"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/12/2020

Jurisprudência 2020 (114)


Responsabilidade extracontratual do Estado;
competência material*


1. O sumário de RG 4/6/2020 (4778/18.7T8BRG.G1é o seguinte:

. O ETAF veio alargar a competência dos tribunais administrativos a todas as ações em que se discute a responsabilidade extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público, e independentemente dessa responsabilidade emergir de uma atuação de gestão pública ou de gestão privada.

. Tendo a autora formulado um pedido de condenação solidária de todos os RR, com fundamento em responsabilidade extracontratual, a pagarem-lhe determinada quantia em dinheiro e respectivos juros, bem como o valor dos danos não patrimoniais, enformando os fundamentos dessa sua pretensão também na omissão dos 2ª e 3ª RR., relativamente à conduta da 1ª R., pois que nada fizeram junto desta 1ª R. para obviar ao resultado danoso, co-envolvendo-os na produção dos mesmos danos para os quais terão concorrido em conjunto, por força das suas condutas omissivas (1ª R. omissão do dever de conservação, demais RR. por omissão do dever de zelar pela segurança pública), os tribunais administrativos e fiscais são competentes para conhecer da ação, ainda que nem todos os RR. sejam pessoas coletivas de direito público.

. Nas ações emergentes de responsabilidade civil extracontratual de pessoa jurídica pública pode ser chamada a intervir pessoa jurídica privada, para quem haja sido transferida a responsabilidade por contrato de seguro, não impedindo a intervenção da seguradora, a atribuição de competência aos tribunais administrativos e fiscais.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A apelante alicerça a ação na seguinte factualidade:

1. A 15.11.2016 a Autora encontrava-se no caminho público, a cerca de dois metros da fita balizadora colocada pela Polícia Municipal, quando foi atingida por um pedregulho que resvalou do muro e foi atingir a Autora na perna direita.

2. O muro de suporte de terras é propriedade da 1.ª Ré.

3. A Autora avisou os 2.º e 3ª RR para que tomassem «as devidas precauções de intervenção urgente» em junho de 2016 e «depois após a primeira derrocada parcial em outubro de 2016», sendo destas o «dever de cuidado e de zelo pela proteção da segurança pública.»

4. Os seus avisos não produziram qualquer efeito, porque não houve intervenção no muro em risco.

5. Considerando que o local onde o muro ruiu é um caminho público e de passagem de inúmeras pessoas, os 2.º e 3.ª RR tinham a obrigação de promover uma intervenção urgente para acautelar situações como a que veio a ocorrer à Autora.

Nos presentes autos não se suscita dúvidas que a 1ª R. e a interveniente principal são pessoas colectivas de direito privado e que a 2ª e a 3ª RR. são pessoas colectivas de direito público.

A A. funda a responsabilidade da 1ª A. no artº 492º do CC, o qual estabelece uma presunção de culpa do proprietário ou edifício ou outra obra que possa ruir.

Relativamente às demais RR. a A. não indica em que preceito legal se baseia para lhes imputar responsabilidade. Limita-se a referir que estas não providenciaram que o muro fosse reparado com urgência, não tendo cumprido o dever de cuidado e zelo pela protecção da segurança pública.

Relativamente ao Município de Y a sua responsabilidade poderá ser equacionada tendo em conta o disposto no Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (DL 555/99, de 16 de Dezembro).

De acordo com o artigo 89º do RJUE, as edificações devem ser objecto de obras de conservação. No entanto, quando estejam em causa obras que sejam necessárias à correcção de más condições de segurança ou salubridade, a Câmara Municipal pode ordenar a realização dessas mesmas que são, em primeira mão, da responsabilidade do proprietário.

Refere o artigo 89º do RJUE, sob a epígrafe “Dever de Conservação” que:

1 – As edificações devem ser objecto de obras de conservação pelo menos uma vez em cada período de oito anos, devendo o proprietário, independentemente desse prazo, realizar todas as obras necessárias à manutenção da sua segurança, salubridade e arranjo estético.
2- Sem prejuízo do disposto no número anterior, a câmara municipal pode a todo o tempo, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado, determinar a execução de obras de conservação necessárias à correcção de más condições de segurança ou de salubridade ou das obras de conservação necessárias à melhoria do arranjo estético.
3- A câmara municipal pode, oficiosamente ou a requerimento de qualquer interessado, ordenar a demolição total ou parcial das construções que ameacem ruína ou ofereçam perigo para a saúde pública e para a segurança das pessoas.
4- Os actos referidos nos números anteriores são eficazes a partir da sua notificação ao proprietário.

Por seu lado refere o artigo 91º, nº 1 do mesmo diploma legal que quando o proprietário não iniciar as obras que lhe sejam determinadas nos termos do artigo 89.º, não apresentar os elementos instrutórios no prazo fixado para o efeito, ou estes forem objeto de rejeição, ou não concluir aquelas obras dentro dos prazos que para o efeito lhe forem fixados, pode a câmara municipal tomar posse administrativa do imóvel para lhes dar execução imediata.

Conforme se afirma no Ac. do TCAS, proc. n.º 08063/11, de 24-04-2014, «Há um interesse público na boa conservação dos edifícios erigidos no Município, que justifica a competência da CMB para a intimação das obras necessárias à correcção de más condições de segurança ou de salubridade ou à melhoria do arranjo estético».

