"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/12/2025

Jurisprudência 2025 (50)


Depoimento de parte;
factos favoráveis; apreciação


1. O sumário de RC 25/2/2025 (1152/23.7T8CTB.C1) é o seguinte:

i) O depoimento de parte visa a obtenção de confissão de factos desfavoráveis ao confitente e que favoreçam a parte contrária, sendo esse o fim pretendido com o depoimento de parte (arts. 352º do CC, 452º e 463º do NCPC);

ii) O anterior CPC não admitia que o depoimento de parte pudesse ser probatoriamente valorado na parte em que lhe fosse favorável, mas o novo CPC de 2013 admite a prova por declarações de parte, a serem valoradas livremente pelo julgador; assim, a parte pode é aspirar a que o seu depoimento na parte que lhe seja favorável seja aproveitável, mas para que isso aconteça tem que manifestar, no acto de produção deste, que as declarações favoráveis que faça sejam valoradas como prova sujeita a livre apreciação do julgador, desde que a parte contrária esteja presente, ou lhe seja dada a possibilidade de igualmente ser ouvida;

iii) Afirmando o tomador do seguro, para efeito de contrato celebrado, ser ele o condutor habitual da viatura objecto do seguro, escondendo da Seguradora que o verdadeiro condutor habitual era o seu filho, jovem encartado ainda em regime probatório, nos termos do C. Estrada, com o intuito de obter um prémio muito mais barato do que o seu filho devia pagar, caso fosse ele a efectuar o seguro, este comportamento gera a anulabilidade desse contrato de seguro por inexactidão dolosa quanto à declaração de risco, nos termos do art. 25º, nº 1, da L. Contr. Seguro.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC).

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Alteração da decisão da matéria de facto. [...]

2. A R. impugna a decisão da matéria de facto, relativamente aos factos provados 23., 24., 25. 26., 28. e 33., que pretende passem a não provados, 31., 32. e 38., nos quais pretende aditamento/alteração, e factos não provados f) e g), que pretende passem a provados, com base nas declarações de parte da A., e depoimentos testemunhais de BB e CC e prova documental (docs. 1 e 3 da contestação e 9 da p.i.), conforme as suas conclusões de recurso (as 3. a 26.). Enquanto a recorrida defende a improcedência das mesmas, com base no depoimento da testemunha BB e acareação entre a testemunha CC e a A. (cfr. conclusões 2ª a 5ª). 

O julgador exarou a seguinte motivação quanto à matéria impugnada:

“O julgador tem de apreciar e valorar a prova na sua globalidade, estabelecendo conexões, conjugando os diferentes meios de prova e não desprezando as presunções simples, naturais ou lógicas, que são meios legalmente admitidos para a valorização das provas e de formação da convicção. (…)

No que respeita aos factos 22) a 28), atinentes à utilização do veículo ..-..-DM, o Tribunal ponderou o teor do depoimento de parte de AA, na parte não desfavorável, e do depoimento de BB.

Não se ignora que o teor das declarações de parte ou do depoimento de parte na parte em que o mesmo não seja desfavorável à própria parte que o emite deve ser sempre atendido e valorado cum grano salis. Aliás, não se pode negligenciar que não são, pela sua própria natureza, declarações desinteressadas, uma vez que quem as emite tem um manifesto interesse na causa. Na verdade, «nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação» (LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, Prova Testemunhal, Almedina, 2017, p. 366). Neste sentido, também sustenta ESTRELA CHABY (O Depoimento de Parte em Processo Civil, Coimbra Editora, 2014, p. 50) que, em relação ao valor probatório das declarações de parte, afirma que «vale a regra da livre apreciação, nada se dispondo quanto à possibilidade/impossibilidade de as declarações fundarem, por si só, a convicção do julgador, o que, a suceder não constituiria caso inédito na legislação portuguesa». Também no Acórdão do TRL, 26-04-2017, processo n.º 18591/15.0T8SNT.L1-7, (disponível em www.dgsi.pt) se afirma ser incorrecto degradar «o valor probatório das declarações de parte só pelo facto de haver interesse da parte na sorte do litígio» (e na jurisprudência, neste mesmo sentido, ver Acórdão do TRG, de 01-10-2020, Proc. 3461/16.2T8BRG.G2, «[é] valorizado, credibilizado pelo princípio da livre apreciação das provas, valendo por si, mesmo que não haja outros elementos de prova coadjuvantes», e da mesma Relação, de 13-09-2018, Proc. 159/17.8T8FAF.G1). Mas também não se pode ignorar que as declarações de parte isoladas em si serão, por princípio, insuficientes para dar como provados determinados factos. Assim, é «normalmente insuficiente à prova de um facto essencial à causa de pedir a declaração favorável que surge desacompanhada de qualquer outra prova que a sustente ou sequer indicie», Acórdão do TRP, 23-03-2015, Processo n.º 1002/10.4TVPRT.P1 (disponível em www.dgsi.pt.), devendo atender-se às regras da racionalidade, da experiência, da normalidade do acontecer e às circunstâncias concretas que se oferecem no caso 2No sentido de que, por si só, não têm expressão probatória («As declarações de parte devem ser valoradas autonomamente, mas de forma integrada com os demais elementos de prova», «[s]endo as declarações de parte o único suporte probatório nesse sentido, não se pode dar como provados os factos constitutivos do direito alegado pelo A. unicamente com base nas suas declarações de parte», Acórdão do TRL, 28-05-2019, Processo n.º 97280/18.4YIPRT.L1-7, disponível em www.dgsi.pt, e v. no mesmo sentido Acórdãos do TRC, de 08-07-2021, Proc. 5281/19.3T8VIS.C1, do TRP, de 12-07-2021, Proc. 1016/20.6T8PNF.P1).. A contextualização do relato e a existência de corroborações periféricas constituem critérios adicionais que, de forma válida, poderão sedimentar a credibilidade do testemunho (de parte) prestado, neutralizando o argumento do interesse do testemunho.

