"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



16/12/2020

Jurisprudência 2020 (115)


Execução fiscal; penhora; 
habitação própria e permanente; reclamação de créditos;
adequação formal*


1. O sumário de RE 4/6/2020 (641/19.2T8PTG-A.E1) é o seguinte:

O princípio de adequação formal previsto no artigo 547.º do CPC não permite ao juiz deixar de ordenar a sustação da execução prevista no artigo 794.º do CPC, dispensando o exequente de reclamar o seu crédito na instância executiva fiscal onde se verificou a primeira penhora e de ordenar a notificação do primeiro exequente para reclamar o seu crédito na execução judicial sob o pretexto de adequação da tramitação processual às especificidades do caso.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"A apelante insurge-se contra a decisão do tribunal a quo que indeferiu o pedido por aquela apresentado no sentido de ser dispensada de ir reclamar o seu crédito hipotecário ao processo de execução fiscal onde ocorreu penhora mais antiga sobre o prédio melhor identificado nos autos, evitando a sustação dos presentes autos de execução prevista no art. 794.º, n.º 1, do CPC, ordenando-se, ao invés, a notificação da primeira exequente para reclamar o seu crédito exequendo na presente ação.

Sustenta a recorrente que o princípio de adequação formal consagrado no art. 547.º do CPC permitiria ao tribunal a quo ter adaptado o regime legal previsto no art. 794.º, n.º 1, do CPC, aplicando-o de «forma inversa», isto é, dispensando a apelante de reclamar créditos na execução fiscal e ordenando a notificação do IGFSS para, querendo, reclamar créditos nos presentes autos.

Para fundar a sua posição, a apelante afirma que a execução fiscal está pendente há mais de 7 anos «sem que alguma conclusão esteja à vista» pois encontra-se parada por inércia do exequente ainda que em cumprimento de um plano de pagamentos nunca cumprido e «não apresenta perspetivas de qualquer efetiva obtenção de pagamento» ou «sequer de novos desenvolvimentos processuais» e que ela-exequente não pode «pugnar pela efetivação e tomada de diligências» porque o processo onde foi realizada a penhora mais antiga é um processo de execução fiscal. Conclui, afirmando que só a solução por si proposta lhe permitirá, em tempo útil e em respeito da garantia constitucional do n.º 4 do art. 20.º da CR, obter o pagamento das quantias exequendas.

Apreciando.

A apelante impugna a decisão recorrida na perspetiva de uma (alegada) violação do princípio de adequação formal consagrado no art. 547.º do Código de Processo Civil.

Resulta dos autos sobre o imóvel penhorado nos mesmos pende uma penhora mais antiga, realizada no âmbito de um processo de execução fiscal, para satisfação de um crédito do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, IP e no qual foi realizado um acordo de pagamento da quantia exequenda em prestações.

A recorrente defende que o tribunal a quo, fazendo aplicação do princípio da adequação formal consagrado no art. 547.º do CPC, deveria ter dispensado a sustação da execução relativamente ao imóvel penhorado nos autos e deveria ter dispensado a exequente/apelante de ir reclamar o seu crédito no processo de execução fiscal, «determinando que, em sentido inverso ao legalmente imposto, se notificasse o IGFSS para, querendo, reclamar créditos nos presentes autos».

Dispõe o art. 547.º do CPC, sob a epígrafe Adequação formal, que «O juiz deve adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa e adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam atingir, assegurando um processo equitativo».

O princípio da adequação formal – uma emanação do princípio da gestão processual previsto no art. 6.º do mesmo diploma legal – permite agilizar e simplificar o processo de forma a alcançar a celeridade processual e adequar a tramitação processual às especificidades do caso.

Trata-se de um princípio «destinado a introduzir alguma flexibilidade na tramitação ou marcha do processo, permitindo adequá-la integralmente a possíveis especificidades ou peculiaridades da relação controvertida ou à cumulação de vários objetos processuais a que correspondam formas procedimentais diversas, visando ultrapassar – através do estabelecimento de uma tramitação “sucedânea” – possíveis inadequações ou desadaptações das formas legal e abstratamente instituídas, no âmbito de qualquer processo. Acentua-se com a consagração deste princípio – que se substitui ao do estrito e rígido respeito pela legalidade das formas processuais – o caráter funcional ou instrumental do processamento ou tramitação, que não pode ser perspetivado como encerrando um fim em si mesmo, mas antes entendido como visando a realização de objetivos essenciais: a justa composição do litígio, alcançada com respeito integral pelos princípios essenciais estruturantes do processo civil, nomeadamente os da igualdade das partes e do contraditório.» - Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª Edição, 2004, Almedina, p. 261 [...].

