Danos não patrimoniais;
indemnização civil; carácter punitivo*
I - A privação do gozo de uma coisa pelo titular do respetivo direito constitui um ilícito que o sistema jurídico prevê como fonte da obrigação de indemnizar, pois que, por norma ou regra, essa privação impede o respetivo titular de dela dispor e fruir as utilidades próprias da sua natureza.
II - Não tem sido consensual quer na doutrina quer na jurisprudência o entendimento de que o nosso ordenamento jurídico-civil admite a condenação em danos punitivos.
III- Aceitar a possibilidade de condenação em danos punitivos é admitir que existe uma função punitiva na responsabilidade civil com autonomia sobre a ressarcitória, reabilitando assim o conceito de punição civil.
IV - A figura do dano punitivo implica uma reflexão sobre a ilicitude e a culpa do agente, e assume um escopo de cariz preventivo e sancionatório do comportamento do lesante, constituindo uma alternativa civil à tutela penal, e que supera a via indemnizatória, representando uma via eficaz e acentuando a finalidade punitiva da responsabilidade civil.
V- Os direitos de personalidade foram pensados para as pessoas singulares, pois estão indissoluvelmente ligados à pessoa humana, e embora as pessoas coletivas possam gozar de alguns direitos de personalidade (direitos à honra, ao bom nome, imagem social e reputação), tal não conduz ao reconhecimento do direito à reparação por danos não patrimoniais por uma eventual lesão de algum desses direitos.
VI – Como defende o Prof. Pinto Monteiro a razão de ser da não ressarcibilidade dos danos não patrimoniais das pessoas coletivas é a mesma, num caso e no outro: a suscetibilidade de reparação por danos não patrimoniais, através de uma quantia pecuniária, pressupõe a personalidade humana.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
3.2.9. Danos não patrimoniais e danos punitivos
No que respeita aos danos não patrimoniais e “danos punitivos”, importará separar as águas, definir conceitos e colocar as questões que a montante se impõem, quais sejam a de saber se a responsabilidade civil tem uma função punitiva e se têm as pessoas coletivas direito a uma indemnização por danos não patrimoniais.
Aceitar a possibilidade de condenação em danos punitivos é admitir que existe uma função punitiva na responsabilidade civil com autonomia sobre a ressarcitória, reabilitando assim o conceito de punição civil.
Não tem sido consensual quer na doutrina quer na jurisprudência o entendimento que o nosso ordenamento jurídico-civil admita a condenação em danos punitivos.
No início de vigência do Código Civil de 1966, a doutrina já reconhecia à responsabilidade civil uma finalidade sancionatória ou punitiva, embora de natureza secundária e subordinada à função reparadora. O seu fundamento apoiava-se nas normas que conferiam ao julgador, na fixação da indemnização, o recurso ao critério assente no grau de culpabilidade do agente (arts. 494.º, 497.º, n.º 2 e 570.º).
Antunes Varela afirmava a propósito que a função preventiva ou repressiva da responsabilidade civil, subjacente aos requisitos da ilicitude e da culpa, subordina-se à sua função reparadora, reintegradora ou compensatória, na medida em que só excecionalmente o montante da indemnização excede o valor do dano [In Das Obrigações em Geral, vol. I, pag. 543].
Pessoa Jorge diferenciava a responsabilidade civil conexa com a criminal, em que a responsabilidade civil assumia uma função quer reparadora, quer punitiva, com primazia desta ultima finalidade, da responsabilidade meramente civil, cuja função primordial era reintegrativa, mas a nível secundário existiria o escopo punitivo-preventivo. Embora a responsabilidade meramente civil assentasse na existência de danos como pressuposto da responsabilidade civil, o certo é que a obrigação de indemnizar dependia, em regra, da culpa do agente, pelo que não se podia deixar de reconhecer uma função punitiva e preventiva, ainda que subordinada à finalidade reparadora. [Ensaio sobre a responsabilidade civil, Almedina,1995, pag. 51.]
No mesmo sentido, Pereira Coelho assumia, no domínio da relevância da causa virtual, que apesar da causa virtual, a indemnização subsiste, reconhecendo que esta visa não um fim compensatório de danos, mas um fim sancionatório. [O problema da causa virtual na responsabilidade civil, Colecção teses, Almedina, 1998.]
