Nas Conclusões III. a IX. da revista, o Recorrente refere-se à actuação da Relação no âmbito da impugnação da decisão sobre a matéria de facto como sendo violadora dos princípios da imediação e da oralidade, reservados em exclusivo à actuação da 1.ª instância na produção de prova e consequente averiguação e fixação da matéria de facto.
Antes de mais, assinale-se que o acórdão recorrido, confrontado com a impugnação do Autor Apelante, dirigida aos factos provados 15., 22., 23., 25. e 30., assim como a toda a factualidade não provada, pugnando por um outro elenco de factos provados, foi rejeitada, acima de tudo pela razão simples e linear de a sua alteração não influir na resolução do litígio.
Em rigor, portanto, não tem qualquer cabimento lógico e fundado o que consta das conclusões III. a IX., que teria como pressuposto que a Relação tinha apreciado a impugnação e alterado, modificado ou aditado o elenco factual que os autos traziam do 1.º grau – não foi de todo o que aconteceu.
Seja como for, a decisão censurada pelo Recorrente é uma decisão tomada com toda a legitimidade, no exercício de poderes próprios da Relação, ao abrigo do cosmos aplicativo do art. 662 do CPC, mesmo que seja para confirmar e nada alterar.
Com efeito.
O art. 662º constitui a norma central de atribuição de autonomia decisória à Relação em sede de reapreciação da matéria de facto, traduzida numa convicção própria de análise dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se encontrem disponíveis no processo.
Começa tal atribuição por estar plasmada na prescrição-matriz da competência de reavaliação factual do n.º 1, sem dependência de provocação pelas partes em sede de recurso para esse efeito:
«A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»
Depois, o n.º 2 do art. 662º, 2, do CPC estabelece verdadeiros poderes-deveres funcionais e qualificados (a lei diz «deve ainda, mesmo que oficiosamente») sempre que, aquando da reapreciação da prova sujeita à livre apreciação, não resulte uma convicção segura e fundamentada sobre os factos, uma vez confrontada com a motivação e a decisão reflectidas na 1.ª instância.
Para isso, tais poderes-deveres não dependem de iniciativa das partes (nem são direito potestativo que lhes assista [...]. São (ou podem-devem ser) exercidos oficiosamente e aspiram à formulação de um resultado judicativo próprio, destinado a “superar dúvidas fundadas sobre o alcance da prova já realizada” [ABRANTES GERALDES, “Artigo 662º”, Recursos [no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018], pág. 298.]. Estamos verdadeiramente perante deveres processuais de carácter vinculado, impostos para “proceder a um (verdadeiro) novo julgamento da matéria de facto, em ordem à formação da sua própria convicção, designadamente verificando se a convicção expressa pelo tribunal a quo possuía razoáveis tradução e suporte no material fáctico emergente da gravação da prova (em conjugação com os mais elementos probatórios constantes do processo)” [FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito processual civil, Volume II cit., pág. 537, completando: “Foi, assim, arredada a conceção segundo a qual a atividade cognitiva da Relação se deveria confinar, tão-somente, a um mero controlo formal da motivação/fundamentação efetuada em 1ª instância”.]
Esta é uma intervenção que está de acordo com uma filosofia clara do CPC de 2013, em que, sem abdicar do princípio do dispositivo, “o tribunal também está comprometido com a verdade dos factos e daí que, por força do princípio do inquisitório, alguns desses factos possam vir a ser provados por mor da sua intervenção”, no contexto de um processo “trialógico”, “um processo de partes perante um juiz activo” [URBANO LOPES DIAS, “Limites do poder cognitivo do juiz – nas instâncias e no STJ”, Blog do IPPC, 3/4/2017, pág. 5.]
Assim sendo.
Precisemos que o art. 662º do CPC, consagrando o duplo grau de jurisdição no âmbito da motivação e do julgamento da matéria de facto, estabiliza os poderes da Relação enquanto verdadeiro tribunal de instância, proporcionando a reapreciação do juízo decisório da 1.ª instância para um efectivo e próprio apuramento da verdade material e subsequente decisão de mérito. Por isso a doutrina tem acentuado que, nesse segundo grau de jurisdição, se opera um verdadeiro recurso de reponderação ou de reexame, sempre que do processo constem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão da matéria de facto em causa (em especial os depoimentos gravados), que conduzirá a uma decisão de substituição, uma vez decidido que o novo julgamento feito modifica ou altera ou adita a decisão recorrida. [V. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “A impugnação das decisões judiciais”, Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1997, págs. 395-396, 399-400, 400, 402-403.]
Sempre – nunca é demais sublinhar – com a mesma amplitude de poderes de julgamento que se atribui à 1.ª instância (é perfeitamente elucidativa a aludida remissão feita pelo art. 663º, 2, para o art. 607º, que abrange os seus n.os 4 e 5) e, destarte, sem qualquer subalternização – inerente a uma alegada relação hierárquica entre instâncias de supra e infra-ordenação no julgamento – da 2.ª instância ao decidido pela 1.ª instância quanto ao controlo sobre uma decisão relativa ao julgamento de uma determinada matéria de facto, precipitado numa convicção verdadeira e justificada, dialecticamente construída e, acima de tudo, independente da convicção de 1.ª instância [...]
Como ainda recentemente se enfatizou, exemplarmente, no Ac. do STJ de 26/11/2024, com este mesmo Colectivo nesta Secção (sendo Relatora a aqui Conselheira 1.ª Adjunta), a propósito da inviabilidade de um “segundo julgamento” da Relação, que se limitaria a rectificar erros patentes da 1.ª instância:
“Através do disposto no art. 662º do CPC, foi concedida (pelo NCPC) ao Tribunal da Relação autonomia decisória em sede de reapreciação e modificabilidade da decisão da matéria de facto.”;
“(…) no âmbito da apreciação da decisão de facto impugnada, incumbe ao Tribunal da Relação formar o seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos objeto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos, e das que lhe for ainda lícito renovar ou produzir (nos termos do disposto no art. 662º, nº 2, als. a) e b), do CPC), à luz do critério da sua livre e prudente convicção (nos termos do art. 607º, nº 5, ex vi do disposto no art. 663º, nº 2, do CPC), tendo um amplo poder inquisitório sobre a prova produzida que imponha decisão diversa (como decorre do nº 1 do art. 662º do CPC), sem estar adstrito aos meios de prova convocados pelas partes ou indicados pelo tribunal de 1ª instância, e sem se limitar à verificação da existência de erro manifesto na apreciação da prova.” [Processo n.º 417/21, in www.dgsi.pt].
Por isso, não tem qualquer viabilidade a pretensão dos Recorrentes, que desde logo não demonstram lógica na impugnação em face da confirmação em 2.º grau da materialidade provada e não provada –, nem a actuação da Relação – fazendo em juízo próprio a confirmação do juízo de facto da 1.ª instância – configura qualquer vício que possa ser imputado com sucesso ao acórdão recorrido."
[MTS]