer outros meios de prova no requerimento em que se suscite o incidente e na oposição que lhe for deduzida, sob pena de caducidade do direito.
Cumprido aquele ónus processual, já não nos parece que a parte não possa, ainda em tempo oportuno, substituir ou aditar testemunhas ao rol (regularmente) apresentado, em ordem a uma efetiva concretização de alguns dos princípios acima enunciados, sem prejuízo relevante de outros. Se o pode fazer no processo ordinário e também, por via da aplicação do art.º 463º, nº 1, in fine, ao processo sumário e aos processos especiais, porventura até ao processo declarativo sumaríssimo (art.ºs 464º, 794º, nº 1 e 795º, nº 2), nada de particular ou específico em matéria de incidentes permite a negação daquele direito. As razões que justificam a alteração ou o aditamento ao rol de testemunhas na generalidade das formas de processo encontram a mesma pertinência no processo incidental (uma testemunha que morre ou adoece e não pode deslocar-se a Juízo, outra que tem que viajar e a parte prefere substituí-la, outra ainda importante de que a parte não se lembrou antes do oferecimento do rol, ou que, entretanto, se mostrou conhecedora de factos de grande relevância para a decisão da causa, etc.)”.
Apesar de não concordarmos na íntegra com este entendimento, sem prejuízo da possibilidade de apresentação de prova documental relevante ou de inquirição mesmo oficiosa de pessoas com conhecimento dos factos, na realidade o novo modelo de processo de inventário, ao estabelecer uma verdadeira fase instrutória para definição das questões que possam influir na partilha de bens, afasta-se do modelo incidental existente quer no CPC de 1961, quer no RJPI, não existindo actualmente razões que permitam considerar estarmos perante um incidente deste inventário, a tramitar de acordo com as regras específicas resultantes do artº 1105 do C.P.C. e as aplicáveis aos incidentes (ex vi do artº 1091 do CPC).
Improcede assim este argumento de recurso, considerando-se admissível a alteração do rol de testemunhas oportunamente apresentado, se verificados os demais requisitos previstos no artº 598, nº 2 do C.P.C."
[MTS]