A verdade é que a ciência jurídica tem evoluído e nos últimos anos encontramos defensores de um alargamento da finalidade punitiva da responsabilidade civil. [Neste sentido o Acórdão do STJ de 25/02/2014, Relatora Maria Clara Sottomayor, proferido no proc.287/10.0TBMIR.S1, acessível em www.dgsi.pt.]
Menezes Cordeiro defende a função punitiva para as indemnizações por danos não patrimoniais, nomeadamente quando estejam em causa valores morais, de modo a ressarcir o mal feito e desincentivar, quer junto do agente, quer junto de outros elementos da comunidade, a repetição das práticas prevaricadoras. [Direito das Obrigações, 2.° volume, pag. 288.]
Pinto Monteiro sustenta que a pena privada constitui uma alternativa civil à tutela penal, e que supera a via indemnizatória, representando uma via eficaz e acentuando a finalidade punitiva da responsabilidade civil. [In Cláusula penal e indemnização, Almedina, 1990, pag. 667, nota 1536.]
Júlio Gomes considera que a pena privada pode, no fim de contas, surgir como meio de garantir uma tutela mais completa da autonomia privada, o recurso à pena privada desencoraja a apropriação ilícita dos bens alheios e exprime de maneira adequada, que não é socialmente irrelevante ou indiferente a escolha entre a via do contrato e a do facto ilícito. [In Responsabilidade Objectiva e Responsabilidade Subjectiva», Revista de Direito e Economia, ano XIII, pag. 97 ss.]
Patrícia Guimarães advoga a consagração oficial da indemnização como pena privada, para evitar que a violação de direitos alheios compense o agente. [In Os danos punitivos e a função punitiva da responsabilidade civil, Direito e Justiça, v15.1 (2001), pag. 178.]
Paula Meira Lourenço defende a figura dos danos punitivos considerando que constituem o exemplo paradigmático da finalidade punitiva da responsabilidade civil, na dupla vertente preventiva e retributiva, destrói o dogma da função meramente reparadora, e que deve ser reassumida, mormente face a hipertrofia e ineficácia do direito penal e contra-ordenacional. [ In Os danos punitivos, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, vol. XLIII, nº2, pag. 1107.]
A dimensão sancionatória da responsabilidade civil implica o reacentuar da finalidade ético-jurídica do instituto e relaciona-se com o emergir do direito civil como direito constitucional das pessoas. [In Cláusula Penal e Indemnização, Almedina, 1990, pag. 663.]
A figura implica uma reflexão sobre a ilicitude e a culpa do agente, e assume um escopo de cariz preventivo e sancionatório do comportamento do lesante, por muitos considerado atípico no quadro do direito civil.
Apresentando-se mais arrojadas as construções doutrinais desenvolvidas à volta do conceito, a jurisprudência não lhe tem sido imune.
Como se refere no Acórdão do STJ de 25/02/2014 (Relatora Maria Clara Sottomayor, proferido no proc.287/10.0TBMIR.S1), a jurisprudência portuguesa, apesar de não ter aceitado o conceito de danos punitivos, não deixa de, em determinados casos concretos, nomeadamente nos casos de ofensas ao bom nome e nos acidentes de viação atribuir à indemnização por danos não patrimoniais uma natureza mista de «reparar os danos sofridos pelo lesado e reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente.
O conceito de indemnização punitiva surge, assim, a par de um movimento de desmaterialização do direito civil e da necessidade social de aumentar os valores das indemnizações por danos não patrimoniais, quando está em causa a violação de direitos fundamentais da pessoa humana.
Na prática, a categoria resulta de uma jurisprudência criativa que, preocupada com a justiça, condena o lesante, em casos de dolo ou de culpa grave, ao pagamento de uma quantia mais elevada do que os padrões habituais.
Os danos punitivos vêm enquadrados nos danos de natureza não patrimonial."
*3. [Comentário] A expressão "danos punitivos" é uma péssima expressão. Como é claro, não há danos punitivos, mas antes indemnizações punitivas, ou seja, indemnizações que, além de indemnizarem o dano verdadeiramente causado, sancionam o agente com uma indemnização de carácter punitivo.
Aliás, o que significa "condenação em danos punitivos"? Condenar alguém a causar a outrem danos de carácter punitivo?
MTS