Inquérito judicial;
valor da causa
1- Quando o inquérito judicial à sociedade tem como fundamento a não apresentação pontual, pela gerência, do relatório de gestão, contas do exercício e demais documentos de prestação de contas, seguem-se os termos previstos no art.º 67.º do CSC, tal como decorre do estatuído no n.º 3 do art.º 1048.º do CPC.2- Estando em causa uma sociedade por quotas, ao sócio requerente compete então alegar a sua qualidade de sócio e bem assim que aquele relatório de gestão, contas do exercício e demais elementos de prestação de contas não foram apresentados pela gerência à assembleia geral de sócios, encontrando-se já decorrido o prazo legal para o efeito.3- Compete depois à sociedade demandada demonstrar que no final de cada exercício apresentou as respetivas contas, sob pena do inquérito prosseguir, não ficando a mesma desonerada da obrigação de apresentar contas e de convocar a aludida assembleia geral no final de cada exercício, pelo facto de ter procedido ao registo da prestação de contas, em conformidade com o regime previsto no Decreto-Lei n.º 8/2007 de 17/01 (IES). São obrigações distintas e uma não tira a outra.4- Visando o sócio com o pedido de inquérito obter informação sobre o cerne da vida societária, refletida nas suas contas, no exercício legítimo de um direito social, não sendo assim possível apurar os efeitos patrimoniais diretos do exercício desse direito nem a utilidade económica do mesmo para os sócios, deverá fixar-se o valor da ação por equiparação com as situações previstas no âmbito dos interesses imateriais materializada no art.º 303.º do CPC.
II. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"i) Do valor da causa:
Pela sentença recorrida foi fixado à causa diferente valor do indicado pelo Autor em sede inicial - de €8.000,00 – e não impugnado pelo Réu na sua contestação, pois que o tribunal a quo entendeu que não foi apresentado qualquer fundamento para o valor assim indicado. Por isso, o tribunal recorrido corrigiu tal montante, fixando à causa o valor de €2.500,00, valor correspondente à quota da sociedade pertencente ao Autor.
Diz o apelante que inexiste fundamento legal para essa correção, tanto mais que se trata de um pedido de apresentação de contas relativas a exercícios de mais de dez anos, devendo assim aplicar-se o disposto na segunda parte do n.º 1 do art.º 297.º do CPC, que alude ao benefício que pela ação se pretende obter, pelo que, o Tribunal a quo deveria ter mantido o valor atribuído pelo Apelante à causa ou convida-lo a aperfeiçoar e fundamentar o valor indicado, nos termos do disposto no art.º 590.º n.º 4, em consonância com o disposto nos arts.º 6.º n.º 1 e 7.º n.º 2, do CPC, atendendo até que, conforme resulta da carta enviada pelo Apelante, este pede esclarecimentos sobre o valor de 125.478,87€, que entregou à sociedade no ano de 2002.
Já nesta instância recursiva foram ouvidas as partes sobre a possibilidade de se fazer uso do consagrado no art.º 303.º do CPC, ao que, como vimos, o apelado se opôs.
Vejamos então.
O art.º 296.º n.º 1 do CPC diz-nos que a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido, consignando depois o n.º 1 do art.º 297º do mesmo diploma legal que se pela ação se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, não sendo atendível impugnação em contrário; se pela ação se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício.
Daqui se retira que a utilidade económica imediata do pedido, expressa em dinheiro, constitui o critério legal para a determinação do valor da causa, devendo, nos restantes casos, encontra-se o equivalente pecuniário correspondente à utilidade, ao benefício, que o autor da ação visa com ela alcançar, levando-se sempre em linha de conta que a base do pedido é a causa de pedir, que o explica e delimita (ver CPC anotado por Lebre de Freitas, Vol. I, pág. 601).
Não obstante incidir sobre as partes o dever de indicação do valor da causa, podendo até a sua omissão acarretar consigo algumas consequências legais (arts.º 296.º n.º 1, 297.º n.º 1, 305.º n.º 3, 552.º n.º 1 al. f) e 558.º al. e), do CPC), certo é que é ao juiz que compete fixar em definitivo o “valor processual da causa”.
Com efeito, estipula o art.º 306.º do CPC que «1- Compete ao juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes. 2- O valor da causa é fixado no despacho saneador, salvo nos processos a que se refere o n.º 4 do artigo 299.º e naqueles em que não haja lugar a despacho saneador, sendo então fixado na sentença. 3- Se for interposto recurso antes da fixação do valor da causa pelo juiz, deve este fixá-lo no despacho referido no artigo 641.º.»