Como assinalam Paulo Ramos Faria/Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Código de Processo Civil, 2014, 2.ª edição, Almedina, pp. 455 e ss., o princípio da adequação formal tem sempre em vista uma perspetiva de eficiência processual traduzida na ideia de realização da justiça material com um menor custo de tempo e de meios, implicando um dever de adoção da forma processual mais adequada e um dever de adaptação do conteúdo e da forma dos atos processuais ao seu fim. Deveres que estão, ambos, ao serviço de um processo equitativo, o qual constitui não apenas um limite ao princípio da adequação formal mas também a sua causa.

Importa, contudo, sublinhar que apesar de o princípio da adequação formal permitir ao juiz proceder a adaptações da forma legal ao caso concreto, considerando as especificidades da causa, ele não o legitima a preterir atos da forma legal que sejam imperativos ou a derrogar normas imperativas.

No caso concreto, a norma legal que a apelante pretende ver aplicada «de forma inversa» ao abrigo do referido princípio é, como se referiu, a constante do art. 794.º, n.º 1, do CPC que, sob a epígrafe 

Pluralidade de execuções sobre os mesmos bens, dispõe o seguinte:

«Pendendo mais de uma execução sobre os mesmos bens, o agente de execução susta quanto a estes a execução em que a penhora tiver sido posterior, podendo o exequente reclamar o respetivo crédito no processo em que a penhora seja mais antiga» [...].

O normativo em causa é igualmente aplicável quando a penhora sobre os mesmos bens ocorre numa execução judicial e numa execução fiscal, sendo esta a mais antiga. Nesse circunstancialismo, o credor pode reclamar o seu crédito na execução fiscal nos mesmos termos em que o poderia fazer numa execução judicial.

Com o preceito acima transcrito pretende-se não permitir a adjudicação ou a venda dos mesmos bens em processos diferentes, uma vez que a liquidação deve ser única e deve operar-se no processo em que os bens foram penhorados em primeiro lugar - Alberto dos Reis, Processo de Execução, volume 2.º, reimpressão, Coimbra Editora, 1985, p. 287. Com efeito, autorizar o prosseguimento de mais que uma execução sobre o mesmo bem não iria permitir atender de forma ponderada e em simultâneo aos direitos dos diversos credores, possibilitando, até, a derrogação da preferência prevista no art. 822.º do Código Civil, preceito que consagra a prevalência da penhora mais antiga sobre as posteriores.

Dito isto, a nosso ver, o princípio de adequação formal invocado pela apelante não permite ao juiz “inverter” o regime aplicável do art. 794.º do CPC no sentido de dispensar o exequente de reclamar o seu crédito na instância executiva fiscal onde se verificou a primeira penhora, ordenando, simultaneamente, a notificação do primeiro exequente para reclamar o seu crédito na presente execução. E não se diga que a notificação do primeiro exequente para reclamar o seu crédito na segunda execução obstaria a que fosse postergado o regime legal constante do art. 822.º do Código Civil porquanto a lei não obriga o primeiro exequente a reclamar o seu crédito na execução onde o bem sobre o qual tem uma garantia real (penhora) foi penhorado em segundo lugar; logo, não reclamando ele o seu crédito naquela (segunda) execução, a não sustação da instância executiva onde o bem foi penhorado uma segunda vez seria suscetível de gerar a preterição da preferência prevista no art. 822.º do Código Civil.

