"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



17/12/2020

Jurisprudência 2020 (116)


Revista excepcional;
admissibilidade*


1. O sumário de STJ 5/2/2020 (983.18.4T8VRL.G1.S1) é o seguinte:

I - Para averiguar se se verifica uma “fundamentação essencialmente diferente”, relevante para efeitos do previsto no n.º 3 do art. 671.º do CPC há que atender ao núcleo fundamental de cada uma das decisões em confronto, desconsiderando as divergências marginais e secundárias que não se mostram decisivas para a solução.

II - Mesmo nos casos em que seja alegada a ofensa do valor probatório da prova tarifada, a interferência do Supremo, ao abrigo do art. 674.º, n.º 3, do CPC, não prescinde da inexistência de dupla conformidade decisória, pressuposto geral de admissibilidade da revista normal, tal como emerge do art. 671º, n.ºs 1 e 3, do CPC.

III - Sendo inadmissível a revista, arguição das nulidades do acórdão recorrido, previstas no n.º 1 do art. 615.º do CPC, apenas pode ter lugar perante a Relação (cf. art. 615.º, n.º 4, do CPC, ex vi do art. 679.º, do mesmo Código).


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"7. Neste Supremo, a relatora proferiu despacho a não admitir a revista com o seguinte teor.

“A Lei n.º 41/2013, de 26/06, que aprovou o atual Código de Processo Civil, consagrou a regra da inadmissibilidade de recurso de revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido, e fundamentação essencialmente diferente, a decisão da primeira instância (art.º 671º, nº 3, do CPC).

Todavia, como se refere no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 20-11-2014, proc. 3479/10.9TBGDM-B.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt.:

“[E]ssa atenuação do condicionalismo legal de que depende a verificação de uma situação de dupla conforme não pode ser interpretada como um regresso ao modelo recursório anterior à Reforma de 2007, fazendo depender o recurso de revista unicamente do valor do processo ou da sucumbência em conexão com a alçada da Relação. O relevo atribuído à fundamentação jurídica para evitar a formação de uma situação de dupla conformidade decisória não pode servir de pretexto para, na prática, restaurar de pleno o terceiro grau de jurisdição que o legislador de 2007 limitou, sustentado nas vantagens que uma tal restrição assegura, na medida em que evita o recurso indiscriminado ao Supremo Tribunal de Justiça, só porque o valor do processo ou da sucumbência o permitem.

Assim, a alusão à natureza essencial da diversidade da fundamentação implica que prevaleça o seu núcleo fundamental, ou seja, os aspetos que verdadeiramente se mostram decisivos para a obtenção do resultado, levando a desconsiderar, para este efeito, as divergências marginais, secundárias, periféricas, que não representam efetivamente um percurso jurídico diverso. O mesmo acontece nas situações em que a diversidade de fundamentação se traduza apenas na não-aceitação, pela Relação, de uma das vias trilhadas para atingir o mesmo resultado ou, do lado inverso, no aditamento de outro fundamento jurídico que não tenha sido considerado pela 1ª instância ou que não tenha sido admitido e que sirva para reforçar o mesmo resultado.

Se, como é natural, a sistematização das decisões ou a variedade dos argumentos jurídicos empregues numa e noutra das decisões é suscetível de conduzir a resultados formalmente diversos ou não inteiramente coincidentes, releva unicamente para o caso a essencialidade da fundamentação que, seguindo trilhos diversos, sustente uma e outra das decisões.”

Por outro lado, como tem sido afirmado por este Supremo Tribunal de Justiça, “não releva, para este efeito, a alteração factual operada pela Relação, pois que conhecendo, em regra, o Supremo Tribunal de Justiça de matéria de direito (art.ºs 46º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, e 682º, n.ºs 1 a 3, do Cód. Proc. Civil), «os elementos de aferição das aludidas “conformidade” ou “desconformidade” das decisões das instâncias (os chamados elementos identificadores ou diferenciadores) têm de circunscrever-se à matéria de direito (questões jurídicas); daí que nenhuma divergência das instâncias sobre o julgamento da matéria de facto seja susceptível de implicar, a se, a “desconformidade” entre as decisões das instâncias geradora da admissibilidade da revista.” [Cf. Acórdão do STJ de 29-06-2017, processo nº 398/12.8TVLSB.L1.S1,in www.dgsi.pt.]

Dito isto, importa começar por referir que, no caso vertente, a alteração factual operada pela Relação não interferiu minimamente na apreciação da decisão de direito, como, aliás, resulta com clareza do acórdão recorrido.

Vejamos, então, se as decisões convergentes das instâncias assentam em «fundamentação essencialmente diferente», excludente da admissibilidade da revista.

Ambas as instâncias julgaram a ação improcedente, absolvendo o réu dos pedidos formulados.

Na 1ª instância, considerou-se que a resolução do contrato e o pagamento da cláusula penal tinham como pressuposto o incumprimento culposo por parte do réu, situação que a sentença entendeu não ocorrer, pois “o réu cumpriu a sua obrigação de dar o direito de preferência na aquisição dos quatro lotes, o que só não se efetivou, porque os autores recusaram a prestação e não quiseram adquirir os lotes (porque pretendiam que lhes fossem dados).” Acrescentou-se ainda que, mesmo que tivesse havido incumprimento por parte do réu, não houve culpa do réu, dado que foram os próprios autores a recusar a prestação, por pretenderem outra que não lhe era devida. Nesta linha argumentativa, a sentença considerou que deveria ter-se por ilidida a presunção de culpa.

Por fim, argumentou-se que, nas circunstâncias do caso, a atuação dos autores, ao exigir uma prestação que antes haviam recusado, configurava abuso de direito, nos termos previstos no art.334º, do CC.

