"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/07/2025

Jurisprudência 2024 (210)


Valor da causa; fixação;
decisões proferidas em recurso; dever de acatamento


1. O sumário de RP 11/11/2024 (4024/22.9T8VFR-B.P1) é o seguinte:

I - A indiscutível consagração da independência dos magistrados judiciais, no exercício da sua função judicante, é feita com a expressa salvaguarda do seu dever de acatamento das decisões que, em via de recurso, sejam proferidas por Tribunais superiores.

II - A violação desse dever constitui uma nulidade insuprível da decisão que assim venha a ser proferida.

III - Quando a parte se recuse a juntar aos autos documento, depois de devidamente notificada para o efeito, deverá o tribunal recorrido seguir a tramitação adjetiva adequada e, concretamente, a que vem referida nos artigos 417.º, nº 2 e 433.º do CPCivil, aplicáveis ex vi artigo 430.º do mesmo diploma legal, sendo que, quando o citado artigo 417.º, nº 2 se refere aos “meios coercitivos que forem possíveis” quer-se significar os meios admitidos por lei, que se mostrem idóneos a obter o resultado pretendido como seja, por exemplo, a apreensão do documento em questão.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Como se referiu é apenas a questão que cumpre apreciar e decidir:

a)- saber se o despacho recorrido ao fixar o valor da ação cumpriu ou não o que foi determinado no acórdão proferido por esta Relação.

Como se evidencia do relatório a autora na petição inicial atribuiu à causa o valor de €50.000,01 euros, por desconhecer os termos do contrato de compra e venda de participações socias, nomeadamente o preço fixado, cuja anulação pede nesta ação.

O tribunal recorrido por despacho de 14/05/2023, não concordando com o valor atribuído pela autora e não impugnado pelos Réus, decidiu atribuir o valor de € 30.000.000,00.

No recurso do citado despacho interposto pela autora, o tribunal da Relação proferiu acórdão em que, revogando o citado despacho, ordenou que fosse fixado à causa o valor que resultasse do termo de transação e contrato de compra e venda de ações da sociedade A..., SGPS, de 29 de dezembro de 2005, entre BB, como vendedor, e como compradores HH, FF, BB e DD, cuja anulação a apelante peticiona.

Acórdão esse devidamente transitado em julgado.

Repare-se, porém, que, antecedentemente do citado dispositivo, se havia exarado o seguinte:

“Aqui chegados, importa concluir que o despacho recorrido não pode subsistir, pois, sendo o segundo pedido aquele que corresponde à utilidade económica da pretensão da apelante, o seu valor há de ser determinado nos termos do artigo 301.º, n.º 1, CPC.

Quando a ação tiver por objeto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um ato jurídico, atende-se ao valor do ato determinado pelo preço ou estipulado pelas partes.

No caso vertente, não se mostra possível determinar qual o valor do ato jurídico por que a apelante declarou desconhecê-lo; o mesmo será apurado logo que o documento que o incorpora seja junto aos autos”[---].

Daqui resulta, sem margem para qualquer dúvida, que para a fixação do valor da ação necessário se tornava que fosse junto aos autos o documento que incorpora o ato jurídico que expressa a utilidade económica do pedido, ou seja, “o termo de transação e contrato de compra e venda de ações da sociedade A..., SGPS, de 29 de dezembro de 2005, entre BB, como vendedor, e como HH, FF, BB e DD”.

Dando cumprimento ao decidido pelo tribunal da Relação, o tribunal a quo determinou que os Réus fossem notificados para, querendo, juntar aos autos o documento em causa, o que estes recusaram.

Ora, salvo o devido respeito, o tribunal recorrido só podia ter exarado o despacho nos termos em que o fez (a junção do documento ficava ao critério e livre arbítrio dos réus) se tivesse elementos nos autos (o que, manifestamente, não tinha face ao despacho objeto de recurso) que lhe permitissem fixar o valor à causa nos termos determinados pela Relação sem a junção do documento em causa, pois que, não sendo esse o caso, devia ter ordenado aos réus, tout court, a sua junção.
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Acontece que, o tribunal recorrido, perante a recusa dos Réus em juntar o documento em questão, fez tábua do que havia sido decidido pelo tribunal da Relação e fixou à ação o valor de € 50.000,01 (cinquenta mil euros e um cêntimo), ou seja, o valor que a autora tinha atribuído na petição inicial esquecendo que, ele próprio, não havia concordado com esse valor por não cumprir os critérios da lei suscitando o respetivo incidente (cf. despacho exarado em 12/04/2023).
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Diante do exposto, torna-se evidente que o despacho recorrido não pode subsistir, por valor fixado à ação não refletir os critérios elegidos pelo tribunal superior no acórdão que prolatou para tal desiderato, em clara violação, pois, do que foi decidido superiormente.
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Importa, reter que se lê no art.º 4.º, n.º 1, da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho (Estatuto dos Magistrados Judiciais), que os “magistrados judiciais julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores”; e, de forma idêntica, no art.º 4.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) que os “juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores”.

Logo, a indiscutível consagração da independência dos magistrados judiciais, no exercício da sua função judicante, é feita com a expressa salvaguarda do seu dever de acatamento das decisões que, em via de recurso, sejam proferidas por Tribunais superiores.

O exposto é reafirmado, no particular campo do processo civil, no art.º 152.º, n.º 1, do CPC, onde se lê que os “juízes têm o dever de administrar justiça, proferindo despacho ou sentença sobre as matérias pendentes e cumprindo, nos termos da lei, as decisões dos tribunais superiores”.

Compreende-se, por isso, que se leia no art.º 42.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, que os “tribunais judiciais encontram-se hierarquizados para efeito de recurso das suas decisões”.
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Aliás, a violação de um tal dever de acatamento de prévia decisão proferida por Tribunal superior, proferida em via de recurso e transitada em julgado, constitui uma nulidade insuprível da decisão que assim venha a ser proferida, nomeadamente por o objeto de renovada pronúncia do Tribunal inferior constituir questão de que o mesmo não podia tomar conhecimento [art.ºs 613.º, nº 3 e 615.º, n.º 1, al. d), 2ª parte, ambos do CPCivil]. [Cf. neste sentido: Ac. do STJ, de 28.10.1997, Fernando Fabião, Processo n.º 98A233; Ac. da RE, de 31.05.2012, José Lúcio, Processo n.º 855/11.3TBLLE-E1; Ac. da RP, de 11.07.2006, Mário Cruz, Processo n.º 0623350; ou Ac. da RL, de 08.10.2002, Manuel Rodrigues, Processo n.º 95274/18.9YIPRT.L2-6, todos consultáveis em www.dgsi.pt..]
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Diante do exposto, deverá o tribunal recorrido ordenar que os Réus juntem aos autos o documento em causa [---], decidindo depois em conformidade o incidente do valor da ação nos moldes exarados no acórdão proferido pela Relação em 19/12/2023.
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Na hipótese de os Réus recusarem a junção do referido documento, deverá o tribunal a quo seguir a tramitação adjetiva adequada e, concretamente, a que vem referida nos artigos 417.º, nº 2 e 433.º do CPCivil, aplicáveis ex vi artigo 430.º do mesmo diploma legal.

É que, quando o citado artigo 417.º, nº 2 se refere aos “meios coercitivos que forem possíveis” quer-se significar os meios admitidos por lei, que se mostrem idóneos a obter o resultado pretendido com seja, por exemplo, a apreensão do documento em questão."

[MTS]