"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



04/12/2025

Jurisprudência 2025 (46)


Dupla conforme;
requisitos


1. O sumário de STJ 25/2/2025 (330/21.8T8CSC.L1-A.S1) é o seguinte:

I. Não obsta ao efeito da “dupla conforme” prevista no art.º 671.º n.º 3 do CPC a circunstância de o tribunal da Relação, na apreciação do recurso de apelação, em que confirmou a decisão recorrida quanto à sua fundamentação e dispositivo, ter adicionado, a título de obiter dictum, um outro fundamento para a decisão recorrida.

II. Está fora do âmbito do procedimento previsto no art.º 643.º do CPC a apreciação da aplicação da dispensa da taxa de justiça remanescente prevista no art.º 6.º n.º 7 do RCP.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Reportando-nos ao caso destes autos, dúvidas não existem quanto à admissibilidade geral da revista, quanto ao seu objeto, valor e sucumbência (artigos 671.º n.º 1 e 629.º n.º 1 do CPC).

É sabido, porém, que o n.º 3 do art.º 671.º do CPC consagra o obstáculo à revista comummente designado de “dupla conforme”:

Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.

A jurisprudência do STJ tem densificado o conceito da dupla conforme no sentido de que apenas inexiste dupla conforme quando se esteja perante “uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância” (acórdão do STJ de 19.02.2015, processo n.º 302913/11.6YIPRT.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt,– sublinhados nossos).

Isto significa que a verificação de fundamentação essencialmente diferente, “não se basta com qualquer modificação ou alteração da fundamentação, sendo antes indispensável que o âmago fundamental do enquadramento jurídico seguido pela Relação seja completamente diverso daquele que foi seguido pela 1.ª instância.” Ou seja, só deixa de existir dupla conforme “quando a solução jurídica prevalecente na Relação seja inovatória, esteja ancorada em preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram a sentença apelada, sendo irrelevantes discordâncias que não encerrem um enquadramento jurídico alternativo, ou, pura e simplesmente, seja o reforço argumentativo aduzido pela Relação para sustentar a solução alcançada” (acórdão do STJ, de 31.3.2022, processo n.º 14992/19.2T8LSB.L1.S1). Por isso, como se diz no mesmo acórdão (STJ, de 31.3.2022), citando-se Abrantes Geraldes, “a alusão à natureza essencial da diversidade da fundamentação claramente nos induz a desconsiderar, para o mesmo efeito, discrepâncias marginais, secundárias, periféricas, que não representa, efetivamente um percurso jurídico diverso. O mesmo se diga quando a diversidade de fundamentação se traduza apenas na recusa, pela Relação, de uma das vias trilhadas para atingir o mesmo resultado ou, do lado inverso, no aditamento de outro fundamento jurídico que não tenha sido considerado ou que não tenha sido admitido, ou no reforço da decisão recorrida através do recurso a outros argumentos, sem pôr em causa a fundamentação usada pelo tribunal de 1.ª instância”.

Expostas estas premissas, vejamos então o caso a que se reporta esta reclamação.

A 1.ª instância absolveu o Estado Português por ter considerado que os factos provados, atinentes às diligências praticadas tendo em vista a citação da Ré na ação declarativa instaurada pela ora reclamante contra a identificada sociedade brasileira, não constituíam um ilícito. Não havendo convenções internacionais aplicáveis à citação em causa, o tribunal aplicou as regras de direito interno, isto é, procedeu à citação postal, com aviso de receção, para as moradas que se foi conhecendo serem as da R. aí demandada. Sendo certo que a segunda tentativa de citação postal, para a nova morada conhecida, teve sucesso. As autoridades processuais agiram de acordo com o formalismo imposto pela lei portuguesa, única a que, no caso concreto, deviam obediência. Cabia à A., se pretendia mais tarde executar a sentença, assim obtida, no estrangeiro, adotar um comportamento processual tendente a moldar o ato de citação às peculiaridades próprias da justiça brasileira, para tal alertando o tribunal – o que não fez.