A Relação, por seu turno, defendeu que, não obstante a alteração introduzida no elenco factual, a pretensão dos autores estava votada ao insucesso, na medida em que “foram os próprios autores que, na sequência das comunicações que lhes foram remetidas, informaram o réu que queriam que lhes fossem dados quatro lotes, colocando fora de questão a concessão do direito de preferência na respectiva alienação.”. De qualquer forma, adiantou que o alegado incumprimento nunca se poderia considerar culposo, “por terem sido os autores a rejeitar exercer o direito de preferência.”. Finalmente, entendeu que os autores, “ao valer-se de um direito que disseram não querer exercer, adotam um comportamento abusivo enquadrável no instituto jurídico denominado venire contra factum proprium”.

Confrontando ambas as decisões, afigura-se-nos, pois, sem hesitação, que não ocorre qualquer alteração estrutural ou essencial de fundamentação, movendo-se o acórdão da Relação no âmbito das mesmas razões fundamentais de direito que já haviam ditado a sucumbência dos autores em 1ª instância.

Não se verifica, portanto, uma situação que, ao abrigo do disposto na 2ª parte do art. 671º, nº3, do CPC, permita afastar a verificação da «dupla conforme». [...]

***

Os recorrentes invocam ainda a contradição de julgados e a norma do art. 629º, do CPC, conjugada com a do nº3, do art. 671º, do mesmo Código, para, por essa via, defender a admissibilidade da revista.

Admitindo que estejam a referir-se ao fundamento previsto na alínea d), do nº2, do art.º. 629.º, do CPC, cuja aplicação ao recurso de revista é ressalvada pela primeira parte do art. 671.º, n.º 3, do CPC, adianta-se, desde já, não estarem verificados os requisitos ali estabelecidos.

Com efeito:

Como resulta do referido preceito, aquele fundamento da revista circunscreve-se a recursos de decisões proferidas pela Relação em situações em que o acesso ao Supremo esteja vedado por motivos de ordem legal estranhos à alçada da Relação.

Tal requisito, contudo, não ocorre no caso em apreço, na medida em que a revista é interposta no âmbito de uma ação declarativa com processo comum.

Nesta conformidade, não se encontrando verificada uma exclusão do recurso ordinário por outro motivo de ordem legal, é patente não se mostrar preenchido o condicionalismo previsto no art. 629º, nº2, al. d), do CPC.

***

Esforçando-se por demonstrar que o recurso para o STJ é admissível, os recorrentes vieram ainda alegar que o acórdão recorrido enferma das nulidades previstas nas alíneas b), c) e d), do nº1, do art. 615º, do CPC.

Conforme refere Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5.ª Edição, 2018, págs. 404 e 405, em anotação ao art. 674.º, n.º 1, al. c), do CPC, a respeito da revista poder ter como fundamento as nulidades previstas nos arts. 615.º e 666.º, do CPC, importa distinguir consoante a nulidade apontada ao acórdão recorrido ocorra quando não se verifica a dupla conforme (caso em que nada obsta a que o objeto do recurso seja até unicamente preenchido unicamente pela arguição de nulidades) dos casos em que ocorre dupla conforme.

Ora, nesta última situação, o conhecimento das nulidades pelo STJ fica dependente da admissibilidade da revista, o que, como vimos, não sucede no presente caso.

Em suma: dada a ausência dos requisitos previstos no art. 629º, nº2, al. d), do CPC, por um lado, e encontrando-se preenchido o condicionalismo previsto no art. 671.º, n.º 3, do CPC (“dupla conforme”), por outro, é imperioso concluir pela inadmissibilidade da revista, entendimento que, a nosso ver, não viola quaisquer princípios constitucionais, mormente o ínsito no art. 20º, da CRP.

Em face do exposto, decide-se julgar findo o recurso, por não ser admissível (art. 652º, nº 1, h), do CPC, ex vi do art. 679º, do mesmo Código). [...]

8. Deste despacho vieram os recorrentes reclamar para a Conferência, alegando, em síntese, que:

- Interpuseram recurso de revista e de revista excecional, nos termos do preceituado nos arts. 637º, 671º, 674º, 615º e 629º, entre outros, do CPC;

- O recorrido entendeu estar perante recurso de revista excecional;

- O Tribunal da Relação de Guimarães admitiu o recurso como de revista excecional;

- O Tribunal da Relação de Guimarães julgou a ação improcedente, com base em fundamentação essencialmente diferente da utilizada pela 1ª instância;

- Nas alegações de revista, invocaram como fundamento do recurso, a violação de lei substantiva e adjetiva e a contradição de julgados.

9. O recorrido respondeu, pugnando pelo indeferimento da reclamação.

10. Cumpre apreciar e decidir.

Afigura-se-nos que a reclamação apresentada é manifestamente improcedente. [...]

11. Em face do exposto, acorda-se em indeferir a reclamação."


*3. [Comentário] O STJ decidiu bem.

Apenas um esclarecimento: para que se aceite que a relatora tinha competência para se pronunciar sobre matéria relativa a revista excepcional é necessário entender que, como se refere no acórdão, "os recorrentes não interpuseram recurso de revista excecional, nos termos previstos no art. 672º, do CPC, ainda que o pudessem ter feito, embora a título subsidiário, prevenindo assim a hipótese de ser rejeitada a revista normal." 

De outra forma, isto é, se os recorrentes tivessem invocado algum dos fundamentos enunciados no art. 672.º, n.º 1, CPC, a apreciação da admissibilidade da revista excepcional caberia à formação referida no n.º 3 do mesmo preceito.

MTS