"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



03/12/2020

Jurisprudência 2020 (107)


Acção de apreciação negativa;
decisão de improcedência; reconvenção;
interesse processual*


1. O sumário de RP 14/5/2020 (2134/18.6T8AVR-A.P1) é o seguinte:

I - Um non liquet probatório nas acções de simples apreciação negativa terá sempre que resolver-se em desfavor do réu. Já, pelo contrário, a improcedência deste tipo de acção implica, sem margem para dúvidas, o reconhecimento da existência do direito que o réu se arroga, que fica definitivamente estabelecida, perante o autor.

II - Por isso mesmo, fica prejudicada a proposição pelo réu de ulterior acção de simples apreciação positiva revelando-se, da mesma forma, redundante a dedução de reconvenção, a que não pode atribuir-se mais valia alguma em relação à simples procedência da defesa deduzida em acção de simples apreciação negativa, não passando, nesse caso, de puro reverso da pretensão do autor, que se limita a pedir a declaração da inexistência de direito que o réu invoca.

III - Todavia, a inadmissibilidade da reconvenção só se verifica em relação ao pedido de reconhecimento do direito cuja declaração de inexistência é pedida, ou seja, ao pedido reconvencional formulado com fundamento na al. d) do nº 2 do artigo 266.º do CPCivil, mas já não às situações de pedido elencadas nas alíneas a), b) ou c) do nº 2 do mesmo inciso.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"A improcedência da acção de simples apreciação negativa envolve o reconhecimento do direito que o réu se arroga, o qual fica definitivamente estabelecido em face do autor, pelo que tem de se considerar como desadequado o pedido reconvencional da declaração de existência do direito formulado em tal tipo de acções, por prejudicialidade do mesmo, nos termos do artº 608.º, n.º 2 [Cfr. os Acórdãos do STJ de 30.01.03, CJ/STJ-03-I-68 e de 24.10.06, www.dgsi.pt, e ainda os Acórdãos da RC de 27.02.07 e 12.06.07, também em www.dgsi.pt].

Conforme se escreveu no Acórdão do STJ de 30.01.03, citado na nota anterior, “(…) a improcedência de acção de simples apreciação negativa envolve - sem margem para tergiversação - o reconhecimento da existência do direito que o réu se arroga, que fica definitivamente estabelecida em face, ou vis à vis, da parte contrária. Por isso mesmo prejudicada a proposição pelo mesmo de ulterior acção de simples apreciação positiva (…), logo por aí se revela redundante a dedução de reconvenção, a que não pode atribuir-se mais valia alguma em relação à simples procedência da defesa deduzida em acção de simples apreciação negativa, não passando, nesse caso, de puro reverso da pretensão do autor, que se limita a pedir a declaração da inexistência de direito que o réu invoca.

Cometida a este, em tal acção, a prova desse direito, dificilmente se descortina o que é que em acção de simples apreciação negativa a dedução da reconvenção possa efectivamente acrescentar à simples defesa.”.

Assim, no caso das acções de impugnação judicial de escritura de justificação notarial, a simples improcedência da acção é suficiente para que o réu veja reconhecido, perante o autor, o seu direito de propriedade sobre os imóveis que constam da escritura, sendo, pois, redundante e inútil, pelas razões que acima se explicaram, a dedução de pedido reconvencional de reconhecimento daquele direito e de condenação do autor a ver esse direito reconhecido.

Mas, tendo a inadmissibilidade da reconvenção, nas acções de simples apreciação negativa, apenas como fundamento a inutilidade da mesma, esta inutilidade verifica-se somente em relação ao pedido reconvencional de reconhecimento do direito cuja declaração de inexistência é pedida, ou seja, ao pedido reconvencional formulado com fundamento na al. d) do n.º 2 do artigo 266.º.