No caso em apreço, o depoimento de parte da Autora foi coincidente com o depoimento da testemunha BB (filho da Autora) no que respeita à utilização do carro. Estamos perante familiares próximos (mãe e filho) e poder-se-ia dizer que, por esse facto, o filho quereria beneficiar a posição processual da mãe. Contudo, isso é um argumento genérico e abstracto, e que no caso merece ser afastado não só por a prova produzida em sentido contrário ser remota (a lá chegaremos), mas também por haver elementos nos autos que indiciam que efectivamente havia uma utilização habitual do carro pela Autora.

Por um lado, temos o depoimento de parte da Autora no sentido de que utilizava o carro ..-..-DM diariamente, sendo certo que esporadicamente emprestava o mesmo ao seu filho (nas idas à ..., local onde o mesmo estudava), e apenas tão-só quando o mesmo não obtinha boleia, apanhava autocarro ou mesmo quando a mãe não o levava até lá.

O depoimento do filho secunda o da Autora, concretizando-o em determinados aspectos, designadamente a quantidade de vezes que o carro lhe era cedido pela Autora para se deslocar a ..., deixando assente na instrução da causa que o empréstimo do carro era feita de forma residual e excepcional, apenas tão-só quando não conseguia ir de boleia com amigos ou ir de autocarro. Este último era, aliás, o meio de transporte preferencial do depoente, conforme deu nota, precisando os horários por si utilizados e a companhia de autocarro na qual seguia viagem.

Naturalmente surge prova que pode causar algumas dúvidas a esta versão trazida pela Autora.

Em sentido dissidente, surge o depoimento de CC, perito averiguador da Ré. Ora, relacionado com esta testemunha surgem duas declarações escritas da Autora e do filho BB, vertidas a fls. 148, nos quais estes supostamente admitiriam que o condutor habitual do veículo era o filho e que apenas indicaram à mediadora de seguros que o condutor habitual era a mãe para obter um prémio mais reduzido.

Este depoimento carece de aprofundamento.

O perito averiguador da Ré referiu, em primeira linha, que as declarações escritas a fls. 148 tinham sido lavradas pela Autora e respectivo filho por iniciativa destes e sem qualquer intervenção externa, sendo certo que havia apenas orientado ao nível da descrição do acidente. Após, confrontado com a singularidade de se escrever numa «descrição de acidente» elementos completamente estranhos (designadamente que o filho da Autora era o condutor habitual e que a Autora se havia indicado como condutora habitual para conseguir um prémio mais barato), inflectiu referindo que apenas havia dito àqueles para escrever aquilo que tinham dito ao perito.

Este depoimento há que ser contemporizado pelos seguintes factores. Em primeiro lugar, o perito averiguador tem naturalmente interesse em demonstrar o que é favorável à seguradora. E não é uma entidade equidistante ou sequer naturalmente imparcial ou isenta. Em segundo lugar, a natureza das declarações referidas em 31) e 32) surgem enxertadas num corpo de texto que apenas tem que ver com a descrição do acidente. Logo, são inusitadas. E nem sequer nos parece ser de cogitar, de acordo com as regras da experiência comum, que um segurado/sinistrado preste declarações por escrito, por sua alta recreação, e num campo alusivo à dinâmica do acidente, que sejam respeitantes a outros aspectos externos (e que, por acaso, eram favoráveis à seguradora e à possibilidade de se eximir da responsabilidade de indemnizar pelo sinistro). Em terceiro lugar, os depoimentos da Autora e de BB dão nota de que o perito averiguador utilizou estratagema para arrancar as supostas declarações confessórias daqueles, aludindo à possibilidade de aqueles terem incorrido na prática de um crime, ao ter dado informações erradas na declaração amigável do acidente. Ora, essa advertência por parte do perito poderá ter causado nos declarantes medo e ter atiçado a chama inflamante motora e causadora dos textos em causa, com a promessa de que tudo se resolveria se assinassem nos termos que, a final, ficaram vertidos a fls. 148.

