"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



26/09/2025

Jurisprudência 2025 (1)


Propositura de acção; gestão de negócios;
incidente de habilitação*


1. O sumário de RL 9/1/2025 (6473/22.3T8ALM.L2-6) é o seguinte:

I – A distinção entre a gestão representativa e a não representativa reside na actividade de gestão e na esfera jurídica onde o efeito dessa gestão de imediato se produz.

II  Na gestão não representativa a actividade de gestão produz efeito na esfera jurídica do gestor.

III  O recurso a juízo para acção de preferência é a actividade de gestão (do negócio, isto é, do interesse em efectivar o direito de preferência que não foi concedido e que se afirma como potestativo nas esferas jurídicas do vendedor e dos compradores) que é desenvolvida pelo Autor.

IV  Quando a gestão passa pela propositura de uma acção judicial em que o negócio só pode resolver-se a favor directo do dono do negócio, não estamos perante gestão de negócios não representativa.

V – Agindo o Autor em gestão de negócios representativa, sem poderes, por força do disposto no artigo 268º do Código Civil, mostra-se necessária a ratificação daquele que o Autor representa.

VI – Tendo a mãe do Autor falecido na pendência da acção sem que tenha ratificado a propositura da acção.

VII  Deixando a sua falecida mãe dois sucessores, não pode operar apenas a habilitação de um deles, que no caso seria apenas o Autor.

VIII – O incidente de habilitação de herdeiros visa declarar os sucessores da falecida como habilitados para, em nome desta, prosseguirem a acção. Opondo-se a Ré à pretensão do Autor/Recorrente com a presente acção, é manifesto que esta jamais poderá considerar-se como habilitada para, juntamente com o Recorrente/Autor prosseguir os termos da acção, nomeadamente, ratificando os actos praticados pelo Autor no âmbito da gestão de negócios.

IX  A Ré não pode ocupar a posição de Ré e ao mesmo tempo a de Autora (decorrente da habilitação que decorreria do facto de ser sucessora da falecida sua mãe).

 Com o óbito da mãe do Autor na pendência da presente acção, passamos a ter uma herança indivisa, pelo que os herdeiros não têm qualquer direito próprio a qualquer dos bens que a integram, motivo pelo qual os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros, nos termos prescritos no artigo 2091º, nº 1 do Código Civil.

XI  A ratificação a ter lugar na pendência da acção teria de ser efectuada por todos os herdeiros, ou seja, pelo Autor e Ré, uma vez que o direito de preferência a existir integra o acervo hereditário da falecida.

XII  Partindo do princípio que o direito de preferência pertenceria à herança e não aos herdeiros, a ratificação da gestão de negócios exercida através da presente acção também teria de ser efectivada por todos os herdeiros, o que é manifestamente impossível atenta a posição da Ré que, ao lado do Autor, são os herdeiros da falecida.

XIII  Face à impossibilidade de ratificação do acto de propositura da presente acção judicial pela alegada dona do negócio na pendência da acção, ou pelos seus herdeiros, a presente acção não poderá produzir os seus efeitos por falta de ratificação, julga-se a presente acção extinta por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Recorrendo, alega o Autor que o Tribunal de 1ª Instância considerou erradamente que a preferência não era transmissível por morte. Tendo em consideração que o direito de preferência só se radica efectivamente na esfera jurídica do seu titular (preferente) quando se concretiza a alienação da coisa, o facto de a alienação ter ocorrido em momento anterior ao óbito da sua titular importou que o direito de preferência à data do óbito já se encontrava na esfera jurídica da preferente, integrando assim o seu acervo hereditário. Conclui o Recorrente que o direito de preferência já existia no património da preferente falecida e, por isso, é um bem constitutivo da sua herança e transmissível para os seus herdeiros.

Não acompanhamos a posição defendida pelo Recorrente/Autor.

Conforme se alcança quer do Acórdão já proferido no âmbito dos presentes autos, quer dos próprios autos, o Autor intentou a presente acção estando em gestão de negócios em nome da mãe.

Defende o referido Acórdão (datado de 09 de Novembro de 2023) que “(…) Embora o Autor não tenha referido estar em gestão de negócios em nome da mãe, deve entender-se que o está.

Vejamos porquê:

Como nos diz Mário Júlio de Almeida Costa in Direito das Obrigações, 12ª edição, Almedina, p.479, “Observa-se, apenas, que o gestor, interferindo em assuntos alheios, pode agir em nome do respectivo dono ou em nome próprio. Teremos assim, gestão representativa ou gestão não representativa a que se refere o art.º 471º. No primeiro caso, verifica-se uma situação de representação sem poderes: as relações entre o gestor e o dono do negócio são reguladas pelos princípios da gestão, e as relações entre o dono do negócio e o terceiro pelo preceituado no art.º 268º. À hipótese de gestão não representativa, declaram-se extensíveis, na parte aplicável, as disposições dos artigos 1180º a 1184º, respeitantes ao mandato sem representação”.

