"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



15/09/2017

Jurisprudência (685)


Decisão de improcedência; caso julgado;
nova acção


1. O sumário de RP 28/3/2017 (1565/15.8T8VFR-A.P1) é o seguinte:

I - Em sede de apreciação da excepção dilatória do caso julgado, a verificação dos pressupostos da identidade dos pedidos serve o objectivo último de prevenir que o tribunal se veja na contingência de proferir decisão de mérito que contrarie ou repita uma outra, anterior e definitiva.
 
II - Nas palavras de Anselmo de Castro, o pedido aparece como o “círculo dentro do qual o tribunal se tem de mover para dar solução ao conflito de interesses que é chamado a intervir.”
 
III - Não há identidade entre o pedido formulado numa acção de execução específica de um contrato - promessa, que foi julgada improcedente, e aqueles formulados noutra acção ulterior em que se pede a condenação dos promitentes vendedores à realização de deveres de que depende a própria possibilidade de celebração do contrato - prometido e cuja omissão motivara aquela improcedência, a cumular com a consequente condenação na celebração, então possível, do contrato prometido.
 
2. Na fundamentação do acórdão (que tem um voto de vencido) afirma-se o seguinte:
 
"Na [...] acção nº 2540/08.4TBVFR, o pedido formulado era o de uma típica acção de execução específica: o Município pretendia que o tribunal proferisse sentença que substituísse a declaração faltosa dos promitentes vendedores.

Porém, face ao concreto contrato-promessa a executar, foi ajuizado que a correspondente obrigação principal (a celebração do contrato prometido) estava “rodeada de outras obrigações ou deveres acessórios que não tendo expressão no texto do contrato-promessa, são essenciais para o [s]eu cumprimento (…) tendo em vista o cumprimento do contrato prometido. São obrigações ou deveres acessórios dos promitentes vendedores a autonomização da parcela de terreno prometida vender como um prédio autónomo (…).

Assim, sem que a parcela de terreno prometida vender tenha existência e autonomia jurídica, nunca seria possível ao tribunal substituir-se aos réus e emitir, em vez deles, a declaração de venda (…).” .[...]

Foi, nestes termos e com tal fundamentação que a acção de execução específica improcedeu.

Num acto inequívoco de aceitação dessa sentença, o Município veio agora formular os seguintes pedidos:

a) (…)
b) Que se reconheça a parcela negociada, de 270 m2, como um prédio autónomo, dividido e demarcado, decretando-se a desanexação da mesma, de facto e de direito, relativamente ao prédio de onde procede, livre de ónus ou encargos;
c) Que se condenem os RR. a acatar essa solução;
d) Que se condenem os réus ao cumprimento do contrato-promessa, outorgando a escritura de venda daquela parcela;
e) Que se condenem os RR. numa sanção pecuniária compulsória, no caso de não comparecimento a esse acto, por cada mês de atraso.

A interpretação dos termos deste pedido à luz da decisão anteriormente proferida na acção nº 2540/08.4TBVFR explica, por um lado, a admissão dos pedidos formulados nas als. b) e c); e, por outro lado, o reconhecimento de uma interdependência entre esses pedidos e os descritos nas als. d) e e), que obstam ao seu tratamento atomístico, nos termos da decisão recorrida.

Com efeito, naquela outra sentença, o tribunal decretou que a obrigação principal do contrato-promessa em questão só era exequível se previamente fossem cumpridos deveres acessórios conducentes à autonomização da parcela de 270m2, do prédio em que se integrava.

Como à realização do direito alegado – que não foi excluído nem reconhecido naquela decisão – deve ser assegurado um meio processual adequado (art. 2º, nº 2 do CPC), não podendo ele ficar dependente da livre vontade dos obrigados de cumprirem aqueles deveres acessórios identificados, deve admitir-se a propositura de uma acção tendente à condenação dos réus ao respectivo cumprimento, sendo nessa acção, i. é, na presente acção, que se discutirá se os mesmos existem, subsistem, enfim, e em que termos o seu cumprimento pode ser imposto.

Todavia, o cumprimento desses deveres acessórios só tem sentido na medida em que seja instrumento da realização da obrigação principal.

Significa isto que, na situação em apreço e na sequência da decisão proferida na acção nº 2540/08.4TBVFR, a presente acção só tem sentido, em função do direito invocado resultante do contrato promessa que integra a causa de pedir, desde que se destine a exigir o cumprimento dos deveres acessórios ali identificados, pois deles depende a possibilidade de cumprimento da obrigação principal; mas só terá sentido útil desde que isso redunde na imposição aos RR., isto é, na sua condenação, no cumprimento dessa obrigação principal, de outorga do contrato de compra e venda dessa mesma parcela, como prometido.

Por consequência, e tendo por referência a lição de Anselmo de Castro que supra se citou e a definição do que seja o petitum, entendemos que não poderão considerar-se autonomamente os pedidos formulados nas als. b) e c), relativamente aos descritos sob as als. d) e e). Eles incluem-se num mesmo e único “círculo dentro do qual o tribunal se tem de mover para dar solução ao conflito de interesses que é chamado a intervir” (repetindo-se a citação feita acima). E, neste contexto, os pedidos formulados naquela acção nº 2540/08.4TBVFR e na presente causa resultam como marcadamente distintos, pois o efeito jurídico que a procedência de uma e outra poderiam assegurar é claramente diferente. De resto, isso mesmo nos parece ser inerente à verificação a posteriori, dos termos e fundamentos da decisão de improcedência proferida naquela outra acção: foi por não poder assegurar a prévia realização dos deveres acessórios identificados que improcedeu a pretensão correspondente à realização da obrigação principal. No caso em apreço, esta realização será viável, desde que previamente imposta a condenação à realização dos deveres acessórios.

A isso acresce que, mesmo por referência ao conteúdo do pedido “imediato” em cada um dos processos, também são distintos os pedidos formulados numa e noutra causa: numa, a substituição da declaração negocial dos promitentes faltosos; noutra (esta), a respectiva condenação ao cumprimento das obrigações acessórias e da própria obrigação principal. E, como vimos, a identidade do pedido “imediato” concorre também para a verificação de uma hipótese de identidade de pedidos.

Por fim, mas com não menos relevância para a decisão desta questão, tenha-se em conta o objectivo servido pelo instituto do caso julgado: a prevenção de que o tribunal se veja na contingência de proferir decisão de mérito que contrarie ou repita uma outra, anterior e definitiva. Segundo este critério, logo se vê que a decisão da totalidade dos segmentos do pedido formulado nesta causa de forma alguma põe em crise, contrariando ou descredibilizando, a decisão proferida naquela acção nº 2540/08.4TBVFR. Esta conclusão logo nos deverá levar a rejeitar a hipótese de caso julgado sob análise.

Resta, então, concluir pela não verificação de uma tal hipótese de identidade de pedidos, entre a acção nº 2540/08.4TBVFR e aqueles que, sob as als. d) e e), aparecem deduzidos na presente acção, o que impede que, em relação a estes, se possa dar por verificada a excepção de caso julgado."
 
[MTS]