O perito averiguador, no encontro referido nos factos provados, referiu ainda ter tido acesso aos documentos respeitantes a uma factura da B..., em nome de BB, e à declaração para efeitos de seguro (o que foi confirmado pela testemunha BB), o que foi o móbil para que aquele arrancasse à Autora e ao seu filho as aludidas declarações confessórias.

Ademais, é consabido que a Ré (leia-se o perito averiguador CC) utilizou no respectivo relatório de averiguação o argumento de que a Autora havia preenchido erradamente a declaração amigável em pelo menos três pontos (nome do condutor e sua data de nascimento, dia e hora diferentes da participação da GNR, vd. fls. 5 do relatório junto como documento n.º 3 da contestação), pelo que é totalmente crível que o perito averiguador tenha lançado desses argumentos anteriormente para confrontar a Autora e o seu filho, e que tenha até sugerido que os mesmos teriam problemas com a seguradora e, até mesmo, problemas criminais por falsificarem documento.

Por outro lado, em sede de acareação determinada em audiência final, entre a Autora, a testemunha BB e a testemunha CC, os primeiros souberam manter convictamente as suas versões, e o último cedeu a um nervosismo estranhamente revelador (sendo certo que apresentou uma postura em Tribunal estranhamente medrosa ao longo de todo o seu depoimento), resvalando para uma inicial ameaça de que iria participar criminalmente dos primeiros, sem defender ou manter convicta e objectivamente a sua versão dos acontecimento.

Tudo concatenado, a convicção do Tribunal é que, não só ocorreram os factos 29) a 33), que vão provados em face do que acima se disse, como também que as declarações apresentadas a fls. 148 não representam uma confissão de que o filho da Autora é que era o condutor habitual – antes foram fabricadas e maquinadas intelectualmente pelo perito averiguador da Ré, que entreviu uma possibilidade de alcançar uma posição vantajosa para a Ré, cominando e advertindo a Autora e filho que poderiam ter incorrido na prática de um crime. [...]"

Relativamente à A., ouvimos o seu depoimento de parte, gravado em CD. O tribunal ponderou e a recorrente pretende ponderar o mesmo. Acontece que o depoimento de parte da A. foi requerido aos arts. 10º e 11º da contestação que retratavam a alegação do que está hoje plasmado nos factos não provados f) e g), este em parte. Todavia a A. não confessou estes factos, como se pode constatar da audição do seu depoimento, nem por isso existe qualquer assentada. Portanto, do seu depoimento de parte não resultou qualquer confissão de factos desfavoráveis que favoreçam a parte contrária, sendo esse o fim visado com o depoimento de parte (arts. 352º do CC, 452º e 463º do NCPC).

O anterior CPC não admitia que o depoimento de parte pudesse ser probatoriamente valorado na parte em que lhe fosse favorável. Entretanto o novo CPC de 2013 admite a prova por declarações de parte, a serem valoradas livremente pelo julgador.

Assim, a parte pode é aspirar a que o seu depoimento na parte que lhe seja favorável seja aproveitável, mas para que isso aconteça tem que manifestar, no acto de produção deste, que tal depoimento se volva em declarações de parte, isto é, que as declarações favoráveis que faça sejam valoradas como prova sujeita a livre apreciação do julgador, desde que a parte contrária esteja presente, ou lhe seja dada a possibilidade de igualmente ser ouvida (vide neste sentido Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum, à LUZ do CPC de 2013, 3ª Ed., págs. 259/260).

O que não aconteceu, pois não está registado na acta da audiência de julgamento, nem consta da gravação, tal requerimento ou pretensão. Daí que, não havendo confissão relativamente a tais 2 factos, o que a A. disse no seu depoimento de parte, com carácter favorável a ela não podia ser apreciado livremente pelo tribunal a quo, nem pode clamar qualquer valor probatório, de apreciação livre, que traga alguma vantagem à R./recorrente."


*3. [Comentário] Salva a devida consideração e se bem se percebeu a orientação da RG, não se pode acompanhar a sua posição. 

A parte é chamada a depor pela outra parte, procurando-se que desse depoimento resulte uma confissão pela parte de factos que lhe são desfavoráveis. Durante o depoimento, a parte refere factos que lhe são favoráveis.

Pergunta-se: a parte tem o ónus de requerer que o seu depoimento "se volva em declarações de parte", sob pena de as suas declarações não poderem sequer ser livremente apreciadas pelo tribunal?

Sinceramente, trata-se de uma solução que não se acompanha, tanto mais que a prova por declarações de parte pode ser determinada oficiosamente pelo tribunal (art. 466.º, n.º 2) e, portanto, oficiosamente apreciada por esse tribunal.

MTS