"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



29/09/2025

Jurisprudência 2024 (240)


Processo de inventário;
patrocínio judiciário; falecimento do advogado*


1. O sumário de RL 19/12/2024 (231/20.7T8PTS-A.L1-2) é o seguinte:

I. Nos processo de inventário, independentemente do seu valor, apenas é obrigatória a constituição de advogado quando o interessado pretenda suscitar ou discutir uma questão de direito, ou interpor recurso.

II. A data de abertura de uma conta bancária, as datas dos depósitos nela efetuados e respetivos valores são questões de facto que podem ser suscitadas pelo interessado, sem necessidade de constituição de advogado; também a junção aos autos de documentos para prova dos indicados factos pode ser feita diretamente pelo interessado, sem necessidade de constituição de advogado.

2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"Segundo o apelante, o tribunal a quo, ao não suspender o processo na sequência do conhecimento do falecimento do mandatário do recorrente, violou o disposto no artigo 271.º do CPC, gerando, com isso, a nulidade do processado subsequente. Nesta asserção, que consta da 12.ª conclusão do recurso, concentra-se e sintetiza-se o âmago do recurso.

Apreciando.

Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 269.º, n.º 1, al. b), e 271.º, n.º 1, ambos do CPC (ao qual pertencem todos os artigos a seguir indicados sem menção de outra proveniência), nos processos em que é obrigatória a constituição de advogado, a instância suspende-se quando, tendo este falecido, for feita no processo a prova desse facto, coisa que o apelante nunca fez.

Mesmo que se entendesse, sem conceder, que bastaria ao interessado a mera comunicação – relembramos que foi feita apenas em …/11/2023 – cabendo ao tribunal a obtenção da prova, devia ter sido suspensa a instância?

Conforme afirmado na citada alínea b) do n.º 1 do artigo 269.º, a instância só é suspensa por óbito de advogada nos casos em é obrigatória a sua constituição, ou seja, nos casos em que as partes apenas podem intervir no processo representadas por mandatário judicial.

Tais casos – em que é obrigatória a constituição de advogado – encontram-se elencados no artigo 40.º, n.º 1, do seguinte modo:

a) Causas de competência de tribunais com alçada, em que seja admissível recurso ordinário;
b) Causas em que seja sempre admissível recurso, independentemente do valor;
c) Recursos e causas propostas nos tribunais superiores.

Ainda que seja obrigatória a constituição de advogado, as próprias partes (e, por maioria de razão, advogados estagiários e solicitadores) podem fazer requerimentos em que se não levantem questões de direito (n.º 2 do artigo 40.º).

Para os processos de inventário, como é o presente caso, existe uma norma especial no artigo 1090.º, segundo a qual a constituição de advogado é obrigatória em duas situações: a) para suscitar ou discutir qualquer questão de direito; e, b) para interpor recurso.

Resulta deste artigo que, nos processo de inventário, independentemente do seu valor, não é obrigatória a constituição de advogado, salvo quando o interessado pretenda suscitar ou discutir uma questão de direito, ou interpor recurso.

Neste sentido a anotação de António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, II, 2.ª ed., Almedina, 2022, p. 574: «Estabelece-se um regime específico de patrocínio judiciário que dispensa a constituição de advogado em processos de inventário, em que, independentemente do seu valor, não se suscitem as questões referidas nas als. a) e b)». Exemplificam como questões de direito para efeitos da al. a), a oposição ao inventário mediante a alegação de que não existe fundamento para a sua instauração, a impugnação da competência do cabeça de casal, a interpretação de testamento ou a forma à partilha. Quanto a outros atos, continuam, «como a reclamação contra a relação de bens ou mesmo a impugnação de créditos ou de dívidas, será obrigatório ou não o patrocínio judiciário em função de a discussão se circunscrever apenas à matéria de facto ou envolver também matéria de direito».

Regressando ao caso, e relacionando-o com o exposto, o cointeressado apenas teria de constituir advogado se quisesse pôr em causa a relação de bens com questões jurídicas, o que nunca foi tema. O que o cointeressado disse foi que a conta foi aberta antes do casamento e que o saldo constante da mesma já ali estaria aquando da celebração do matrimónio, e isto são questões de facto, que o interessado podia e devia (rectius, tinha o ónus de) ter provado, nomeadamente através da junção do documento de abertura de conta e extratos bancários.

Aliás, muito antes do alegado falecimento do seu advogado, tinha sido concedido prazo ao apelante, a seu pedido, para juntar os documentos comprovativos de que a conta bancária tinha sido aberta antes do matrimónio e de que o valor nela depositado foi por si levado para o casamento, documentos que, segundo afirmou na altura, já teria pedido à CGD. Apesar da concessão do solicitado prazo, o apelante, então cabeça de casal, nada juntou. Foi ainda notificado por despacho de …/06/2021 para juntar os ditos documentos, nada fez e nada disse. O descrito passou-se, pois, largos meses antes do invocado óbito.

Em todo o caso, mesmo admitindo que o primitivo advogado do apelante tenha falecido em …/03/2022, o apelante apenas o comunicou em …/11/2023, data em que estava ultrapassado o prazo para reclamar contra a relação de bens.

Mesmo que a ação devesse ter sido suspensa com a simples comunicação do óbito, o que não se concede, tal ocorreu em …/11/2023, e não determinaria a ineficácia, muito menos a nulidade, do anteriormente processado, nomeadamente do processado entre o óbito do advogado (…/03/2022) e a comunicação mais de ano e meio depois. Entretanto, decorreu o prazo para reclamar contra a relação de bens que, dessa forma, se consolidou."

*3. [Comentário] A RL decidiu bem, atendendo ao disposto no art. 269.º, n.º 1, al. b), CPC.

Note-se que não seria impossível (e talvez até fosse desejável) que a lei determinasse a suspensão da instância sempre que falecesse o advogado da parte, mesmo que, no caso concreto, o patrocínio judiciário não fosse obrigatório.

MTS