Não se olvida que o regime de execução fiscal apresenta algumas especificidades que colocam o exequente civil cuja penhora incida sobre os mesmos bens em desvantagem, designadamente quando a execução fiscal é sustada por motivo de acordo de pagamento da dívida em prestações já que, neste caso, o credor que tenha garantia sobre os bens não se pode opor a tal sustação, restando-lhe aguardar o desfecho de tal acordo. Porém, o Tribunal Constitucional já se pronunciou no sentido do regime previsto no anterior 871.º do CPC (antecessor do atual art. 794.º do CPC) não ser inconstitucional, concretamente nos acórdãos n.ºs 51/99, de 19.01, 281/99, de 05.05 e 283/99, de 05.05, publicados, respetivamente, no DR, II Série de 05.04.99, 01.03.2000 e 14.07.99, resultando desta jurisprudência que a interpretação daquele normativo no sentido de ser sustada a execução judicial em que se penhorem bens já anteriormente penhorados numa execução fiscal não é inconstitucional, não só por não haver nenhuma diminuição da garantia do credor à satisfação do seu crédito – garantia que é abrangida pelo direito de propriedade consagrado no art. 62.º, n.º 1, da CR – mas também por essa satisfação não se tornar mais difícil ou onerosa, em desrespeito do art. 18.º, n.º 2, da CRP. Com efeito, assinala-se no Acórdão n.º 51/99 que «o artigo 871.º do CPC impõe a sustação da execução nos casos em que, efetuada a penhora ordenada nessa execução, se verificar a existência de penhora(s) anterior(es) à ordenada/efetuada nessa execução, abrindo-se prazo para o credor reclamar o crédito na execução onde a penhora foi registada com anterioridade. Mas refira-se que a natureza do crédito, ou melhor, a garantia do crédito decorrente da penhora mantém-se, em nada a afetando o regime previsto no art. 871.º do CPC. Aliás essa garantia da penhora é determinante quer no novo prazo para reclamação de créditos que é facultado ao credor, quer na preferência a efetuar em sede de graduação de créditos. Não pode dizer-se que, por força do mecanismo legal previsto no normativo em apreço, a posição do credor saia prejudicada ou seja para ele mais difícil a cobrança do seu crédito, tanto mais que a dívida não é estática, procedendo-se à contagem dos respetivos juros, que obviamente revertem a favor do credor. Por outro lado, o credor pode sempre impulsionar a execução sustada ao abrigo do artigo 871.º do CPC, nomeando à penhora outros bens do devedor, se os houver. Podendo, igualmente, acordar com o devedor o pagamento da dívida exequenda em prestações, nos termos do artigo 882.º do Código de Processo Civil […]. Essencialmente preservada a garantia do crédito, não pode dizer-se que as vicissitudes da execução fiscal – a que o exequente comum se sujeita – seja, de tal forma gravosas que, num quadro de necessária ponderação do interesse público em jogo naquela execução, afetem de forma desproporcionada tal garantia.»

Acresce que nos termos do art. 200.º, n.º 1, do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), em caso de acordo de pagamento em prestações, a falta de pagamento sucessivo de três prestações, ou de seis interpoladas, importa o vencimento das seguintes se, no prazo de 30 dias a contar da notificação para o efeito, o executado não proceder ao pagamento das prestações incumpridas, prosseguindo o processo de execução fiscal os seus termos. Pelo que, e ao contrário do que sustenta a apelante (cfr. conclusão n.º 12 das alegações de recurso), a falta de pagamento das prestações acordadas levará necessariamente a novos desenvolvimentos processuais com vista à satisfação da quantia exequenda e dos créditos que ali vierem a ser reclamados, não se verificando pois uma inviabilização definitiva da satisfação do crédito da ora apelante no âmbito do processo de execução fiscal. Dito de outra forma, mantém-se a possibilidade de o processo de execução fiscal evoluir para a fase da venda do bem ali penhorado e, consequentemente, a possibilidade de o aqui exequente ali se poder fazer pagar pelo produto da venda do imóvel penhorado, sendo, portanto, completamente justificada a sustação da execução prevista no artigo 794.º, n.º 1, do CPC.

Não merece, pois, censura a decisão do juiz a quo ao indeferir o pedido de não sustação da execução e de dispensa da exequente de reclamar os seus créditos na primeira execução."

*3. [Comentário] a) Importa começar por uma questão prévia. Tudo a leva a crer que, salvo a devida consideração, a 1.ª instância e a RE não deram a devida atenção a um aspecto essencial do caso sub iudice. Segundo parece decorrer do acórdão, na execução fiscal tinha sido celebrado um acordo para pagamento em prestações, pelo que essa execução estará, muito provavelmente, suspensa (art. 198.º, n.º 3, CPPT). 