Porém, se, numa acção de simples apreciação negativa, o réu formular um pedido reconvencional de condenação do autor, com base no direito cuja declaração de inexistência é pedida, entendemos que nada obsta à admissibilidade de tal pedido, desde que este tenha como pressuposto uma das situações elencadas nas alíneas a), b) ou c) do n.º 2 do artigo 266.º[Neste sentido, ver os Acórdãos desta Relação de 20.12.90, 11.01.94 e 25.09.08 (este último, do mesmo Colectivo do presente), todos em www.dgsi.pt].

Assim, no caso, verifica-se a inadmissibilidade, por inutilidade, dos pedidos de reconhecimento do direito de compropriedade do réu sobre os prédios constantes das escrituras de justificação notarial e de condenação dos autores a reconhecerem tal direito e a entregarem os prédios (pedidos que acima elencámos sob as als. A), B) e C)."


*3. [Comentário] a) Salvo o devido respeito, discorda-se da orientação defendida pela RP, pelas razões sumariamente aduzidas.

b) Antes do mais: a discordância assenta, segundo parece, na própria distribuição do ónus da prova nas acções de apreciação negativa. A RP, ao afirmar que, "nas acções de simples apreciação ou declaração negativa, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga (artigo 343.º, n.º 1 do CC)", segue uma orientação comum, mas inaceitável. A especialidade da acção de apreciação negativa não vai ao ponto de dispensar o autor de alegar o facto (impeditivo, modificativo ou extintivo) em que baseia a inexistência do direito e, no caso de o mesmo se tornar controvertido, de provar esse facto.

Se assim não fosse, estaria "descoberto" o caminho para permitir que qualquer autor pudesse transformar uma acção de apreciação positiva em acção de apreciação negativa e pudesse transferir o ónus da prova de si próprio para o réu. Por exemplo: em vez de pedir a declaração de que é proprietário e de ficar onerado com a prova do facto constitutivo, bastaria ao autor pedir a declaração de que o réu não é proprietário para ficar dispensado do ónus da prova de que é ele (autor) o proprietário e para onerar o réu com a prova de que é ele (réu) o proprietário. É claro que não pode ser assim!   

c) Primeiro aspecto: a RP afirma que a improcedência da acção negativa "implica, sem margem para dúvidas, o reconhecimento da existência do direito que o réu se arroga, que fica definitivamente estabelecida, perante o autor."

(i) Não pode ser como a RP afirma. Uma das regras fundamentais do processo civil é a de que uma decisão de improcedência vale apenas como decisão negativa e, por isso, nunca pode ser transformada numa decisão positiva. Se, por exemplo, o autor pede a declaração de que é credor ou é proprietário e a acção é julgada improcedente, é claro que só fica julgado que o autor não é credor ou proprietário. Nada fica definido de positivo para o réu, desde logo porque não teria qualquer sentido que, pelo facto de o autor não ser credor ou proprietário, o réu fosse credor ou proprietário (!).

Esta regra tem de se manter nas acções de apreciação negativa. Sendo assim, uma decisão de improcedência de uma acção de apreciação negativa só significa que não é declarado que o réu não é credor ou não é proprietário, não podendo ser transformada numa decisão que reconhece o réu como credor ou como proprietário.

Todas estas soluções assentam na seguinte circunstância: a parte onerada tem de provar os factos que alega que se tenham tornado controvertidos; se a parte não fizer prova desses factos, o tribunal profere uma decisão contra essa parte (art. 414.º CPC); ora, uma decisão contra uma parte não se pode transformar numa decisão a favor da outra parte ou, mais em concreto, uma decisão de improcedência contra uma parte não se pode transformar numa decisão de procedência a favor da outra parte. Por isso, uma decisão que não dá à parte onerada o que ela pede (reconhecimento da propriedade, por exemplo) não pode transformar-se em dar à parte contrária o que ela não pede (ou que só pode obter através da formulação de um pedido reconvencional).

