"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



09/12/2020

Jurisprudência 2020 (110)


Requerimento de injunção; oposição;
compensação; valor da causa; reconvenção*


1. O sumário de RL 16/6/2020 (77375/19.8YIPRT-A.L1-7) é o seguinte: 

I – No âmbito do Decreto-Lei n.º 62/2013, de 10 de Maio, diploma que estabelece medidas contra os atrasos de pagamento nas transacções comerciais, não se descortinam razões que sustentem o afastamento das regras processuais decorrentes da alteração do valor da causa por força da dedução de reconvenção, nem aquelas podem ser encontradas na norma do n.º 2 do artigo 10.º desse diploma legal.

II – Ademais, razões de justiça material, de igualdade das partes e de economia processual justificam que, deduzida oposição com reconvenção ao requerimento de injunção relativo à exigência de pagamento de transacções comerciais, o valor do pedido reconvencional se adicione ao valor do pedido inicial, determinando-se desse modo o valor da causa e, por consequência, a forma de processo a seguir.

III – Assim, deduzida oposição com reconvenção ao procedimento de injunção, este assume natureza jurisdicional, sendo-lhe aplicáveis as regras dos artigos 299.º e seguintes do Código de Processo Civil, pelo que estando em causa um pedido inicial e um pedido reconvencional distintos, haverá que adicionar ambos os valores e, sendo o total superior a metade do valor da alçada da Relação, o processo seguirá os trâmites da forma de processo comum.

IV – Em tal situação torna-se, desde logo, admissível a reconvenção, cumprindo ao juiz aferir da verificação dos demais requisitos legais previstos no art. 266º, n.º 2 do Código de Processo Civil.

2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"No caso em apreço, a recorrente/reconvinte formulou reconvenção em que pediu que se declare que tem um crédito sobre a recorrida/reconvinda de € 25 667,64; que se declare extinto o crédito da reconvinda, que a reconvinte reconhece, no valor de € 7 010,98; e que se condene a reconvinda no pagamento à reconvinte do montante de € 18 656,86.

Como tal, seguro é que os pedidos da recorrente/reconvinte face ao pedido da recorrida são distintos, pois que pretende, para além de compensar o crédito que reconhece à reconvinda, a condenação no pagamento do excedente, sendo que este deverá, de acordo com o acima explanado, ser somado ao valor (da injunção inicial) indicado pela autora, nos termos dos art.ºs 299º, n.º 2 e 530º, n.º 3 do CPC, o que confere à causa o valor de € 28 528,69.

Mas se assim é e se tal tem vindo a ser admitido pela jurisprudência, tal foi reconhecido, designadamente, no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17-12-2018, relator Alcides Rodrigues, processo n.º 107776/18.0YIPRT-C.G1, já não se pode acompanhar o mais aí decidido no segmento em que se concluiu que apesar de o valor da causa dever ser fixado em face do resultado da soma do pedido inicial com o do pedido reconvencional, ainda assim, para efeitos de determinação da forma de processo a seguir após a dedução da oposição, seria de atender apenas ao valor do pedido inicial.

Na verdade, aí refere-se que a forma de processo no caso de o pedido injuntivo ser inferior a metade do valor da alçada da Relação será a da acção declarativa especial, pois que é em função do valor do pedido injuntivo ou da injunção inicial (e não do valor da acção) que se define o regime processual aplicável, remetendo para o disposto no art. 10.º, n.º 4, do DL 62/2013, de 10 de Maio, pelo que não haveria que adicionar para esse efeito o valor da reconvenção, que em nada alteraria a regra da competência do Tribunal.

O art. 10º, n.º 4 do DL 62/2013 determina que as acções para cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes de transacções comerciais seguem os termos da acção declarativa especial quando o valor do pedido não seja superior a metade da alçada da Relação mas nada esclarece sobre se esse valor deve ser apenas o valor do pedido injuntivo, e, tal como se justifica a soma dos valores do pedido inicial e do pedido reconvencional para efeitos do valor da causa, não se vislumbra qualquer apoio na lei para afastar essa mesmíssima regra de aplicação das regras de fixação do valor da causa, que terão reflexo na forma do processo a seguir.

Note-se, aliás, que o valor da causa, tal como se extrai do disposto no n.º 1 do art. 296º do CPC, representa a utilidade económica imediata do pedido e é esse valor que determina a competência do tribunal, a forma do processo de execução comum e a relação da causa com a alçada do tribunal – cf. n.º 2 do art. 296º.

