Providência cautelar:
coligação passiva; inversão do contencioso
1. O sumário de RG 28/5/2020 (3050/19.0T8GMR-D.G1) é o seguinte:
I. Num procedimento cautelar de restituição provisória de posse com pluralidade de partes do lado passivo, em que o requerente alega um conjunto de factos violadores da sua posse que imputa a alguns dos requeridos, e outro conjunto de factos igualmente violadores da sua posse que imputa a outros requeridos, estamos no lado passivo da relação processual perante a figura da coligação, e não litisconsórcio.
II. A coligação significa que apesar de estarmos perante um só processo, não estamos perante uma única acção, mas sim perante várias acções, todas independentes umas das outras, mas que por razões práticas, de economia processual, foram todas tramitadas no mesmo processo.
III. Não existe nenhum impedimento em que, num caso de coligação do lado passivo, se decrete a inversão do contencioso em relação a um dos requeridos, e não em relação a outro ou outros.
IV. Tendo sido decretada a inversão do contencioso após ter sido ordenada a restituição provisória de posse, e tendo sido instaurada, pelos requeridos, acção declarativa para discutir a titularidade do direito perfunctoriamente atribuído nos autos de procedimento cautelar, nada impede que seja ordenada e mantida a apensação dos autos de procedimento cautelar ao processo onde corre a acção declarativa, pois, mesmo não havendo qualquer efeito jurídico daí decorrente, há pelo menos vantagens práticas visíveis, e não ofende os direitos de nenhuma das partes.
2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:
"Como resulta das alegações das recorrentes, tudo está em saber qual a figura jurídica que está na base da pluralidade de partes nestes autos.
Vejamos: quando as requerentes vieram pedir ao Tribunal que fossem restituídas provisoriamente à sua posse sobre a unidade agrícola denominada “Quinta ...”, constituída pelos diversos prédios melhor identificados no art. 2º do requerimento inicial, começaram por alegar que tal Quinta integra a herança aberta por morte de seu pai, do qual as requerentes são as únicas e universais herdeiras, tendo a 1ª requerente sido nomeada cabeça-de-casal daquela herança aberta por óbito de seu pai. Alegaram de seguida que a referida Quinta estava a ser ocupada pela “X”, que, no local, ocupa um pavilhão ou armazém, onde desenvolve a actividade de avicultura. Mais alegaram que a mesma Quinta é ainda ocupada pelos 1º e 2º requeridos, que dela se intitulam proprietários e aí permanecem contra a vontade das requerentes e sem qualquer título que o legitime. Acrescentam que os requeridos recusam-se a entregar a dita Quinta às requerentes, sendo certo que “estroncaram” as fechaduras colocadas pela 1ª requerente nos portões da mesma Quinta e, no seu interior, com tom agressivo e amedrontando-a, expulsaram-na da mesma Quinta, estando actualmente as requerentes impedidas de exercer livremente o seu direito de propriedade sobre a referida Quinta.
Mas temos de descer ainda mais ao concreto. Para isso, vamos dar um salto lógico e também cronológico até à matéria de facto dada como provada no segundo acórdão desta Relação, datado de 10.10.2019.
Resultou com efeito provado, e resumidamente, para o que agora interessa, que em 13 de Março de 2018, a 1ª requerente dirigiu-se à Quinta ... e deparou-se com os vários portões da Quinta fechados e sem que as respectivas fechaduras abrissem com as chaves que as requerentes tinham. No interior da quinta, a 1ª requerente deparou-se com um senhor que se apresentou como sendo F. F. que disse aí explorar um aviário no armazém, cuja existência até então desconhecia, para a empresa X. As requerentes mudaram as fechaduras dos portões de acesso à quinta. Após, a 1ª requerente foi surpreendida pela entrada e permanência na Quinta do requerido M. C. e de um filho deste que tinham entrado por ter estroncado a fechadura colocada pela 1.ª requerente minutos atrás. Aquele requerido tinha ainda solicitado a comparência da autoridade policial para expulsar a 1.ª requerente dali, alegando que a sua mulher – a requerida M. G. – e ele próprio eram os proprietários da Quinta. E ainda se provou que o legal representante da requerida X, Lda e o requerido M. C. fizeram entre si um acordo de arrendamento, mediante o qual este cedeu o gozo dos pavilhões existentes na referida Quinta à Requerida X, onde esta desenvolve a actividade de criação de aves.
Finalmente, sabemos ainda que os requeridos M. C. e M. G. intentaram contra as requerentes e a herança de falecido J. F. uma acção declarativa na qual pedem que se declare que eles adquiriram por acessão industrial imobiliária o direito de propriedade sobre a referida Quinta, contra pagamento a efectuar pelos autores, a quem venha a ser judicialmente reconhecido o direito de propriedade sobre os imóveis do montante de € 399.038,00 em prazo a determinar pelo Tribunal.
Ou seja, estamos perante dois litígios distintos.