Em suma: uma decisão de improcedência só pode ser uma decisão que obsta ao efeito que o autor pede, nunca uma decisão que cria o efeito contrário do que o autor pede.

(ii) Tudo isto tem de manter-se na acção de apreciação negativa. Nesta acção, cabe ao autor a prova do facto impeditivo, modificativo ou extintivo que baseia o pedido de declaração de inexistência de um direito; ora, um non liquet sobre qualquer destes factos é decidido contra o autor (art. 414.º CPC), proferindo o tribunal uma decisão que não declara inexistente o direito do réu. Mas não declarar que o réu não é proprietário não é declarar que o réu é proprietário.

Ainda uma observação complementar. Em processo, não há meras condenações ou absolvições, mas antes condenações ou absolvições baseadas em factos provados ou não provados. Por exemplo: o autor não é reconhecido como proprietário, porque não provou a sua aquisição através de um alegado contrato de compra e venda. No entanto isto não significa que o autor não possa ser reconhecido como proprietário com base num outro título de aquisição da propriedade. Dito de outra forma: uma condenação ou uma absolvição é sempre algo de relativo e situacional; não há condenações ou absolvições absolutas.

Sendo assim, a improcedência de uma acção de apreciação negativa não pode deixar de ser uma decisão relativa. Se ela se basear na não prova de que o réu não adquiriu o imóvel por usucapião (porque, por exemplo, o autor não prova que o réu não esteve na posse do imóvel durante o tempo necessário para a aquisição por usucapião), isso não significa que fique provado que o réu adquiriu o imóvel por usucapião (ou seja, que fique provado que o réu esteve na posse do imóvel durante o tempo necessário para essa aquisição).

Os exemplos podiam multiplicar-se. Por exemplo: da improcedência de uma acção em que é pedido que se declare que o autor não é pai do réu não se segue que o réu seja filho do autor. É sempre a mesma coisa: uma decisão negativa nunca pode produzir um efeito positivo.

d) Segundo aspecto: A RP afirma que "no caso das acções de impugnação judicial de escritura de justificação notarial, a simples improcedência da acção é suficiente para que o réu veja reconhecido, perante o autor, o seu direito de propriedade sobre os imóveis que constam da escritura, sendo, pois, redundante e inútil, pelas razões que acima se explicaram, a dedução de pedido reconvencional de reconhecimento daquele direito e de condenação do autor a ver esse direito reconhecido".

Como se referiu, a primeira afirmação não é aceitável. No caso concreto, o tribunal só pode não declarar que os réus não tinham adquirido a propriedade por usucapião, o que, como se terá demonstrado, não pode vir a ser transformado na declaração de que os réus adquiriram os imóveis por usucapião.

Ora, é precisamente para obter este resultado (que nunca pode decorrer da mera improcedência da acção de apreciação negativa) que é necessário e admissível um pedido reconvencional dos réus. Portanto, no caso em análise, nada impedia, tal como, aliás, a RP reconheceu, a dedução do pedido reconvencional pelos réus, dado que estava preenchido o disposto no art. 266.º, n.º 2, al. a), CPC (pedido reconvencional emergente da defesa dos réus).

A única coisa que se poderia discutir era a necessidade de dedução do pedido reconvencional no caso concreto, dado que, se poderia dizer que, atendendo à improcedência do pedido de apreciação negativa formulado pelo autor, subsiste a escritura de justificação notarial e, portanto, a propriedade dos réus sobre o imóvel. 

Isto tem apenas a ver com a eventual inexistência de interesse processual quanto ao pedido reconvencional. A RP entendeu que a reconvenção era inútil, ou seja, que os réus não tinham interesse processual para a deduzirem. O certo é que a procedência do pedido reconvencional se reveste de utilidade para os réus (até porque os réus também pediram a condenação dos autores na restituição do imóvel), pelo que, também quanto a este aspecto, nada obstaria à admissibilidade desse pedido.

MTS