No quadro legal indicado, haverá, pois, que ponderar-se o que pretende o Autor com a propositura da presente ação, que visa a realização de um inquérito judicial à sociedade Ré, com vista a prestação de contas que, na alegação do autor, não foram prestadas ao longo dos anos. Estando em causa um processo especial de jurisdição voluntária, o uso de tal meio é a forma que um sócio tem de obter informação sobre a vida societária, sobre o seu regular andamento, tendo assim, como finalidade primeira, isso mesmo, ou seja, o conhecimento. É certo que poderá depois ter-se em vista uma atribuição ou distribuição de lucros, mas não é essa a finalidade primeira da presente ação, que visa apenas, nesta fase, obter informação sobre as contas da sociedade, o que nos impede assim, estamos em crer, de apurar os efeitos patrimoniais diretos da mesma ou a sua utilidade económica para os sócios.
Ora, como vimos, o Autor indicou, como valor da causa, o valor de €8.000,00, o que fez, como o próprio o admite, sem qualquer fundamentação fática para o efeito. Não obstante, tal valor não foi impugnado na contestação, que, por ser assim, foi aceite pelos Réus – cf. Art.º n.º 305.º n.º 4 do CPC.
Tal acordo entre as partes quanto à fixação do valor da causa, como vimos, não vincula o juiz, a quem compete, na verdade, fixar tal valor, não ficando o mesmo dispensado de examinar a objetividade decorrente daquele acordo. Conforme se sustenta no Ac. da RC de 12/10/2021, proc. 147/20.7T8CTB.C1, relatado por Maria João Areias, e com o qual aqui concordamos, (…) “ainda que assim não fosse, independentemente das posições assumidas pelas partes - falta de impugnação do valor atribuído pelo autor, considerando-se que o aceita, apresentação de um novo valor que é aceite pelo autor, manutenção de divergência entre as partes relativamente ao valor da ação -, o juiz terá sempre de se debruçar sobre o assunto e fixar o valor da causa, sem estar vinculado a qualquer dos valores indicados ou aceites por aquelas (artigo 306º, nº1). Ou seja, não se encontrava o juiz dispensado de analisar o valor da causa à luz dos critérios legais previstos nos artigos 297º e ss. do CPC, divergindo do valor proposto pelas partes, caso reconhecesse não corresponder aquele ao resultante de tais critérios legais.”
No nosso caso, em face da ausência de qualquer lógica na indicação do valor da causa, e tendo o juiz que se debruçar sobre tal concreta questão, afigura-se-nos, como dissemos já, que visando-se com a presente ação a obtenção de informação do cerne da vida societária, que se traduz nas suas contas, ainda que as mesmas incidam, naturalmente, sobre direitos de conteúdo patrimonial, o que aqui está em causa são, na verdade, interesses imateriais ligados, em momento anterior e primário, ao exercício daquele legítimo direito de informação. E, por isso, entendemos que tal situação poderá ser equiparada à estabelecida no acima referido art.º 303.º n.º 1 do CPC («1- As ações sobre o estado das pessoas ou sobre interesses imateriais consideram-se sempre de valor equivalente à alçada da Relação e mais € 0,01 (…)»).
É, de resto, o entendimento seguido já no acórdão desta seção de 14/01/2025, proferido no proc. 2942/23.6T8VFX.1.L1-1, relatado por Pedro Brighton e disponível na dgsi, ainda que ali estando em causa uma ação de deliberação social, mas que versou também sobre relatórios de contas e contas anuais, assim sumariado em parte «(…) III- Na ação de anulação de deliberação social, onde se pretende anular uma deliberação sobre o relatório de gestão e as contas anuais do exercício de determinado ano, não é possível apurar os efeitos patrimoniais diretos da mesma, nem a sua utilidade económica para os sócios, situando-se assim a ação no âmbito dos interesses imateriais. IV- Deste modo, o valor da ação deverá coincidir com o da alçada da relação, acrescida de um cêntimo (art.º 303º nº 1 do Código de Processo Civil), ou seja, será de fixar à ação o valor de 30.000,01 €».
Também aqui, cumprido que foi o contraditório sobre a questão suscitada, deve valor da presente ação coincidir com o da alçada da Relação, acrescida de um cêntimo (cf. arts.º 303.º n.º 1 do CPC e 44.º n.º 1 da LOSJ) ou seja, o valor de 30.000,01€."
[MTS]
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