"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



25/09/2025

Jurisprudência 2024 (239)


Nulidade da sentença;
falta de fundamentação; contradição entre fundamentos e conclusão


1. O sumário de RP 11/12/2024 (10508/22.1YIPRT.P1) é o seguinte:

I - Tradicionalmente, invocando-se os ensinamentos do Professor Alberto Reis, é recorrente a afirmação de que a falta de fundamentação da sentença apenas se verifica quando ocorre falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito.

II - No entanto, no atual quadro constitucional (artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), em que é imposto um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, ainda que a densificar em concretas previsões legislativas, de forma a que os seus destinatários as possam apreciar e analisar criticamente, designadamente mediante a interposição de recurso, nos casos em que tal for admissível, parece que também a fundamentação de facto ou de direito insuficiente, em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do ato decisório.

III - Importa distinguir a falta de fundamentação, geradora da nulidade do ato decisório, da fundamentação errónea ou contraditória, seja a nível factual, seja a nível jurídico que constitui erro de julgamento.

IV - A contradição entre os fundamentos e a decisão geradora da nulidade da sentença verifica-se sempre que a fundamentação de facto e de direito da sentença proferida apontam num certo sentido e, depois, inopinadamente, surge um dispositivo que de todo não se coaduna com as premissas, sendo assim um vício na construção da sentença, um vício lógico nessa peça processual distinto do erro de julgamento que ocorre quando existe errada valoração da prova produzida, errada qualificação jurídica da factualidade provada ou errada determinação ou interpretação das normas legais aplicáveis.

V - Para a integração desta patologia decisória não releva a contradição que possa eventualmente existir entre os factos provados e os não provados e a motivação desses juízos de facto.

VI - A nulidade da sentença é uma patologia que, ressalvada a hipótese prevista na alínea a) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, não é de conhecimento oficioso, competindo por isso ao arguente dessa patologia a alegação dos factos essenciais integradores da referida patologia.

VII - A reapreciação da decisão matéria de facto não é um exercício dirigido a todo o custo ao apuramento da verdade afirmada pelo recorrente mas antes e apenas um meio de o recorrente poder reverter a seu favor uma decisão jurídica fundada numa certa realidade de facto que lhe é desfavorável e que o recorrente pretende ver reapreciada de modo a que a realidade factual por si sustentada seja acolhida judicialmente.

VIII - Logo que faleça a possibilidade de uma qualquer alteração da decisão da matéria de facto poder ter alguma projeção na decisão da matéria de direito em sentido favorável ao recorrente, deixa de ter justificação a impugnação deduzida, traduzindo-se antes na prática de um ato inútil, por isso ilícito.


2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"De acordo com o previsto no artigo 615º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil, é nula a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Tradicionalmente, invocando-se os ensinamentos do Professor Alberto Reis [Veja-se o Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora 1984, reimpressão, Volume V, página 140.], é recorrente a afirmação de que o vício em análise apenas se verifica quando ocorre falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto ou dos fundamentos de direito.

No entanto, no atual quadro constitucional (artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), em que é imposto um dever geral de fundamentação das decisões judiciais, ainda que a densificar em concretas previsões legislativas, de forma a que os seus destinatários as possam apreciar e analisar criticamente, designadamente mediante a interposição de recurso, nos casos em que tal for admissível, parece que também a fundamentação de facto ou de direito insuficiente, em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do ato decisório [Neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02 de março de 2011, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Sérgio Poças, no processo nº 161/05.2TBPRD.P1.S1 e acessível no site da DGSI.].

O artigo 615º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Civil prevê que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

O vício previsto na primeira parte da alínea em análise verifica-se sempre que a fundamentação de facto e de direito da sentença proferida apontam num certo sentido e, depois, inopinadamente, surge um dispositivo que de todo não se coaduna com as premissas, sendo assim um vício na construção da sentença, um vício lógico nessa peça processual distinto do erro de julgamento que ocorre quando existe errada valoração da prova produzida, errada qualificação jurídica da factualidade provada ou errada determinação ou interpretação das normas legais aplicáveis.

