"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



18/12/2020

Jurisprudência 2020 (117)


Recurso de revista;
oposição de julgados; ónus de alegação


1. O sumário de STJ 5/2/2020 (17.18.9YLPRT.A.P1.S1) é o seguinte:

I - Em regra, não é admissível recurso de revista de acórdão da Relação que confirme o despacho do juiz de 1.ª instância que não admita o recurso de apelação.

II - Exceptua-se os casos em que esteja preenchida alguma das previsões excepcionais do art. 629.º, n.º 2, do CPC.

III - A referência, nas conclusões ou na motivação do recurso de revista, a um acórdão de um tribunal da Relação ou do STJ no sentido da solução sustentada pelo recorrente não é, só por si, suficiente para que se considere invocada a contradição jurisprudencial prevista no art. 629.º, n.º 2, al. d), do CPC.


2. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"27. [...] há-de determinar-se se o recurso devia ter sido admitido de acordo com o art 5.º, n.º 3, e com o art. 6.º, em ligação com o art. 629.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil.

28. Em desvio à regra do art. 671.º, n.º 1, é admissível recurso de revista de acórdão da Relação que confirme o despacho do juiz de 1.ª instância que não admita o recurso de apelação, desde que esteja preenchida alguma das previsões excepcionais do art. 629.º, n.º 2.

29. Entre as previsões excepcionais do art. 629.º, n.º 2, está a previsão da alínea d): 

“[…] é sempre admissível recurso [d]o acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme” [...].

30. O problema está em que a Ré, agora Reclamante, Bela Star — Pensão Residencial, Lda., não indicou o art. 629.º, n.º 2, alínea d), como fundamento específico do recurso.

31. O art. 637.º, n.º 2, do Código de Processo Civil é do seguinte teor:

O requerimento de interposição do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade; quando este se traduza na invocação de um conflito jurisprudencial que se pretende ver resolvido, o recorrente junta obrigatoriamente, sob pena de imediata rejeição, cópia, ainda que não certificada, do acórdão fundamento.

O ónus de indicação do fundamento específico da recorribilidade deve ser cumprido em todos os casos em que o recorrente pretenda que o recurso seja admitido ao abrigo de uma norma excepcional — p. ex., do art. 629.º, alínea d), do Código de Processo Civil [...].

32. A Ré, agora Reclamante, alega que a omissão do fundamento específico de recorribilidade deveria ter sido oficiosamente suprida pelo juiz, de acordo com o art. 5.º, n.º 3, e com o art. 6.º do Código de Processo Civil. O art. 5.º, n.º 3, enuncia o princípio de que “[o] juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” e o art. 6.º o princípio de que o juiz tem o poder-dever de gestão processual:

1. — Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adoptando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.

2. — O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de acto que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.


33. Os dois artigos citados são insuficientes para constituir o juiz no dever de suprir, ou no dever de convidar a Recorrente / Reclamante a suprir, a omissão do fundamento específico da recorribilidade.

34. Como se diz, p. ex., no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Setembro de 2017 — processo n.º 1029/12.1TVLSB-A.L1.S1 [...] —,

“VI. — A mera citação e referência a jurisprudência variada nas alegações de revista, no sentido e em apoio da solução que a recorrente defende e pretende ver reconhecida pelo tribunal, não se confunde com a invocação do fundamento específico da revista respeitante a conflito jurisprudencial evidenciado pela contradição ou oposição entre o acórdão recorrido e outro acórdão (da Relação ou do STJ).

VII. — Não é por se citarem vários acórdãos, sufragando a mesma solução de determinada questão de direito que, só por si, se invoca a contradição de julgados”.

35. A Ré, agora Reclamante, Bela Star — Pensão Residencial, Lda., não indicou o art. 629.º, n.º 2, alínea d), como fundamento específico do recurso nem nas conclusões da sua alegação, nem na reclamação deduzida contra o despacho da Exma. Senhora Desembargadora do Tribunal da Relação do Porto, ao abrigo do art. 643.º do Código de Processo Civil. Em consequência, o despacho reclamado não podia ter admitido o recurso — como não admitiu. 

36. Em conclusão, deverá dizer-se que o recurso não pode ser admitido de acordo com o art 5.º, n.º 3, e com o art. 6.º, em ligação com o art. 629.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil.

37. Finalmente, esclarecer-se-á que o ónus de o recorrente indicar o fundamento específico de recorribilidade é compatível com o art. 20.º da Constituição da República Portuguesa.

38. O Tribunal Constitucional e o Supremo Tribunal de Justiça têm chamado constantemente a atenção para que “o legislador dispõe de ampla margem de conformação do regime de recursos” [...] e para que “a Constituição não impõe que o direito de acesso aos tribunais, em matéria cível, comporte um triplo ou, sequer, um duplo grau de jurisdição, apenas estando vedado ao legislador ordinário uma redução intolerável ou arbitrária do conteúdo do direito ao recurso de actos jurisdicionais” [...]. Ora a conformação legislativa do direito de recurso, em termos de colocar a cargo do recorrente o ónus de indicar o fundamento específico da recorribilidade, não é nem uma redução arbitrária, nem uma redução intolerável [...]."

MTS