"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



07/12/2020

Jurisprudência 2020 (109)


Convolação processual;
princípio da confiança


1. O sumário de RP 28/5/2020 (174/19.7T8MTS.P1) é o seguinte:

I - Apenas a falta absoluta do núcleo factual da causa de pedir, por inexistência absoluta ou ininteligibilidade integral da sua materialização, gera uma petição inepta, enquanto a sua insuficiência ou imprecisão, seja na exposição, seja na concretização, torna uma petição deficiente, havendo neste caso lugar a um despacho de aperfeiçoamento.

II - Um “despacho de convolação processual” de uma providência cautelar comum para um incidente de atribuição da casa de morada de família, desacompanhado de um despacho de aperfeiçoamento, não permite gerar expectativas de que seguindo esse “novo caminho” esteja assegurado ao demandante o vencimento da ação, mas já gera expectativas de que os factos essenciais alegados e o pedido formulado estão em consonância com os pressupostos elementares da relação jurídico-processual, pelo que a sentença ao considerar inepta a petição inicial viola as expectativas jurídicas decorrentes da confiança ou segurança jurídicas propiciadas por aquele primeiro despacho.

III - O pedido inicialmente formulado de “reposição da água, gás e luz no imóvel da casa de morada de família ao Requerente” e que “enquanto todas as questões de direito, referentes à legitima propriedade do imóvel não se encontrem decididas, seja concedido ao Requerente o direito de permanecer no mesmo”, o qual corresponde à consequência material (condennatio), tem implícito um pedido de atribuição do arrendamento da “casa de morada de família”, que, por sua vez, equivale à declaração jurídica propriamente dita (pronunciatio).

IV - A atribuição da casa de morada de família após a ruptura da vida em comum, mormente quando está em causa a titularidade do direito de propriedade entre os membros do ex-casal, tanto pode implicar a celebração de um contrato de arrendamento urbano com prazo certo, como por duração indeterminada.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Haverá agora que balizar um segundo quadro jurídico, atendendo que mediante o despacho judicial foi convolada uma providência cautelar comum para um incidente de atribuição de casa de morada de família. Assim, será de atender ao preceituado no artigo 990.º, n.º 1 do NCPC, segundo o qual “Aquele que pretenda a atribuição da casa de morada de família, nos termos do artigo 1793.º do Código Civil, ou a transmissão do direito ao arrendamento, nos termos do artigo 1105.º do mesmo Código, deduz o seu pedido, indicando os factos com base nos quais entende dever ser-lhe atribuído o direito”. Para o efeito, dispõe aquele artigo 1793.º, através do seu n.º 1 que, “Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer essa seja comum quer própria de outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.” Por sua vez e de acordo com o artigo 4.º da Lei n.º 7/2001 (DR I-A, n.º 109), alterada pela Lei n.º 23/2010, de 30/ago. (DR I, n.º 168), que veio estabelecer o regime jurídico das uniões de facto, “O disposto nos artigos 1105.º e 1793.º do Código Civil é aplicável, com as necessárias adaptações, em caso de ruptura da união de facto”.

No caso em apreço não podemos dizer que o requerimento inicial se encontra absolutamente ausente de factos e não foi formulado qualquer pedido. Tanto um como outro existem. No que concerne aos factos, será de relembrar que os mesmos foram alegados no pressuposto de uma providência cautelar. Por sua vez, no que concerne ao pedido, temos dois momentos distintos: o primeiro, logo no início quando foi requerida “a reposição da água, gás e luz no imóvel da casa de morada de família ao Requerente”, assim como que “seja concedido ao Requerente o direito de permanecer no mesmo”; o segundo, mediante requerimento de 18/jun./2019, invocando a concordância da R., foi exposto que o “Requerente e Requerida, vêm conjuntamente requerer a V/Exa. a dissolução da união de facto e a sua formalização por este Tribunal”.

Assim, haverá lugar ao despacho de aperfeiçoamento e o mesmo tem agora plena oportunidade? É o que iremos ver de seguida, começando por precisar o seu fundamento normativo e depois apontar o sentido que tem perdurado na jurisprudência. O convite ao aperfeiçoamento tem a sua base no disposto no artigo 580.º, n.º 2, alínea b) e n.º 4 do NCPC, preceituando-se neste último segmento normativo que “Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.”

