"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



19/03/2025

Dívida comercial, juros civis - mas porquê?


1. a) O sumário de STJ 19/9/2024 (258/09.0TNLSB-D.L1.S1) é o seguinte:

Mantendo-se a orientação jurisprudencial do STJ, considera-se que, à falta de outros elementos interpretativos, a decisão judicial dada à execução, condenando a ora embargante a pagar à aí autora uma indemnização acrescida de juros calculados à taxa legal, deve ser interpretada como abrangendo o direito a juros de mora à taxa legal prevista para os juros civis.

 b) A fundamentação do acórdão esclarece o que estava em causa:

"5.2. Na acção declarativa que culminou com a decisão judicial dada à execução, foi formulado o seguinte pedido:

«Nestes termos, deve a presente acção ser julgada procedente, por provada, e por via dela, ser a R. condenada a pagar à A. a quantia peticionada de (...), acrescida de juros vincendos, bem como custas e o mais legal. (...)».

Sendo que, no último artigo da petição inicial (artigo 69), a pretensão relativa ao pagamento de juros, foi assim enunciada:

«A esta quantia deverão acrescer juros, à respectiva taxa legal, desde a data da citação até à data do integral pagamento.».

Afigura-se que o segmento decisório do acórdão dado à execução se encontra em conformidade com o teor literal do pedido («condeno a Ré Petrogal a pagar à Autora a quantia de 150.000,00 €, acrescida de juros, calculados à taxa legal desde a citação até integral e efectivo pagamento»). E, uma vez que se verifica que em momento algum a petição inicial se refere à natureza (comercial ou civil) da obrigação da ré Petrogal, tampouco a utilização, no artigo 69.º da p.i., da expressão «respectiva taxa legal», permite retirar a ilação de que os juros peticionados o foram à taxa comercial.

Temos, assim, que, no caso dos autos, e diversamente do alegado pela recorrente, a directriz interpretativa assente no princípio do pedido não permite chegar a qualquer conclusão segura."

2. O acórdão optou por seguir a jurisprudência do STJ (também largamente maioritária nas instâncias, segundo se supõe): não se conseguindo retirar do pedido do credor de uma dívida comercial se os juros que pede são civis ou comerciais, deve entender-se que o demandante pede juros civis.

Quanto à opção do STJ, nada há a objectar. Na dúvida, deve seguir-se a jurisprudência consolidada, pois que uma 
jurisprudência flutuante origina perplexidade entre as partes e não favorece a confiabilidade do sistema processual. 

Outra coisa completamente diferente é saber se a orientação do STJ é a melhor na matéria e se não se impõe uma mudança da jurisprudência. A formulação escolhida pelo STJ ("Mantendo-se a orientação jurisprudencial deste Supremo Tribunal [...]") pode eventualmente ser interpretada como mostrando algum "desconforto" perante a jurisprudência consolidada, mas isto não passa de uma mera conjectura. 

Talvez possam ser mobilizados alguns outros, mas bastam três argumentos muito simples para questionar a bondade da referida jurisprudência. Talvez se possa adiantar que a solução do problema nada tem a ver com a interpretação do pedido do demandante, mas tão-só com a aplicação da lei pelo tribunal da acção.

3. a) O primeiro argumento é meramente textual. O art. 703.º, n.º 2, CPC dispõe que "consideram-se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dela constante". Não está agora em causa o âmbito de aplicação do preceito (talvez indevidamente restringido pelo Ac. STJ 9/2015, de 24/6), mas um outro aspecto: os juros de mora que são abrangidos pelo título executivo são aqueles que respeitam à "obrigação dele constante"; portanto, estão abrangidos juros civis, se a obrigação for civil, e juros comerciais, se a obrigação for comercial. 

Quer dizer: o estabelecido no art. 703.º, n.º 2, CPC é bem claro em relacionar os juros com a obrigação exequenda. Aliás, nada de especial, certamente. Surpreendente seria que o preceito relacionasse os juros a serem cobrados na execução com qualquer coisa distinta da obrigação que consta do título executivo.