Mais adiante, na mesma obra, e versando sobre aprovação e ratificação, refere-se (p- 487): “Se o gestor actua em nome próprio, o que corresponde a tratar-se de gestão não representativa, aplicam-se as disposições sobre o mandato sem representação (art.º 471º e 1180º a 1184º). Os direitos e obrigações decorrentes do negócio produzem-se imediatamente com referência ao gestor. Portanto, uma vez aprovada a gestão, haverá que transferi-los para a esfera jurídica do “dominus”, (…) Ao passo a ratificação se circunscreve a actos jurídicos e visa as relações entre o dono de negócio e terceiros, conferindo uma legitimidade superveniente à actuação do gestor”.

Destes excertos resulta que o aspecto essencial da distinção entre a gestão representativa e a não representativa não é o nome, mas a actividade de gestão e por via dela, o lugar, ou mais claramente, a esfera jurídica onde o efeito dessa gestão de imediato se produz. Na gestão não representativa, este lugar é a esfera jurídica do gestor.

O recurso a juízo para acção de preferência é a actividade de gestão (do negócio, isto é, do interesse em efectivar o direito de preferência que não foi concedido e que se afirma como potestativo nas esferas jurídicas do vendedor e dos compradores) que concretamente é desenvolvida por BB.

A petição inicial corresponde a uma declaração de vontade. Assim, a primeira actividade que convoca ao tribunal é a da sua interpretação, o que como se sabe se faz de acordo com a teoria da impressão do destinatário constante do artigo 236º do Código Civil.

Se começarmos pelo fim da petição – o pedido – vemos BB a pedir o resultado do exercício do direito de preferência para sua mãe, não para ele. Se formos ao meio, à causa de pedir, BB alega os factos dos quais deriva o direito de preferência da mãe na aquisição da fracção a ela arrendada, nos quais ele não tem qualquer participação.

Então, quando chegamos ao princípio, “BB, (…) na qualidade de Gestor de Negócios de AA, (…)”, não temos, é certo “AA, aqui representada sem poderes pelo seu gestor de negócios BB”, nem temos “BB, em nome de sua mãe AA”, mas não podemos ler diversamente. É que, se dizer-se que se é gestor de negócios não esclarece (e portanto não inclui nem exclui) se a gestão é representativa ou não representativa, esse esclarecimento é claro em face do pedido – coloque o tribunal, dando procedência à acção, AA no lugar de compradora na escritura de venda da casa, pelo senhorio, aos compradores. Quer dizer, BB não pede que o tribunal declare que ele tinha direito de preferência na compra da casa e que o mesmo não foi respeitado pelo senhorio e compradores e que portanto através da procedência da acção, a casa deverá ser posta em seu nome, dele António, que depois – através da remissão para as regras aplicáveis ao mandato, ficará com o dever de a transferir para o nome da sua mãe.

Em suma, para perceber se BB está a agir nos autos em nome próprio ou da mãe, não é a menção “estou a agir em nome” que nos interessa, é o efeito da gestão do negócio – quem é que, directamente, com este negócio assim gerido (direito de preferência, acção de preferência) vai preferir. (…)

Mas voltamos a dizer, o que releva não é o nome que é dado, mas o negócio concreto e a gestão concreta do negócio que é feita. Quando esta gestão passa pela interposição de uma acção judicial em que o negócio só pode resolver-se a favor directo do dono do negócio, não estamos perante gestão de negócios não representativa. (…)

Tendo concluído que BB está a agir em gestão de negócios representativa, naturalmente sem poderes, é convocado o artigo 268º do Código Civil, que dita: “1. O negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado. 2. A ratificação está sujeita à forma exigida para a procuração e tem eficácia retroactiva, sem prejuízo dos direitos de terceiro. 3. Considera-se negada a ratificação, se não for feita dentro do prazo que a outra parte fixar para o efeito. 4. Enquanto o negócio não for ratificado, tem a outra parte a faculdade de o revogar ou rejeitar, salvo se, no momento da conclusão, conhecia a falta de poderes do representante”.

