"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



10/12/2020

Jurisprudência 2020 (111)


Sigilo bancário;
penhora; utilidade*


1. O sumário de RL 18/6/2020 (5602/17.3T8OER-A.L1-2) é o seguinte:

I.– É legítima a invocação do sigilo bancário para a recusa, por parte da instituição bancária, em informar o agente de execução acerca do valor atualmente em dívida do crédito hipotecário (titulado pela instituição bancária) registado sobre imóvel do executado.

II.– A circunstância de essa informação ter sido pedida pelo agente de execução para aferir da conveniência e utilidade da penhora do imóvel a ser efetuada em execução de crédito comum não justifica a autorização do levantamento do sigilo bancário.

III.– O exposto em II não é afetado pelo facto de num provimento emitido pelos juízes da comarca se determinar que “Para efeitos de avaliação da necessidade e adequação da penhora, esta não deve ser promovida quanto a bem imóvel, em execução instaurada por credor sem garantia real, nos casos em que o agente de execução conclua que sobre o bem incide garantia real de crédito, cujo valor seja, presumivelmente, igual ou superior a 85% do valor de referência para a sua venda judicial.”

IV.– Com efeito, esse provimento, como aliás nele expressamente se afirma, só vincula os oficiais de justiça que exerçam as funções de agente de execução, tendo, em relação aos agentes de execução stricto sensu, natureza meramente indicativa ou informativa.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Atualmente (e sem nos determos sobre a evolução legislativa nessa matéria), estipula-se, no n.º 6 do art.º 749.º do CPC, que “[p]ara efeitos de penhora de depósitos bancários, o Banco de Portugal disponibiliza por via eletrónica ao agente de execução informação acerca das instituições legalmente autorizadas a receber depósitos em que o executado detém contas ou depósitos bancários”.

E resulta do regime de penhora de depósitos bancários previsto no art.º 780.º do CPC que, ainda que o agente de execução não logre identificar as contas tituladas pelo executado em determinada instituição bancária, estas deverão bloquear o que apurarem existir em nome do executado na instituição, se for o caso, e deverão informar o agente de execução em conformidade (cfr. n.ºs 6 e 8 do art.º 780.º).

A penhora de saldos de depósitos bancários é, no atual regime da ação de execução, motivo de derrogação do regime do sigilo bancário (nesse sentido, à luz do derradeiro texto do CPC de 1961, veja-se o acórdão do STJ, de 15.5.2012, processo 1911/08.0TBOAZ-B.P1).

No âmbito das execuções a lei autoriza que o agente de execução consulte as bases de dados de instituições públicas mencionadas no art.º 749.º n.º 1 do CPC, tendo em vista a recolha de informações sobre a identificação do executado e sobre a identificação e a localização dos seus bens – tudo subordinado ao fim da concretização de penhora.

Nos termos do n.º 7 do art.º 749.º “[a] consulta de outras declarações ou de outros elementos protegidos pelo sigilo fiscal, bem como de outros dados sujeitos a regime de confidencialidade, fica sujeita a despacho judicial de autorização, aplicando-se o n.º 2 do artigo 418.º, com as necessárias adaptações”.

O art.º 418.º do CPC, sob a epígrafe “Dispensa de confidencialidade pelo juiz da causa”, dispõe o seguinte:

“1- A simples confidencialidade de dados que se encontrem na disponibilidade de serviços administrativos, em suporte manual ou informático, e que se refiram à identificação, à residência, à profissão e entidade empregadora ou que permitam o apuramento da situação patrimonial de alguma das partes em causa pendente, não obsta a que o juiz da causa, oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes, possa, em despacho fundamentado, determinar a prestação de informações ao tribunal, quando as considere essenciais ao regular andamento do processo ou à justa composição do litígio.
 
2- As informações obtidas nos termos do número anterior são estritamente utilizadas na medida indispensável à realização dos fins que determinaram a sua requisição, não podendo ser injustificadamente divulgadas nem constituir objeto de ficheiro de informações nominativas.”