Pretende-se, além de outros fins, a protecção dos valores a segurança e da saúde pública.

O ETAF veio alargar a competência dos tribunais administrativos a todas as ações em que se discute a responsabilidade extracontratual do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público, e independentemente dessa responsabilidade emergir de uma atuação de gestão pública ou de gestão privada.

Nesse sentido, Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida que defendem a competência da jurisdição administrativa para apreciar todas as questões de responsabilidade extracontratual da administração pública, ”independentemente da questão de saber se essa responsabilidade emerge de uma atuação de gestão pública ou de atuação de gestão privada: a distinção deixa de ser relevante, para o efeito de determinar a jurisdição competente, que passa a ser, em qualquer caso, a jurisdição administrativa.” (Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, 3ª edição, Almedina, pág. 36 e ss., apud Ac. do TRC de 07.11.2017, processo 4055/16.8T8 VIS.C1).

Ora, sendo o 2º e a 3ª R. pessoas coletivas de direito público e pretendendo a autora acionar a sua responsabilidade civil extracontratual, é a jurisdição administrativa a competente para conhecer da respetiva ação. (v. Ac do STA de 26/09/2007 e Ac. do Tribunal de Conflitos de 17/06/2010; Mário Aroso de Almeida, O Novo Regime de Processo nos Tribunais Administrativos, 4ª edição, 99; Santos Serra, A Nova Justiça Administrativa e Fiscal Portuguesa, comunicação efetuada em 28 de Agosto de 2006, no Congresso Nacional e Internacional de Magistrados, VI Assembleia da Associação Ibero Americana dos Tribunais de Justiça Fiscal e Administrativa, realizada na Cidade do México; Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Almeida in Código do Processo dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados, vol. I, 59; Pedro Cruz e Silva in Breve estudo sobre a competência material dos Tribunais Administrativos e Fiscais em matéria de responsabilidade civil e de contratos, disponível in www.verbojuridico.net, apud Ac. do TRE de 11.07.2019, processo 442/18.5T8STB.E1).

A competência para conhecer das questões relativas à responsabilidade extracontratual das pessoas colectivas de direito público por omissão dos deveres impostos pelo artº 89º do RGEU recai no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, de acordo com o disposto no artº 4º, nº1, alínea f) do ETAF.

O facto da A. ter demando solidariamente pessoas de colectivas de direito público e de direito privado, não exclui ações como a presente da competência material dos referidos tribunais, atento o expressamente salvaguardado no artº 4º, nº 2 do ETAF.

Dispõe o artº 91º do CPC que o tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nelas se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa e poderá ser também competente para conhecer das questões prejudiciais, ainda que do foro da competência do tribunal criminal ou administrativo, mas a decisão do juiz competente para a ação não produzirá efeitos fora do processo em que for proferida (artº 92º, nºs 1 e 2).

Mas para que possa se verificar esta extensão de competência é necessário que o tribunal seja competente para a ação, o que no caso não é, sendo que esta atribuição resulta desde logo da factualidade alegada pela A. e não das questões suscitadas pelos RR..

A ação instaurada pela A. assenta em duas causas de pedir complexas. Relativamente à 1ª R., os factos relativos ao acidente, à sua qualidade de proprietária e o seu comportamento omissivo de não reparação do muro que ameaçava ruir, acabando por dar azo a um acidente, e, relativamente à 2º e 3ª RR. os mesmos factos relativos ao acidente e a omissão de providências urgentes para impedir o acidente. O pedido é o mesmo, por força da responsabilidade solidária que lhes é imputada (artº 497º do CC).

A autora formulou um pedido de condenação solidária de todos os RR a pagarem-lhe determinada quantia em dinheiro e respectivos juros, bem como o valor dos danos não patrimoniais. E enformou os fundamentos dessa sua pretensão também na omissão dos 2ª e 3ª RR., relativamente à conduta da 1ª R., pois que nada fizeram junto desta 1ª R. para obviar ao resultado danoso, co-envolvendo-os na produção dos mesmos danos para os quais terão concorrido em conjunto, por força das suas condutas omissivas (1ª R. omissão do dever de conservação, demais RR. por omissão do dever de zelar pela segurança pública).

Relativamente ao interveniente principal a razão de ser da sua intervenção não se funda na responsabilidade extra-contratual, mas sim na responsabilidade contratual – a celebração de um contrato de seguro entre o R. Município e a interveniente Companhia de Seguros.

Já no vigência do artº 4º do ETAF, na redacção anterior ao DL 214-G/2015, se entendia que nas ações emergentes de responsabilidade civil extracontratual de pessoa pública a correr termos nos tribunais administrativos e fiscais, (na altura apenas por acto ou omissão de gestão pública) podia ser chamada a intervir pessoa jurídica privada, para quem tivesse sido transferida a responsabilidade por contrato de seguro (cfr se defende no Acórdão do TCAN de 20.05.2016, proc.00239/12.6BECBR, onde é feita referência a outros acórdãos). A intervenção suscitada, não impede assim também, a atribuição da competência aos tribunais da jurisdição administrativa."

*3. [Comentário] Convém ter presente o disposto no art. 4.º ETAF:

1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
 
[...] f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo; [...]
 
2 - Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.

MTS