Tal como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, o valor da causa releva para diversos efeitos, entre os quais, “o valor do pedido e, por inerência, o valor da causa (sublinhado próprio), é elemento decisivo para delimitar o âmbito de aplicação do regime dos procedimentos destinados a exigir o cumprimento de obrigações pecuniárias, emergentes de contratos, de valor não superior a € 15 000,00 (art. 1º do DL n.º 269/98, de 1-9)” – cf. op. cit., pág. 343.

Ora, se se entende que ao valor do pedido inicial deve ser somado o valor do pedido reconvencional que seja distinto daquele para efeitos de determinação do valor da causa, não se lobriga como sustentar que essa alteração do valor da causa não tenha qualquer reflexo na determinação da forma de processo a observar na acção declarativa que surge na sequência e por força da dedução de oposição (com ou sem reconvenção).

Na decisão recorrida convocou-se ainda o disposto no art. 18º do regime anexo ao DL 269/98, de 1 de Setembro para justificar a distribuição da acção como acção declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias em face do valor processual encontrado nos termos daquele normativo legal. [...]

De notar que esse art. 18º mantém a sua redacção inicial, não tendo sido objecto de qualquer modificação por força das múltiplas alterações legislativas de que aquele diploma já foi objecto.

Decorre, de facto, desse normativo que o valor processual da injunção e da acção declarativa que se lhe seguir é o do pedido, mas tal norma está inserida num diploma que apenas previa, e prevê, a possibilidade de a oposição à injunção dar origem a uma acção declarativa com forma especial. Ora, à data da sua elaboração não podia ter sido ponderada a possibilidade que se abriu com a aprovação do DL 32/2003, de 17 de Fevereiro, entretanto revogado pelo DL 62/2013, de essa mesma oposição, estando em causa o pagamento de transacções comerciais que permite o recurso à injunção, independentemente do valor da dívida, dar origem à remessa dos autos para o tribunal competente, com aplicação da forma de processo comum – cf. art. 7º, n.º 2 do DL 32/2003 e art. 10º, n.º 2 do DL 62/2013.

Ora, é precisamente essa situação que vem originar a situação de desigualdade apontada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça invocado pela recorrente e supra mencionado e que não encontra qualquer arrimo substancial bastante que a justifique.

Com efeito, a singela diferença do valor da transacção comercial cujo pagamento se peticiona se situar acima ou abaixo do montante de € 15 000,00, originaria, segundo a posição acolhida na decisão recorrida, a possibilidade de, no primeiro caso, deduzida oposição com reconvenção, os autos prosseguirem os termos do processo comum e, no segundo, apesar do valor da causa poder ser de centenas de milhares de euros, seguir-se a tramitação simplificada da acção especial prevista no regime anexo ao DL 269/98.

Tal como se realça no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13-06-2018, relator Rodrigues Pires, processo n.º 26380/17.0YIPRT.P1 (cujo relator ali modifica a sua posição anterior) são “razões de justiça material as que deverão ser convocadas a favor da admissibilidade da reconvenção, como forma de viabilizar a compensação de créditos, mesmo quando o inicial procedimento de injunção se reporta a quantia inferior a metade da alçada do tribunal da relação”, sendo de questionar que a reconvenção seja de admitir quando o procedimento de injunção tem valor superior a metade da alçada do tribunal da Relação, por força da sua transmutação em processo comum, e não o seja quando o seu valor é inferior.

Para além de não se descortinarem razões (nomeadamente no texto da lei) que sustentem o afastamento das regras processuais decorrentes da alteração do valor da causa por força da dedução de reconvenção, razões de justiça material e de economia processual justificam que, deduzida oposição com reconvenção ao requerimento de injunção relativo à exigência de pagamento de transacções comerciais, o valor do pedido reconvencional se adicione ao valor do pedido inicial, determinando o valor da causa e, por consequência, a forma de processo a seguir. Ou seja, sendo esse valor superior a metade do valor da alçada da Relação, a acção declarativa subsequente à dedução da oposição seguirá a forma de processo comum – cf. ainda que sem tomar posição quanto à forma de processo a seguir, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 31-10-2019, relator Joaquim Boavida, processo n.º 129733/18.7YIPRT-A.G1.

*3. [Comentário] Sobre a problemática da dedução da compensação através da reconvenção, amplamente tratada no acórdão, ver neste Blog, por último, aqui.

MTS