A previsão deste artigo 418.º (assim como a do art.º 236.º n.º 1, atinente à obtenção de informações para consecução de citação) não incide sobre situações de segredo, mas de “mera” confidencialidade. Esta, verificados os requisitos previstos na norma, poderá ser dispensada por determinação do tribunal onde pende o processo (cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Almedina, p. 230). Assim será quando o juiz da causa considere as informações (que se referirão à identificação, à residência, à profissão e entidade empregadora ou visarão o apuramento da situação patrimonial de alguma das partes em causa pendente) essenciais ao regular andamento do processo ou à justa composição do litígio.

Pese embora a fasquia da confidencialidade se localize, em princípio, em plano menos elevado do que a do segredo profissional, também ali se exige, para a sua ultrapassagem, um juízo de estrita proporcionalidade face ao arredamento dos valores ínsitos à reserva da vida privada em benefício do valor da realização da justiça.

Revertamos ao caso dos autos.

Pretende-se que uma instituição bancária, credora hipotecária cuja garantia se encontra registada sobre imóvel pertencente ao executado, informe acerca do valor atual do crédito garantido, isto é, informe acerca do montante atual da dívida que o executado tem ou terá perante o banco. Com essa informação o agente de execução pretende aquilatar acerca da utilidade da penhora, isto é, da probabilidade de a exequente, credora comum, poder obter pagamento sobre o bem penhorado.

Quer-nos parecer que a prestação da referida informação pelo banco é, à luz da justificação dada, útil e conveniente. Mas não é, seguramente, indispensável à efetivação do direito da exequente e, por conseguinte, à tutela do valor fundamental do acesso à jurisdição e à justiça.

A informação pretendida não se enquadra em nenhuma das situações legalmente previstas de forçada colaboração das instituições bancárias no âmbito do processo judicial, com derrogação do sigilo bancário.

É certo que a exequente (requerente do incidente de levantamento do sigilo bancário) alega que sem essa informação a execução não poderá prosseguir. Com efeito, nas palavras da exequente, “a informação pretendida pela Exequente tem em vista o cumprimento do disposto no ponto II.V n.º 1 als. a) e b) do Provimento n.º 1/2014 da Comarca de Lisboa Oeste - Instâncias Centrais de Oeiras e Sintra, sem o qual o processo executivo não poderá prosseguir os seus termos no que respeita à penhora dos bens imóveis.”

Vejamos.

Nos termos do aludido Provimento, “[p]ara efeitos de avaliação da necessidade e adequação da penhora, esta não deve ser promovida quanto a bem imóvel, em execução instaurada por credor sem garantia real, nos casos em que o agente de execução conclua que sobre o bem incide garantia real de crédito, cujo valor seja, presumivelmente, igual ou superior a 85% do valor de referência para a sua venda judicial”.

Como é sabido, o atual modelo de processo executivo atribui a uma entidade exterior ao tribunal, o agente de execução, o encargo de orientar e efetivar a execução, sem prejuízo de caber a um juiz a intervenção em caso de litígio, exercendo então este uma função de tutela, quando a lei lho defira.

Assim, “cabe ao agente de execução efetuar todas as diligências do processo executivo que não estejam atribuídas à secretaria ou sejam da competência do juiz, incluindo, nomeadamente, citações, notificações, publicações, consultas de bases de dados, penhoras e seus registos, liquidações e pagamentos” (art.º 719.º n.º 1 do CPC).

Por sua vez, “sem prejuízo de outras intervenções que a lei especificamente lhe atribui, compete ao juiz:

a)- Proferir despacho liminar, quando deva ter lugar;

 b)- Julgar a oposição à execução e à penhora, bem como verificar e graduar os créditos, no prazo máximo de três meses contados da oposição ou reclamação;

 c)- Julgar, sem possibilidade de recurso, as reclamações de atos e impugnações de decisões do agente de execução, no prazo de 10 dias;

 d)- Decidir outras questões suscitadas pelo agente de execução, pelas partes ou por terceiros intervenientes, no prazo de cinco dias. (…)” (art.º 723.º n.º 1 do CPC).