Quando as requerentes intentaram o presente procedimento cautelar, submeteram à decisão do Tribunal: a) um primeiro litígio, entre elas e os requeridos M. C. e M. G.; b) um segundo litígio, entre elas e a requerida X, Lda.
São dois litígios totalmente diferentes. O litígio que opõe as Requerentes à X, Lda, é localizado aos armazéns que esta sociedade ocupa na dita Quinta, a coberto de um contrato de arrendamento. Já o litígio que opõe as requerentes aos requeridos M. C. e M. G. se afigura como um litígio global, pois estes arrogam-se o direito de propriedade sobre a totalidade da Quinta.
Dizendo de outra forma: apesar de o pedido formulado pelas Requerentes ser o mesmo para todos os Requeridos, já as causas de pedir são diversas num caso e no outro. Considerando que estamos perante um meio de defesa da posse, a causa de pedir no litígio que opõe as requerentes aos requeridos M. C. e M. G. abrange os factos concretos praticados por estes que ofenderam a posse daquelas. E, similarmente, a causa de pedir no litígio que opõe as requerentes à requerida X, Lda, abrange os factos concretos praticados por esta que ofenderam a posse daquelas.
Donde, é perfeitamente possível julgar um dos litígios de uma forma, e julgar o outro de forma diferente, tudo dependendo das contingências probatórias -e não só- de cada caso. São dois litígios que por razões de conveniência prática e de economia processual foram trazidos a Juízo no mesmo processo, e aí foram tramitados em conjunto, mas que podiam igualmente e com a mesma facilidade ter sido deduzidos em dois processos judiciais distintos.
O que significa que nos presentes autos a pluralidade de partes assume a figura da coligação, e não do litisconsórcio, seja voluntário, seja necessário.
Existe litisconsórcio quando a relação material controvertida respeita a várias pessoas (art. 32º,1 CPC). Esse litisconsórcio pode ser voluntário, caso em que a acção respectiva pode ser proposta por todos ou contra todos os interessados, mas também podem ser propostas várias acções, ou pode ser necessário, o que sucede nos casos em que a lei ou o negócio o exijam expressamente, ou quando a própria natureza da relação jurídica controvertida exigir a intervenção dos vários interessados para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal (art. 33º,1,2 CPC).
Sendo caso de litisconsórcio necessário, há uma única acção com pluralidade de sujeitos; no litisconsórcio voluntário, e por maioria de razão na coligação, há uma simples acumulação de acções, conservando cada litigante uma posição de independência em relação aos seus compartes (art. 35º CPC).
No caso dos autos, como já vimos, a reunião no mesmo processo da requerida X, por um lado, e dos requeridos M. G. e M. C., por outro, configura uma mera coligação, ou seja, estamos perante duas acções, mas tramitadas no mesmo processo [...].
Estamos pois em condições de concluir que assiste total razão às recorrentes, quando dizem que “o casal M. G. e M. C. sendo, por um lado, litisconsortes necessários entre si, não é, por outro lado, litisconsorte com a X, Lda., sendo antes partes coligadas, pelo que a conduta e a posição processual de uns nada tem que ver com a conduta e a posição processual do outro, como decorre do artigo 634.º do CPC”.
Igualmente lhes assiste razão quando afirmam que “nunca foi posta em causa, nem pelos próprios Requeridos M. G. e M. C., nem pelo Tribunal que a decisão de decretamento da providência cautelar estava tomada quanto a estes com força de caso julgado e, bem assim, com inversão do contencioso”.
E, para não nos alongarmos desnecessariamente, podemos resumir dizendo que assiste integral razão aos recorrentes, quanto ao que afirmam nas suas conclusões de recurso.
Assim é que o despacho recorrido assenta em pressupostos falsos: a decisão que inverteu o contencioso (no litígio entre as requerentes e os requeridos M. G. e M. C.) não foi revogada por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães; a nova decisão da 1ª instância, na sequência do recurso que levou à prolação daquele acórdão, apenas apreciou o litígio entre as requerentes e a requerida X, Lda; não é correcto afirmar peremptoriamente que “não poderá entender-se, nos mesmo autos, que foi invertido o contencioso relativamente a uns requeridos e declinado em relação a outros – a decisão deverá ser unitária”, porque pode ser correcto ou pode não o ser, tudo dependendo de estarmos perante uma situação de litisconsórcio necessário, ou perante uma mera coligação. No caso dos autos, em que estamos perante uma coligação entre o casal S. e a X, Lda, pode ser declarada a inversão do contencioso em relação e um e não em relação ao outro, porque estamos perante duas acções independentes, que apenas por razões de eficiência e economia processual são tramitadas no mesmo processo.
Estamos pois em condições de concluir que nos presentes autos de procedimento cautelar, no litígio que opõe as requerentes aos requeridos M. G. e M. C., foi decretada a imediata restituição da posse às requerentes dos prédios melhor identificados no art. 2º do requerimento inicial, tendo sido igualmente decretada quanto a eles a inversão do contencioso. Decisão que transitou em julgado."
[MTS]