"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/12/2020

Ampliação do pedido e (novo) valor da causa


1. O sumário de RP 14/7/2020 (559/17.3T8PFR.P1) é o seguinte:

I - Na determinação do valor da causa, deve atender-se ao momento em que a acção é proposta, excepto quando haja reconvenção ou intervenção principal.

II - A esse valor se atenderá para determinar a competência do tribunal, a forma do processo comum e a relação da causa com a alçada do tribunal.

III - O tribunal competente para a acção é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa”.

IV - A ampliação ou a redução do pedido inicialmente deduzido não tem a virtualidade de alterar o valor processual da acção.

V - Viola as regras conjugadas dos artigos 21º, nº1, 35º, nº1 e 18º, nº2 do Código da Estrada, o condutor que inicia uma manobra de mudança de trajectória, mudando de hemi-faixa de rodagem, sem assinalar a sua intenção e sem verificar se na mesma, no momento, circulava qualquer outro veículo.

2. O acórdão recai sobre a temática da ampliação do pedido inicial e sobre o reflexo dessa ampliação no valor da causa, tendo a RP defendido a orientação de que aquela ampliação não conduz a qualquer alteração deste valor. Em concreto, no acórdão, a RP afirma que, "formulado na petição inicial, um pedido líquido, a sua posterior ampliação não tem a virtualidade de aumentar o valor processual da acção, nem determina a incompetência relativa do tribunal." Salvo o devido respeito, as coisas não são assim tão simples.

3. Quanto à competência do tribunal (que, no caso em análise, era um juízo local cível), é verdade que se pode argumentar com a regra da perpetuatio fori (art. 38.º, n.º 1, LOSJ), segundo a qual a competência se fixa no momento em que a acção se propõe e que, por isso, mesmo que o valor da acção se tivesse alterado, a acção sempre teria de continuar a sua tramitação nesse tribunal.

Mas, ainda assim, é discutível que, tendo havido uma ampliação do pedido, não se tenha sequer considerado a hipótese da aplicação do disposto no art. 117.º, n.º 3, LOSJ, que estabelece a remessa do processo para o juízo central cível se houver uma alteração no valor da causa que seja susceptível de determinar a competência deste juízo. Estranhamente, o preceito não foi invocado pelo recorrente e também não foi considerado pela RP.

4. É certo que a aplicação do disposto no art. 117.º, n.º 3, LOSJ só poderia ser considerada se fosse de admitir que, em função da ampliação do pedido, se verificou uma alteração do valor da causa. Mas será que se pode defender que o valor da causa não se altera em função da ampliação do pedido inicial?

A RP afirma, de forma peremptória, que essa ampliação "não tem a virtualidade de aumentar o valor processual da acção". Trata-se de uma afirmação que, salvo o devido respeito, não é sustentável, como se vai procurar demonstrar.

5. a) Antes do mais, parece certo que, quando a ampliação se traduz na formulação de um pedido que se cumula com o pedido inicial (pedia-se x, passa-se a pedir x mais y), não pode deixar de se verificar uma alteração do valor da acção. O valor da acção não pode ser o mesmo quando nela é formulado um único pedido e quando nela são formulados dois pedidos a que correspondem diferentes utilidades económicas (na expressão ao art. 296.º, n.º 1, CPC). O regime instituído no art. 297.º, n.º 2, CPC não pode valer para a cumulação inicial de pedidos e não valer para uma semelhante cumulação sucessiva.

Aliás, o mesmo há que entender quando se verifica a redução de uma cumulação inicial de pedidos para um único pedido (pedia-se x mais y, passa-se a pedir apenas x). Também neste caso se impõe a redução do valor da causa, pois que deixa de se poder aplicar o disposto no art. 297.º, n.º 2, CPC.