Ora, numa execução (fiscal ou civil) que se encontra suspensa não é possível proceder à reclamação de créditos. Isto seria suficiente para evitar qualquer discussão sobre a necessidade de se proceder a uma adequação formal na execução civil, porque, não podendo reclamar-se o crédito exequendo na execução fiscal suspensa, a execução civil teria de continuar.

 b) Admita-se, no entanto, que a execução fiscal não se encontra suspensa. Nesta hipótese, a RE decidiu bem ou mal? "Maioritariamente" mal, mas "minoritariamente" bem...

O que verdadeiramente estava em causa não era analisar se o princípio da adequação formal poderia ou deveria ter sido utilizado na execução civil de molde a evitar a reclamação do crédito exequendo na execução fiscal, mas antes qual a orientação que deve ser seguida quando nesta execução, por força do disposto no art. 244.º, n.º 2, CPPT, não se possa vir a proceder à venda do bem penhorado nas duas execuções pela circunstância de este ser a habitação própria e permanente do executado.

Embora não seja possível emitir nenhum juízo peremptório, é, pelo menos, possível afirmar que não há a certeza de que a RE tenha realmente visto o problema por este prisma. Um indício disto mesmo é a circunstância de o art. 244.º, n.º 2, CPPT nunca ser referido pela RE na fundamentação do acórdão e de nesta se entender que a aplicação do disposto no art. 200.º CPPT pode levar à satisfação do crédito reclamado numa execução fiscal em que está penhorada a habitação própria e permanente do devedor.

b) Perante a penhora da habitação própria e permanente do executado em ambas as execuções, o que deve então acontecer na execução civil, atento o disposto no art. 244.º, n.º 2, CPPT?

Segundo uma posição minoritária (que se subscreveu recentemente no comentário a Jurisprudência (91)), o credor da execução civil pode reclamar o seu crédito na execução fiscal e obter nesta a satisfação do seu crédito. Nesta perspectiva, não há efectivamente qualquer razão para proceder à adequação formal na execução civil. Tudo pode ocorrer de forma "normal": suspensão da execução civil, reclamação do crédito na execução fiscal e satisfação do crédito reclamado nesta execução.

O problema reside em que a posição maioritária na matéria entende que o credor reclamante não pode obter a satisfação do seu crédito na execução fiscal (por nesta não poder ser vendida a habitação própria e permanente do executado) e que, por isso, nada impede a continuação da execução civil. É o resulta com total clareza do sumário de RL 5/11/2020 (3911/18.3T8ALM.A.L1-6):

I - A existência de penhora sobre imóvel efectuada em execução fiscal e registada a favor da Autoridade Tributária, com registo anterior à efectuada numa execução comum, não obsta ao prosseguimento desta execução com a venda desse bem, quando na execução fiscal tal venda não pode ocorrer, por força do disposto no n.º 2 do art.º 244.º do Código de Procedimento e do Processo Tributário (CPPT), por o imóvel constituir habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar.
 
II - Este regime apenas proíbe a venda do imóvel afecto à habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar no âmbito da execução fiscal.
 
III - Na situação referida no ponto I, não obsta ao prosseguimento da execução comum o disposto no n.º 1 do artigo 794.º do Código de Processo Civil já que o mesmo pressupõe que o processo onde ocorreu a primeira penhora se encontre a correr os seus termos e pretende evitar a execução simultânea do mesmo bem, o que não ocorre no caso em análise.

IV - Estando vedada a venda do imóvel na execução fiscal suspensa e não tendo aplicação ao caso o disposto no n.º 1 do artigo 794.º do Código de Processo Civil, deve a mesma ter lugar na execução comum.

V - Impondo-se, neste caso, que seja promovida a citação da Autoridade Tributária para reclamar o seu crédito (art.º 786.º, n.º 1, alínea b), do CPC) o que a suceder determinará que seja oportunamente graduado no lugar que lhe competir (art.º 791.º do CPC).

Por esta perspectiva maioritária, a 1.ª instância e a RE, ao recusarem a adequação formal sugerida pelo exequente, não decidiram bem. Pela perspectiva minoritária acima referida, a solução acaba por ser correcta, apesar de o problema que importava resolver nem sequer ter sido suscitado e, por isso, não ter sido enfrentado.

c) Passando para o caso concreto, só resta ao exequente -- que, neste momento, não tem outra alternativa que não seja a de reclamar o seu crédito na execução fiscal -- procurar obter nesta a satisfação do seu crédito. O problema é que, se esta execução está suspensa (como parece estar), não se vê como.

MTS