Também é nítido que, ao contrário do entendimento da jurisprudência agora em análise, a expressão "juros calculados à taxa legal" não pode significar apenas juros civis. Se assim se entendesse, então a "taxa legal" referida no art. 703.º, n.º 2, CPC estaria a reportar-se, qualquer que fosse a obrigação exequenda, apenas à taxa legal dos juros civis. É manifesto que não é isto que resulta do preceito, já que, como se disse, o preceito relaciona os juros com a obrigação que consta do título.

b) Uma segunda observação é esta: não se encontra na lei (art. 102.º CCom; art. 4.º DL 62/2013, de 10/5) nenhuma base para se entender que o regime dos juros comerciais é supletivo perante o regime dos juros civis, isto é, que os juros comerciais só se aplicam se as partes o estipularem ou se -- que é o que agora interessa -- o demandante o pedir em juízo. A única coisa que se pode retirar desses preceitos é que as partes podem convencionar qual a taxa dos juros comerciais (art. 102.º, § 1.º CCom; art. 4.º, n.º 1, DL 62/2013), taxa que, nesta hipótese, prevalece, com a limitação imposta pelo disposto no art. 102.º, § 2.º, CCom, sobre a taxa legal supletiva (art. 102.º, § 3.º e 4.º CCom).

Os juros civis e os juros comerciais são ambos "juros calculados à taxa legal". A única diferença entre eles é que os juros civis são o regime geral e os juros comerciais correspondem a um regime especial. Ora, que se saiba a aplicação em juízo de um regime especial não depende da vontade das partes: o regime aplica-se, não porque as partes o queiram ou o peçam, mas porque a lei especial derroga a lei geral. Portanto, cumprindo o princípio iura novit curia, os tribunais devem aplicar ex officio qualquer regime especial (incluindo, naturalmente, aquele que respeita à taxa legal definida para os juros comerciais).

O regime especial prevalece sobre o regime geral, mas a solução da jurisprudência agora em análise parece esquecer este elementar princípio. Sem excluir que exista em alguma parte do ordenamento jurídico um regime especial cuja aplicação pelos tribunais esteja dependente da vontade das partes, não se vislumbra que exista qualquer base legal para se entender que qualquer regime comercial esteja dependente de uma expressa vontade das partes, em especial no que respeita aos juros devidos no giro comercial. Portanto, não há nenhum motivo para excluir a matéria dos juros comerciais da aplicação oficiosa pelo tribunal da acção.

Acresce que, a dar-se qualquer relevância à vontade das partes em matéria de juros respeitantes a dívidas comerciais, a hipótese em que tal pode suceder é precisamente a inversa daquela que está em análise: o regime geral dos juros civis só pode ser aplicado em detrimento do regime especial dos juros comerciais se tal resultar da vontade das partes (o que, aliás, se admite como perfeitamente possível). Em contrapartida, para a aplicação pelos tribunais do regime legalmente aplicável nunca é necessária qualquer manifestação de vontade das partes.

Nestes termos, o equívoco da jurisprudência parece ser de base: admitir que, na falta de um pedido expresso em juízo, se aplicam a dívidas comerciais juros civis quando o que se devia admitir era que, na falta desse pedido, se aplicam a essas dívidas os juros comerciais a que se referem (sem os qualificarem como tal) o art. 102.º CCom e o art. 4.º DL 62/2013. 

Em conclusão: é verdadeiramente estranho que se entenda que, na falta de especificação pelo credor comercial de quais são os juros aplicáveis, se possa entender que o tribunal fica desvinculado de aplicar a lei e tenha de aplicar o regime geral dos juros civis em detrimento do regime especial dos juros comerciais.

c) O terceiro argumento contra a jurisprudência do STJ é ainda mais evidente: se, na falta de estipulação negocial das partes, se aplicam a dívidas comerciais juros comerciais, por que razão, na falta de um pedido que refira que se trata de juros comerciais, se aplicam a dívidas comerciais juros civis?

Esta falta de sintonia entre a solução substantiva e a solução processual contraria tudo o que se diz e ensina sobre a função instrumental do processo civil: essa função proíbe que se construam em processo soluções que contrariam o que vale fora do processo.

4. Em suma: há boas e simples razões para abandonar a jurisprudência que entende que, na falta de especificação dos juros pedidos em juízo quanto a uma dívida comercial, se aplicam a esta dívida juros civis.

MTS