Processo de insolvência;
prova documental; contraditório
I. O sumário de RL 12/11/2024 (29268/23.2T8LSB-E.L1-1) é, na parte agora relevante, o seguinte:
1 – Não se verificam as nulidades previstas nas alíneas b) e c), do art.º 615º, n.º 1, do Código de Processo Civil quando a decisão proferida especifica os fundamentos de facto e de direito, sendo igualmente clara e precisa nessa fundamentação.
2 – Não constitui facto de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções, nos termos do art.º 412º, n.º 2, do CPC, a menção feita na sentença ao constante de uma lista atualizada das execuções, de acesso público, tendo anteriormente um “print” dessa lista já sido junto aos autos.
3 – Não existe violação do princípio do contraditório, relativamente à não audição pelo tribunal da requerida, relativamente a um documento que agora surge na sua versão atualizada, se o mesmo anteriormente já tinha sido junto aos autos e a requerida tem conhecimento dos seus termos.
4 – Não se verifica violação do disposto no art.º 496º, do CPC, quando se procede à audição, como testemunhas, de dois sócios de uma sociedade de advogados que não representam legalmente a mesma.
5 – Não constitui fundamento para alterar ou aditar a matéria de facto a discordância da parte com a mesma.
6 – Não constitui ainda fundamento para alterar a matéria de facto, as declarações de um depoente de parte não sustentadas em qualquer outra prova, e que contrariam a restante prova produzida nos autos, que foi considerada credível, rigorosa e objetiva.
7 – Igualmente não constitui fundamento para o efeito, as declarações de uma testemunha que revela no seu depoimento falta de rigor e conhecimento fundado na prática de factos por terceiro, sendo que este, ouvido anteriormente, depôs em sentido divergente com o referido pela testemunha. [...]
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"Refere a recorrente que o tribunal violou o disposto no art.º 412º, n.º 2, do CPC, mencionando o citado normativo legal que: “Também não carecem de alegação os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções; quando o tribunal se socorra desses factos deve fazer juntar ao processo documento que os comprove.” Invoca ainda a violação do princípio do contraditório, previsto no art.º 3º, n.º 3, do mesmo diploma legal.
Vejamos o disposto no art.º 11º, do CIRE, na parte que ora nos interessa, com a epígrafe “Princípio do inquisitório”:
“No processo de insolvência (…) a decisão do juiz pode ser fundada em factos não alegados pelas partes.”
O que é que significa a permissão dada por este artigo?
Estão em causa poderes inquisitórios alargados por parte do juiz no processo de insolvência, que extravasam, em muito, os conferidos no processo declarativo comum no Código de Processo Civil, designadamente no que respeita à realização e recolha de provas, o que foi o caso dos autos.
Na espécie, um documento respeitante à consulta à referida lista pública [de execuções] já se encontrava junto aos autos como documento n.º 93.
A questão é a da consulta da mencionada lista atualizada.
Está em discussão um documento cujo acesso é livre, sendo públicos os dados nele contidos, de acordo com o art.º 7º, da Portaria n.º 313/2009, de 30 de março [Portaria que “Regula a criação de uma lista pública de execuções, disponibilizada na Internet, com dados sobre execuções frustradas por inexistência de bens penhoráveis - Artigo 12.º”]
Resulta ainda da mesma Portaria, do seu art.º 3º, n.º 1, que:
“Em simultâneo com a notificação ou citação, previstas nos n.os 1 e 3 do artigo 750.º do Código de Processo Civil, respetivamente, o executado é notificado pelo agente de execução de que, uma vez extinta a execução, dispõe do prazo de 10 dias para pagar a quantia em dívida ou para aderir a um plano de pagamento de dívida elaborado com o auxílio de uma entidade reconhecida pelo Ministério da Justiça, com a cominação de que a não observância de qualquer dos mencionados procedimentos implica a sua inclusão na lista pública de execuções.”
Ora assim sendo, não podemos considerar, em rigor, que o documento em causa foi acessível ao juiz por se encontrar no exercício das suas funções, uma vez que o mesmo é de acesso livre, qualquer pessoa pode aceder àquela lista, independentemente da sua profissão, não se verifica assim a invocada violação do disposto no art.º 412º, nº 2, do CPC., aplicável por via do art.º 17º, do CIRE.
Quanto à violação do princípio do contraditório, previsto no art.º 3º, n.º 3, do CPC, também aplicável por via do art.º 17º, do CIRE, importa atentar no disposto no art.º 3º, n.º 3, do CPC, que determina que: “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
Como refere Abrantes Geraldes: “A contraditoriedade ao longo de todo o processo é inerente ao adágio “da discussão nasce a luz”, pois só a audição de ambas as partes interessadas no pleito e a possibilidade que lhes é conferida de controlarem o modo de decisão dos tribunais permitirão que a verdade seja descoberta e que sejam acautelados os interesses dos litigantes.” [António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I Volume, 2ª edição, Almedina, pág. 75.]
Ora, no caso, está em apreciação um documento que estava anteriormente junto aos autos e sobre o qual a parte teve oportunidade de se pronunciar, um documento público e de que a executada nas ações, ora recorrente, terá conhecimento do seu integral conteúdo, por via do disposto no já citado art.º 3º, n.º 1 da Portaria mencionada. Assim sendo, não podemos dizer que o mencionado documento, neste contexto, constitui uma “surpresa” para a parte, sobre a qual a mesma foi confrontada em sede de sentença e, portanto, que não foi acautelado o interesse da parte.
Podemos assim entender que, face a este enquadramento, não estava vedado ao tribunal consultar nos termos em que o fez a atualização de um documento público, já junto aos autos e que era desnecessária, apenas neste contexto, salienta-se, a nova pronúncia da recorrente sobre o mesmo, sendo os dados constantes daquele, podemos concluir, do seu conhecimento.
Diferente seria se o tribunal sem mais, e sem que o documento estivesse junto aos autos, viesse a servir-se daquele para fundamentar a resposta à matéria de facto, sem consulta das partes. Ora não é claramente o caso, estando a parte prevenida quanto à existência do referido documento nos autos e quanto ao conteúdo do mesmo."
[MTS]
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