"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



02/12/2020

Jurisprudência 2020 (106)


Simulação; prova;
prova testemunhal


1. O sumário de STJ 20/2/2020 (3683/16.6T8CBR.C1.S3) é o seguinte:

I. A prova testemunhal relacionada com o acordo simulatório do preço constante da escritura pública de compra e venda é de ter como admissível, ante o disposto no artigo 394º, nº 2 do Código Civil, quando complementar ou corroborante de um elemento de prova escrito que constituía um “começo ou princípio de prova”, ou seja, que constitua um suporte documental suficientemente forte da existência da simulação invocada pelo pretenso simulador.

II. Esta exceção à regra da proibição da prova testemunhal contida no nº 2 do citado artigo 394º encontra justificação no facto de, quando há um começo de prova por escrito, que torne verossímil o facto alegado, a prova testemunhal já não ser o único meio de prova do facto e, por isso, o perigo da prova testemunhal ser eliminado em grande parte, visto a convicção do tribunal se achar já formada com base num documento.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"[...] prescreve o nº1 do art. 394º do C. Civil, que «É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores », estabelecendo o nº 2 deste mesmo artigo que « A proibição do número anterior aplica-se ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores».

De sublinhar que a proibição da prova testemunhal apenas abrange as estipulações cobertas pela força probatória dos documentos que as suportam.

Equivale isto a dizer, no que concerne aos documentos autênticos, cuja eficácia probatória plena circunscreve-se, nos termos do art. 371º , nº1 do C. Civil, aos factos neles referidos como praticados pela entidade documentadora ou por esta atestados com base nas suas perceções, que a proibição da prova testemunhal contra ou praeter scripturam operada pelo citado art. 394º, nº1, alcança as declarações de vontade reveladas pelos outorgantes, mas já não a materialidade que lhes esteja subjacente, designadamente a vontade real correspondente ou em divergência com a vontade declarada.

E, por força do nº 2 deste mesmo art. 394º, abrange também o próprio simulatório e o negócio simulado, quando invocados pelos simuladores, pelo que, em regra, os simuladores apenas poderão provar o acordo simulatório e o negócio dissimulado por outro meio de prova que não testemunhal nem por presunção judicial, já que, como observa o Prof. Vaz Serra[2], tornou-se necessário evitar que os simuladores se prevaleçam da prova testemunhal para facilmente infirmarem a eficácia do documento. 

Todavia, como decorre ainda dos ensinamentos deste mesmo autor, a proibição contida no nº 2 do citado art. 394º não veda a possibilidade de os simuladores provarem o acordo simulatório e o negócio dissimulado mediante um princípio de prova escrita contextualizada ou complementada por prova testemunhal ou por presunção judicial, pois quando há um começo de prova por escrito, que torne verossímil o facto alegado, a prova testemunhal não é já o único meio de prova do facto, justificando-se a exceção por, nestes casos, o perigo da prova testemunhal ser eliminado em grande parte, visto a convicção do tribunal se achar já formada com base num documento. 

Ora, analisando, à luz destas considerações, o caso em apreço, diremos, desde logo que, contrariamente ao afirmado pelo recorrente, não se vislumbra que o Tribunal da Relação tenha feito uma interpretação estritamente literal do estabelecido no art. 394º, nº 2 do C. Civil, e considerado, sem mais, estar vedado ao autor socorrer-se de prova testemunhal para demonstrar que o preço da venda da fração “O” , efetivamente convencionado e pago pelos compradores ao autor, foi do montante de € 114.723,00 e não de € 60.000,00, como consta da escritura pública de compra e venda.

E muito menos se vê que o Tribunal da Relação se tenha abstido de valorar os depoimentos das testemunhas JJ, LL e MM.

Com efeito, o que ressalta, com bastante clareza e evidência, da motivação da resposta dada aos factos constantes do nº 2 dos factos considerados como não provados é que o Tribunal recorrido, mesmo acolhendo o entendimento largamente dominante na doutrina e na jurisprudência, no sentido de que a norma contida no citado art. 394º, nº 2 admite a possibilidade do recurso à prova testemunhal desde que assente em base documental que constitua começo ou princípio de prova, entendeu que, no caso em apreço, a prova documental existente nos autos era insuscetível de constituir um “começo de prova escrita” da existência da alegada simulação do preço constante da escritura pública, na medida em que os documentos constantes de fls. 175v e 304, respeitantes à transferência da conta bancária 140440481, pertencente ao comprador, KK, para a conta da Ré, em 29 e 31.5.2002, das quantias de € 64.843, 73 e € 5.000,00, nem sequer permitiam ter como suficientemente forte a existência da simulação invocada pelo pretenso simulador, «já que não foi feita a prova de que tais quantias se destinassem a complementar o pagamento do preço da fracção em causa, pois que, não obstante o preço ter, aparentemente, ficado logo satisfeito em 28.5.2002, pela quantia de € 60.000,00, valor que os compradores, no mesmo acto, receberam do BCP, SA, por mútuo que este lhes concedeu, é o próprio Autor que afirma na sua alegação de recurso que tinha mais débitos para com o aludido KK, que podem explicar as subsequentes referidas transferências».

E sendo assim, a prova testemunhal também não podia funcionar como corroborante ou meio complementar de prova da invocada simulação, tanto mais que a testemunha JJ, nada de concreto e fiável soube dizer quanto à invocada simulação; a testemunha LL apenas revelou saber aquilo que o autor lhe confidenciou ser sua intenção fazer relativamente ao preço desse negócio e nenhuma destas testemunhas, nem a testemunha MM, depuseram de forma a criar no Tribunal recorrido a convicção de que o dinheiro obtido pelo autor na venda da aludida fracção “O”, ou parte dela, foi empregue para custear as obras de construção da casa de morada de família do casal formado por ele e pela ora Ré.

Daí ter concluído no sentido de que a referida prova testemunhal não permitia ao Tribunal da Relação formar uma convicção sobre a existência da simulação do preço.

Por tudo isto e porque a atividade de valoração quer dos documentos constantes de fls. 175 v. e 304, quer dos depoimentos das testemunhas LL, JJ e MM inscreve-se no âmbito da livre da prova pelo Tribunal da Relação e ainda porque, no contexto do caso presente, não se depreende que, na apreciação do ponto de facto acima em referência, o Tribunal a quo tenha infringido a norma de direito probatório material contida no art. 394º, nº 2 do C. Civil ou qualquer outra que exija certa espécie de prova para os factos em causa ou que fixe a força de determinado meio de prova, nem se descortina que a apreciação do Tribunal a quo colida com qualquer elemento concreto e específico resultante da imediação do juiz da 1.ª instância, arredada fica, nos termos do artigo 682.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, a possibilidade de formulação, por parte do STJ, de quaisquer juízos de valor acerca da livre convicção formada pelo Tribunal da Relação bem como a possibilidade de alteração dos factos fixados pela Relação.

Termos em que improcedem, neste segmento, as razões do recorrente."

[MTS]