No que concerne ao despacho de aperfeiçoamento, o Tribunal Constitucional, como sucedeu com o Ac. n.º 536/2011 (DR II, n.º 243, tem considerado que não existe, no âmbito do processo civil, “um genérico direito ao aperfeiçoamento” (§ 8), perspetivando o mesmo a partir do direito fundamental a um processo equitativo (20.º, n.º 4 Constituição). Por sua vez, a jurisprudência das Relações tem mantido a propósito posicionamentos díspares, sendo um mais restritivo e outro mais amplo na relevância conferida ao despacho de aperfeiçoamento e das consequências da sua ausência. No primeiro posicionamento e como sucedeu com o Ac. TRL de 24/jan./2019 (Des. Manuel Rodrigues) “O convite ao aperfeiçoamento de articulados previsto no artigo 590.º, n.ºs 2, alínea b), 3 e 4, do CPC, não compreende o suprimento da falta de indicação do pedido ou de omissões de alegação de um núcleo de factos essenciais e estruturantes da causa de pedir”. Daí que “Tal convite destina-se somente a suprir irregularidades dos articulados, designadamente quando careça de requisitos legais, imperfeições ou imprecisões na exposição da matéria de facto alegada”. Pelo que “As deficiências passíveis de suprimento através do convite têm de ser estritamente formais ou de natureza secundária, sob pena de se reabrir a possibilidade de reformulação substancial da própria pretensão ou da impugnação e dos termos em que assentam (artigos 590.º, n.º 6 e 265.º, do CPC).” No segundo alinhamento tem sido considerado que o despacho de aperfeiçoamento tem um carácter vinculado, pelo que a sua ausência conduz à uma nulidade processual – neste sentido Ac. TRC de 19/dez./2012 (Des. Maria Domingas Simões), ainda que tirado antes do NCPC, Ac. TRL 15/mai./2014 (Des. Ezaguy Martins).

Mas este caso tem contornos específicos – como de resto todos os casos – decorrente daquele iniciático despacho judicial convolador e em virtude de estarmos perante um processo de jurisdição voluntária. E tanto aquele despacho, como a natureza deste processo, terá de ser perspetivado de um modo responsável pelo tribunal recorrido, independentemente de quem seja o(a) juiz(a), seja mediante um ajustado dever de gestão processual, seja mediante os poderes de investigação atribuídos no âmbito dos processos de jurisdição voluntária, mas ambos perspetivados a partir do princípio da confiança ou da segurança jurídica.

No princípio constitucional de confiança ou da segurança jurídica encontra-se imanente a ideia de um Estado de Direito Democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição. Mediante o mesmo, pretende-se assegurar a preservação dos direitos já consagrados ou então salvaguardar as expectativas jurídicas que podiam vir a ser judicialmente reconhecidas. Este postulado de segurança assenta num mínimo de certeza que os cidadãos devem ter na ordem jurídica de um Estado de Direito Democrático, passando, assim, a proteger a confiança na previsibilidade do Direito e nas subsequentes decisões judiciais. E este desiderato não é apenas uma exigência constitucional dirigida ao legislador, mas também deve ser orientado para o julgador, de modo a estabelecer e a esclarecer os propósitos regulativos da vida em sociedade (3.º da Constituição).

A jurisprudência constitucional desde muito cedo que tem construído este princípio da confiança (Ac. Comissão Constitucional n.º 463, de 13/jan./1983, DR n.º 78, p. 133 e BMJ 314/141; Ac. Tribunal Constitucional, doravante TC, n.º 11/83, 17/84, 86/84, 303/90, 93/94, todos acessíveis em www.tribunalconstituciona.pt, assim como os demais), vindo essencialmente a dirigir o mesmo para efeitos de conformação legislativa (Ac. TC n.º 287/90; 233/91; 285/92; 237/98; 473/92; 161/93; 486/96; 559/98; 580/99; 141/2002; 449/2002; 11/2007; 615/2007; 158/2008), muito embora também o oriente para os sentenciamentos judiciais, mormente quando está em causa o seu caso julgado (Ac. TC n.º 330/90; 270/99).

Seguindo agora o alinhamento jurisprudencial anteriormente referido, podemos dizer que existe a violação do princípio da confiança quando perante uma certa situação de facto a mesma for desconsiderada de um modo inadmissível e arbitrário, seja quanto aos direitos já constituídos, seja no que concerne à afetação de legítimas expectativas adquiridas. No caso em apreço, está em causa esta última modalidade, podendo quanto à mesma estabelecerem-se os seguintes três critérios operativos: (a) a eliminação ou minoração de expectativas mediante uma alteração do posicionamento judicial, relativamente à qual era legítimo que os destinatários dessa decisão pudessem vir a esperar de uma futura decisão judicial, mas que no presente deixou de ser; (b) quando essa mutação judicial não visa proteger outros direitos ou interesses que estejam constitucionalmente tutelados e sejam preponderantes relativamente àqueles outros; (c) essa ponderação deve ser submetida a um teste de proporcionalidade, o qual, a nosso ver, desdobra-se em quatro vetores, a saber: adequação (i) necessidade (ii), justa medida (iii) e interesse legítimo (iv).

Ora um “despacho de convolação processual” não permite gerar expectativas de que se seguindo esse “novo caminho” esteja assegurado ao demandante o vencimento da ação. Nada disso. Mas já gera expectativas de que os factos essenciais alegados e o pedido formulados estão em consonância com os pressupostos elementares da relação jurídico-processual. Pois não tem sentido, indicar um certo “processo” quando o caminho está “juridicamente minado” ou então conduz a um “precipício jurídico”, por ausência de certos factos alegados ou de um específico ou singular pedido. E foi isto que aqui sucedeu, porquanto aquele “despacho de convolação processual” não foi acompanhado de um “despacho de convite ao aperfeiçoamento” [...].

[MTS]