À responsabilidade que recai sobre o agente de execução corresponde um estatuto tido como adequado, que é o enquadramento institucional e profissional, tanto quanto à preparação, formação e ingresso na profissão, assim como ao seu exercício, pela Ordem dos Solicitadores e Agentes de Execução (Lei n.º 154/2015, de 14.9) e pela Comissão para o Acompanhamento dos Auxiliares de Justiça (Lei n.º 77/2013, de 21.11) e bem assim a sujeição a um regime de incompatibilidades, impedimentos e deveres que se estima garantirá o respeito, pelo agente de execução, dos direitos e garantias fundamentais, necessariamente em jogo no desenrolar de um procedimento coercivo como é o processo de execução (vide Rui Pinto, A Ação Executiva, 2018, AAFDL Editora, pp. 106 e 107).

Situações há em que a atuação e decisão caberão diretamente, em primeira instância, ao juiz (cfr. al. b) do n.º 1 do art.º 723.º do CPC). Acresce, nas outras situações, o meio genérico de impugnação dos atos e decisões do agente de execução, a reclamação para o juiz, prevista na al. c) do n.º 1 do art.º 723.º do CPC.

De todo o modo, este modelo implica que o agente de execução exerce as suas funções com autonomia, não cabendo ao tribunal impor-lhe regras prévias de atuação.

Disso mesmo, de resto, se dá conta no aludido Provimento, onde se exarou, na parte ora pertinente, o seguinte:

“3)- Um indutor de dificuldades conhecidas na justiça executiva prende-se com a circunstância de o tribunal assumir uma função de controlo processual, sendo o impulso da responsabilidade de pessoa externa à estrutura judicial – o agente de execução, o que, com as particularidades próprias, também se verifica nas situações em que os oficiais de justiça atuem como agentes de execução;
 
4)- A esta luz, entende-se ser importante que os agentes de execução, enquanto pessoas com a responsabilidade central de promover o andamento dos processos executivos, conheçam o entendimento dos juízes nalgumas questões centrais, por forma a adequarem procedimentos de atuação com as orientações estabelecidas para esta Comarca, assim beneficiando da inerente clareza, certeza e previsibilidade;

5)- Por outro lado, não tendo o agente de execução externo dever de obediência a ordens ou instruções genéricas do tribunal, o que à frente se dispõe não deverá ser assim enquadrado exceto no que concerne a oficiais de justiça que atuem na qualidade de agentes de execução.

Trata-se, para os agentes externos, de comunicação de entendimentos uniformes dos juízes a exercer funções nesta Comarca.”

A supracitada orientação restritiva da realização de penhora de imóveis onerados e determinativa de recolha prévia de informação junto do credor garantido sobre o valor atualizado do crédito não vincula, pelas razões já expostas, o agente de execução stricto sensu (excluindo, pois, o oficial de justiça que, nos termos do art.º 722.º do CPC, exerça as funções de agente de execução).

Assim, a recusa da prestação da aludida informação pelo Banco Santander não constitui obstáculo à prossecução da execução.

Não se justificando, assim, o levantamento do sigilo bancário."

*3. [Comentário] Muito provavelmente, a RL decidiu bem no âmbito dos parâmetros legais vigentes.

Todavia, como a própria RL afirma, a "prestação da [...] informação pelo banco é, à luz da justificação dada, útil e conveniente". Concretizando, esta utilidade e conveniência traduz-se em evitar a realização de uma penhora que, para o exequente, se torna inútil, dado que o Banco não deixará certamente de reclamar o seu crédito e será pago antes desse exequente.

Como já noutra ocasião teve oportunidade de se referir, o actual regime de reclamação de créditos implica que o processo executivo deixe de ser aquilo que devia ser -- isto é, um meio de pagamento de dívidas -- e se transforme naquilo que não devia ser -- ou seja, num sistema, se assim se pode dizer, de criação de dívidas --,  dado que o processo vai ser utilizado para pagar uma dívida que está a ser cumprida e que, neste sentido, se pode dizer que "não existe". Ainda por cima, tudo isto sucede em prejuízo do credor que tem a dívida que "existe", se não também em prejuízo do próprio credor da dívida que "não existe".

Em conclusão: se algo de semelhante ao referido provimento dos juízes da Comarca não é legal, então devia sê-lo.

MTS