Interposta apelação pela A., a Relação concordou com a sentença recorrida. Para a Relação, não ocorria responsabilidade civil do Estado pelo exercício da função jurisdicional, na medida em que o tribunal em questão praticou os atos de citação que se impunham, face ao ordenamento jurídico aplicável – o português – pelo que não existe ato ilícito, desencadeador de responsabilidade civil. Em suma, a Relação entendeu, em linha com a 1.ª instância, que a citação efetuada não consubstanciou qualquer ato ilícito, pressuposto da responsabilidade que se pretendia assacar ao R./apelado, o que conduzia necessariamente à improcedência da ação. Assim, as considerações adicionais, a que a Relação procedeu no acórdão, acerca da falta de prévia revogação da decisão danosa, são irrelevantes para o efeito da configuração de dupla conforme. A não verificação desse elemento da responsabilidade em causa foi adiantada em termos de obiter dictum, conforme claramente emerge dos termos em que esse tema adicional foi introduzido no acórdão: “Ainda que assim não se entendesse e, por hipótese se considerasse estarmos perante um acto ilícito, sempre faltaria o preenchimento do requisito da prévia revogação…

O fundamento essencial do decaimento da ação, na primeira e na segunda instância, foi a inexistência de facto ilícito, imputável ao Estado no exercício da função jurisdicional.

Ocorre, pois, a dupla conforme, obstativa da revista ordinária, nos termos do art.º 671.º n.º 3 do CPC.

Ao referido obstáculo à revista ordinária não tolhe a circunstância de, na revista, a reclamante ter invocado a inconstitucionalidade de determinadas normas. Essa é matéria que deverá ser apresentada perante o Tribunal Constitucional, nos termos legais.

Note-se que no que concerne à arguição de inconstitucionalidade de normas que, como se referiu, o tribunal a quo invocou a mero título de obiter dictum, ou seja, que não constituíram o real fundamento (ratio decidendi) da improcedência da apelação, dir-se-á que tal situação não é capaz de sustentar um recurso para o Tribunal Constitucional.

A razão é evidente, como decorre da transcrição das próprias palavras do Tribunal Constitucional (TC 15/2019, de 09.01.2019):

“…a exigência de que a norma objeto do recurso de constitucionalidade tenha sido aplicada na decisão recorrida, como ratio decidendi, encontra a sua razão de ser na instrumentalidade da intervenção do Tribunal Constitucional no processo, o mesmo é dizer, de que a decisão sobre a conformidade constitucional da norma sindicada se revista de utilidade nos autos. «A exigência, de que a norma aplicada constitua o fundamento da decisão recorrida, resulta do facto de só nesse caso a decisão da questão de constitucionalidade poder refletir-se utilmente no processo. Sendo a referência à norma questionada mero obiter dictum, a intervenção do Tribunal Constitucional na apreciação da conformidade constitucional da norma impugnada não se refletirá utilmente no processo, uma vez que sempre a decisão recorrida seria a mesma, ainda que a norma questionada seja declarada inconstitucional» (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 497/99). Com efeito, se a norma objeto do recurso não constituir ratio decidendi da decisão recorrida – isto é, se não integrar o conjunto das suas condições necessárias −, um eventual juízo de inconstitucionalidade seria processualmente inerte, e, nesse exato sentido, inútil. Ora, constitui entendimento sedimentado deste Tribunal que «(…) não visando os recursos dirimir questões meramente teóricas ou académicas, a irrelevância ou inutilidade do recurso de constitucionalidade sobre a decisão de mérito torna-o uma mera questão académica sem qualquer interesse processual, pelo que a averiguação deste interesse representa uma condição da admissibilidade do próprio recurso» (Acórdão n.º 366/96)””.

Se, como a reclamante refere, o Tribunal Constitucional desse razão à recorrente no que se refere às questões de inconstitucionalidade atinentes ao fundamento do acórdão proferido pela Relação a quo, então a recorrente conseguiria que a Relação reapreciasse o caso à luz desse juízo de inconstitucionalidade. E, aí, se a Relação reiterasse, agora a título de ratio decidendi, a formulação do argumento primitivamente chamado a título de obiter dictum, achado estaria o caminho para uma eventual revista ordinária.

Quanto à pretensão formulada pela recorrente/reclamante no que concerne a uma eventual dispensa do pagamento de taxa de justiça remanescente (art.º 6.º n.º 7 do RCP), reitera-se que não cabe no âmbito da reclamação prevista no art.º 643.º do CPC a formulação de juízos ou de decisões atinentes ao regime tributário de procedimentos outros que não os da própria reclamação. Ora, à presente reclamação não se aplica o regime tributário a que se reporta o art.º 6.º n.º 7 do RCP, mas o regime previsto no art.º 7.º, n.ºs 4 e 8 e tabela II anexa ao RCP."

[MTS]