Voltamos à declaração de vontade. No contexto dum processo judicial de natureza civil, isto é, de natureza dispositiva – artigo 3º nº 1 do CPC – a petição inicial constitui a expressão da vontade de aceder à justiça, e o tribunal tem de se assegurar que essa expressão é feita, e vamos dizer de um modo muito simples, é feita por quem tem o direito cuja defesa ou activação vem pedir ao tribunal. Esta necessidade é, antes de mais, uma necessidade económica – de boa gestão dos recursos do Estado no sistema de justiça público – que nos diz que a actividade jurisdicional deve ser poupada para os casos em que verdadeiramente é preciso um ditado judicial. É assim que a definição da legitimidade em função do interesse em atacar ou defender nos revela que se a decisão judicial for insusceptível de interferir na esfera jurídica do atacante ou do defendente, ou como se diz de outro modo, se o atacante ou defendente não pertencem à relação material controvertida, não é legítimo usar os recursos do sistema de justiça. (…)”.

Dúvidas não existem que o Recorrente agiu em gestão de negócios representativa, sem poderes.

A mãe do Recorrente veio a falecer na pendência da acção, deixando como seus sucessores o Autor e a Ré.

Na sentença proferida defendeu a 1ª Instância, e bem, como é óbvio, que se mostra impossível a ratificação por parte da dona do negócio – AA, porquanto a mesma faleceu na pendência da presente acção.

Deixando a sua falecida mãe dois sucessores, não pode operar apenas a habilitação de um deles, que no caso seria, conforme defende nas suas alegações, habilitado apenas o Autor.

Repare-se que o incidente de habilitação de herdeiros visa declarar os sucessores da falecida como habilitados para, em nome desta, prosseguirem a acção. Opondo-se a Ré à pretensão do Autor/Recorrente com a presente acção, é manifesto que esta jamais poderá considerar-se como habilitada para, juntamente com o Recorrente/Autor prosseguir os termos da acção, nomeadamente, ratificando os actos praticados pelo Autor no âmbito da gestão de negócios.

A Ré não pode ocupar a posição de Ré e ao mesmo tempo a de Autora (decorrente da habilitação que decorreria do facto de ser sucessora da falecida sua mãe).

Com o óbito de AA na pendência da presente acção, passamos a ter uma herança indivisa que constitui uma universalidade de direito, com conteúdo próprio. Os herdeiros são, até à partilha, titulares de um direito indivisível.

Assim, até à partilha, o direito de cada herdeiro recai sobre o conjunto da herança e não sobre certos bens. Depois da aceitação da herança e enquanto a mesma permanecer na situação de indivisão, os seus herdeiros não têm qualquer direito próprio a qualquer dos bens que a integram pelo que os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros, nos termos prescritos no artigo 2091º, nº 1 do Código Civil.

Aqui chegados somos de concluir que a ratificação a ter lugar na pendência da acção teria de ser efectuada por todos os herdeiros, ou seja, pelo Autor e Ré, uma vez que o direito de preferência a existir integra o acervo hereditário da falecida.

Partindo do princípio que o direito de preferência pertenceria à herança e não aos herdeiros, a ratificação da gestão de negócios exercida através da presente acção também teria de ser efectivada por todos os herdeiros, o que é manifestamente impossível atenta a posição da Ré que, ao lado do Autor, são os herdeiros da falecida.

A herança da falecida é uma herança aceite e indivisa pelo que, carecendo de personalidade judiciária, os direitos que lhe são relativos devem ser exercidos por todos os herdeiros.

Assim, somos de concluir que, face aos contornos do caso em apreço, o direito de preferência é efectivamente intransmissível, não se mostrando viável, pelo menos através da presente acção, a ratificação da gestão de negócios levada a cabo pelo Recorrente/Autor atenta a posição assumida pela Ré.

Ora, tal como se defende na decisão da 1ª Instância, a impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide pode ocorrer quando sobrevém uma circunstância na pendência da lide que impede a manutenção da pretensão formulada, quer por via do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou por encontrar satisfação fora do próprio processo, deixando de ter interesse a solução propugnada, dando lugar à extinção da instância, sem apreciação do mérito da causa.

Posto isto, acompanhamos a posição do Tribunal da 1ª Instância quando defende que face à impossibilidade de ratificação do acto de propositura da presente acção judicial pela alegada dona do negócio na pendência da acção, ou pelos seus herdeiros, a presente acção não poderá produzir os seus efeitos por falta de ratificação, julga-se a presente acção extinta por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277.º, alínea e), do Código de Processo Civil."

*3. [Comentário] A RL decidiu bem a questão da habilitação dos herdeiros (se é que o direito de preferência da autora se poderia considerar transmissível) e da inutilidade superveniente da lide.

O problema da propositura da (aparentemente) mesma acção a título de gestão de negócios já tinha sido apreciado, num sentido crítico, aqui. Se a acção tivesse sido considerada inadmissível por ilegitimidade do autor/gestor, muita da patologia a ela associada teria sido evitada.

MTS