Já o vício previsto na segunda parte da aludida previsão legal, decorrente da eliminação do fundamento de esclarecimento da sentença previsto anteriormente na alínea a), do nº 1, do artigo 669º do Código de Processo Civil, na redação que vigorava antes da vigência do atual Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de junho, ocorre sempre que alguma ambiguidade ou obscuridade, torne a decisão ininteligível. Ocorre ambiguidade sempre que certo termo ou frase sejam passíveis de uma pluralidade de sentidos e inexistam meios de, com segurança, determinar o sentido prevalecente. Verifica-se obscuridade, sempre que um termo ou uma frase não têm um sentido que seja percetível, determinável. Quer a ambiguidade, quer a obscuridade têm que se projetar na decisão, tornando-a incompreensível, insuscetível de ser apreciada criticamente por não se alcançarem as razões subjacentes e comprometendo a sua própria execução por força de tais vícios.

Finalmente, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil, a sentença é nula sempre que o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

Estabelece-se nesta previsão legal a consequência jurídica pela infração do disposto no artigo 608º, primeira parte do nº 2, do Código de Processo Civil. No entanto, como ressalva a segunda parte do número que se acaba de citar, o dever de o juiz apenas conhecer das questões suscitadas pelas partes cede quando a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

As questões a decidir são algo de diverso dos argumentos aduzidos pelas partes para sustentar as posições que vão assumindo ao longo do desenvolvimento da lide [A propósito veja-se, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª edição, Coimbra Editora 2017, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, páginas 712 a 714 e 737. Não obstante os argumentos não sejam questões, do ponto de vista retórico e da força persuasiva da decisão, há interesse na sua análise e refutação.]. As questões a decidir reconduzem-se aos concretos problemas jurídicos que o tribunal tem que necessariamente solver em função da causa de pedir e do pedido formulado, das exceções e contra-exceções invocadas, enquanto os argumentos são as razões ou fundamentos aduzidos para sustentar uma certa resposta a uma questão jurídica.

Importa salientar que a vinculação do tribunal às concretas questões ou problemas suscitados pelas partes é compatível com a sua liberdade de qualificação jurídica (artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Por isso, o tribunal pode, sem violação da sua vinculação à problemática invocada pelas partes, qualificar juridicamente de forma diferente essas questões.

Recordado o enquadramento normativo das patologias invocadas pela recorrente, é tempo de apreciar se as mesmas se verificam ou não.

A alegada falta de fundamentação, salvo melhor opinião, não se verifica, na medida em que na sentença são enunciados os factos provados e não provados, motiva-se a decisão de facto e conclui-se fundamentando juridicamente a decisão a final tomada.

O raciocínio seguido pelo tribunal recorrido em qualquer destes segmentos da sentença recorrida é compreensível e, como tal, passível de ser criticado.

Há que distinguir a falta de fundamentação, geradora da nulidade do ato decisório, da fundamentação errónea ou contraditória, seja a nível factual, seja a nível jurídico que constitui erro de julgamento.

Assim, pelo exposto, improcede a arguição de nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação.

Vejamos agora a arguida nulidade por contradição dos fundamentos de facto com a motivação.

A contradição que legalmente é relevada para integração da nulidade da sentença prevista na primeira parte da alínea c) do nº 1 o artigo 615º do Código de Processo Civil é a que se verifica entre os fundamentos, na sua globalidade, e a decisão.

Para a integração desta patologia decisória não releva a contradição que possa eventualmente existir entre os factos provados e os não provados e a motivação desses juízos de facto [---]. A eventual existência de uma contradição dessa natureza é um sinal de que pode ter havido erro na decisão da matéria de facto ou tão-só na indicação das razões em que se baseou o juízo probatório [---], situações de todo bem diversas da contradição dos fundamentos com a decisão, geradora de nulidade da sentença recorrida.

Assim, face ao exposto, improcede esta arguição de nulidade da sentença recorrida."

[MTS]