Assim, sempre que no processo passe a haver uma cumulação simples de pedidos ou deixe de haver uma tal cumulação, altera-se a utilidade económica da acção e, por isso, o valor desta não pode deixar de se modificar. Por exemplo: pedia-se a entrega de uma garagem; passa-se a pedir a entrega da garagem e de um automóvel; o valor da causa tem de se alterar (aumentar); o mesmo no caso contrário: pedia-se a entrega de uma garagem e de um automóvel; passa a pedir-se apenas a entrega da garagem; o valor da causa tem de se modificar (reduzir).

b) O acórdão informa que "na sequência do relatório pericial elaborado, veio o Autor requerer a ampliação do pedido, peticionando o pagamento da quantia de € 35.000,00 a título de danos patrimoniais e a quantia de € 20.000,00 a título de danos não patrimoniais, daqui resultando a ampliação do pedido para a quantia de 64.558,27, o que foi deferido por despacho oportunamente proferido".

Segundo se percebe, na acção começou por haver um pedido único (no montante de € 29.558,27) e passou a haver a referida cumulação de pedidos. Nestes termos, de acordo com o que acima se disso, é indiscutível que deveria ter-se procedido ao aumento do valor da causa.

6. Continuando na temática da relevância da ampliação do pedido para o valor da causa, é claro que o problema é mais discutível quando se verifica apenas uma redução (v. g., de € 40.000 para € 15.000) ou uma ampliação do valor do pedido inicial (v. g.de € 15.000 para € 40.000). Há, no entanto, duas perguntas muito simples que ajudam a resolver o problema. As perguntas são as seguintes: 

-- Depois da redução do pedido deixa de ser admissível a interposição de um recurso que era admissível de acordo com o seu valor inicial?

-- Depois da ampliação do pedido continua a não ser admissível um recurso que não era admissível em função do seu valor inicial?

Estas perguntas, que são utilizadas como testes práticos para a solução do problema, merecem as seguintes respostas:

(i) A redução do pedido (que, no fundo, decorre de uma desistência parcial do pedido) não deve tornar inadmissível o recurso que era admissível em função do valor inicial da causa, dado que, por um lado, isso constituiria um desincentivo à desistência parcial do pedido e, por outro, retiraria à parte demandada a possibilidade de recorrer da decisão sobre o pedido reduzido. Se, por exemplo, o valor do pedido inicial fosse de € 10.000 e se o autor desistisse de € 8.000, uma diminuição do valor da acção para € 2.000 significaria que o réu condenado deixaria de poder impugnar a sua condenação nestes € 2.000. Isto é: antes da redução do pedido, podia recorrer de uma condenação em € 10.000 e obter no tribunal de recurso uma absolvição total; depois da redução do pedido, não poderia recorrer da condenação em € 2.000 e nunca poderia obter em recurso a mesma absolvição total. 

Não é preciso mais para se ter de entender que, neste caso, o valor da causa não se pode alterar, porque a parte demandada, em vez de ser beneficiada com a desistência parcial do pedido realizada pelo demandante, não pode acabar por ser prejudicada por essa desistência. Algo que, à partida, se pensaria ser favorável à parte demandada acabaria, afinal, por redundar num prejuízo para essa parte!

Note-se que a solução nada tem de arbitrário. Se o autor desistir totalmente do pedido, a acção não deixa de ter valor, ou seja, não passa a não ter nenhum valor. O mesmo tem de valer no caso da desistência parcial: o valor desta não se desconta ao valor da causa. A circunstância de, depois da correspondente sentença homologatória, haver uma decisão, total ou parcial, sobre o pedido do autor não significa que tudo se passe como se o pedido nunca tivesse sido formulado. O mesmo há que concluir se, durante a tramitação da causa, houver uma decisão parcial sobre o pedido do autor: a decisão parcial também não faz "desaparecer" da acção a parcela decidida.

(ii) Se assim é no caso da redução do pedido, então, na hipótese contrária, a solução tem também de ser a contrária. Em concreto, a ampliação do pedido tem de provocar uma ampliação do valor da causa, dado que, de outra forma, poderia ficar impedida de recorrer da decisão sobre o novo pedido quer o autor que tivesse ampliado o pedido, quer, o que seria ainda mais grave, a parte demandada.

Como é evidente, esta solução seria absolutamente inaceitável. Se o pedido se amplia (por exemplo, de € 15.000 para € 40.000) e se a parte demandada é condenada no novo montante (isto é, em € 40.000), têm de ser admissíveis para essa parte todos os recursos que seriam admissíveis de uma condenação num pedido inicial de idêntico montante. Ora, atendendo aos requisitos da recorribilidade ordinária estabelecidos no art. 629.º, n.º 1, CPC, isso só pode ser conseguido com uma correspondente ampliação do valor da causa.

A não ser assim, a parte demandada ficaria duplamente prejudicada. Por um lado, estaria sujeita a uma condenação num valor mais alto e significativo. Por outro, não teria a mesma possibilidade de recorrer que teria se o novo montante tivesse sido pedido inicialmente. Torna-se claro que a solução processual não pode passar pela irrelevância do valor ampliado do pedido pedido para efeitos do valor da causa.

7. a) As conclusões anteriores são facilmente reconduzíveis aos parâmetros do processo equitativo. Por exemplo: a circunstância de a parte demandada ter de poder recorrer de uma condenação com um mesmo montante, qualquer que seja o momento (inicial ou subsequente) em que este montante fica adquirido no processo, é certamente uma consequência do princípio da igualdade: a mesma condenação, a mesma recorribilidade.

Além disso, a circunstância de o uso legitimo de uma faculdade processual por uma das partes (in casu, a ampliação do pedido) não se poder traduzir em retirar uma faculdade à parte contrária (in casu, a faculdade de recorrer da decisão condenatória) é uma consequência da igualdade das partes. As partes não estariam a ser tratadas de forma igual se o uso legítimo de uma faculdade por uma das partes se traduzisse em retirar à outra parte um uso igualmente legítimo de uma outra faculdade. 

b) Este breve enquadramento torna-se necessário, porque a principal (e talvez única) objecção que pode ser feita às soluções acima apresentadas é a de que elas contrariam o disposto no art. 299.º, n.º 1 e 2, CPC, que só admite a soma ao valor inicial da causa do novo valor decorrente da dedução de um pedido reconvencional ou de uma intervenção principal.

A verdade é que o que acima se defendeu não contraria o disposto no art. 299.º, n.º 1 e 2, CPC, dado que nada do defendido contende com o que se estabelece no preceito. A única coisa que as soluções acima apresentadas fazem é demonstrar que o preceito não contém todos os casos em que se impõe uma alteração do valor inicial da acção. Ora, não contendo o preceito algo que tenha de ser entendido como taxativo (a expressão "só" apenas aparece no n.º 2 num contexto que nada a ter com o que agora se trata), nada impede que se entenda que, além das circunstâncias nele referidas, haja outras que também impõem uma alteração do valor da causa. Pelo contrário: as regras do processo equitativo impõem, de forma indiscutível, a consideração de outras hipóteses.

Aliás, cabe referir que a solução contrária àquela que agora se defende, alem de contrariar parâmetros do processo equitativo, se prestaria a "jogos" inaceitáveis, desde a formulação de um pedido de valor baixo, seguida de um aumento do valor do pedido, com a intenção de coarctar a possibilidade de interposição de recurso à parte demandada, até ao desrespeito das regras da competência em função do valor ou respeitantes ao patrocínio judiciário obrigatório. Num certo sentido, até se pode dizer que recusar, com base no disposto no art. 299.º, n.º 1 e 2, CPC, a relevância da ampliação do pedido para o valor da causa implica, ao mesmo tempo, violar o estabelecido no art. 296.º, n.º 1 e 2, CPC quanto à relevância que esse mesmo valor deve ter na acção. Isto é: para, supostamente, não violar o art. 299.º CPC acaba por se violar o art. 296.º CPC.

c) Em suma: a solução correcta não pode deixar de ser a de que a ampliação do pedido implica o correspondente aumento do valor da causa.

8. Como se julga ter demonstrado, o estabelecido no art. 299.º, n.º 1 e 2, CPC, está longe de resolver todas as questões relativas à alteração do valor da causa. Por esta razão, entende-se que, no caso sub iudice, o valor da causa se alterou com a ampliação do pedido inicial e que, por isso, a RP deveria ter aplicado o disposto no art. 117.º, n.º 3, LOSJ e remetido a causa para o juízo central cível.

MTS