Oposição à execução;
transacção judicial
1. O sumário de RE 20/4/2017 (1649/15.2T8TMR-A.E1) é o seguinte:
I – A alínea g) do artigo 729.º do Código de Processo Civil impõe dois requisitos para a oposição à execução fundada em transacção judicial: (i) que os factos sejam posteriores à situação factual que conduziu à transacção; (b) que esses factos se encontrem provados por documento;
II – Todavia, em relação a este último requisito, tratando-se de uma formalidade “ad probationem”, pode ser substituído por confissão expressa;
III – Por isso, pode a oposição ser deduzida com tal fundamento, sem que seja junto o documento, contando que o oponente no seu decurso obtenha a confissão do exequente;
IV – Tendo na acção declarativa as partes acordado em transacção que a empregadora pagaria ao trabalhador a quantia de € 30.000,00, em 6 prestações de € 5.000,00 cada, a título de compensação global pela cessação do contrato de trabalho, e sem consignar se tal quantia era líquida ou ilíquida, tendo o Autor/exequente instaurado execução com fundamento que a 1.ª prestação não foi paga pela totalidade do valor de € 5.000,00, é de admitir a oposição à execução, não podendo considerar-se manifestamente improcedente tal oposição deduzida pela executada, com fundamento que a quantia em causa era ilíquida e, por isso, que pagou a prestação em montante inferior por à mesma ter deduzido o devido a título de IRS e descontos para a segurança social.
2. Na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:
"A execução baseia-se no título executivo constituído pela transacção judicial proferida na acção principal (cfr. artigos 703.º e 705.º do Código de Processo Civil).
Como se sabe, é o título executivo que determina o conteúdo e o alcance da execução.
O artigo 729.º, do Código de Processo Civil estabelece taxativamente (no corpo do artigo consta o advérbio «só») os fundamentos de oposição à execução baseada em sentença.
Entre tais fundamentos encontra-se, no que aqui importa analisar, a «[i]nexistência ou inexequibilidade do título [alínea a)] e «[q]ualquer facto extintivo ou modificativo da obrigação, desde que seja posterior ao encerramento da discussão no processo de declaração e se prove por documento» [alínea g)].
Alberto dos Reis (Processo de Execução, I, Coimbra Editora, 1985, pág. 197-201) sustentava, em relação a antecedente norma que corresponde à actual alínea a), que se devia adoptar um «conceito maleável» de inexequibilidade do título, no sentido de «(…) conceito relativo e acomodado às circunstâncias práticas (…)», porquanto «[o] título apresentado pelo exequente é exequível em abstracto, mas não o é em concreto, quer dizer, não pode servir de base àquela execução, que de facto, o exequente promoveu».
Transpondo tal ensinamento para o caso em apreço poder-se-á sustentar que que, embora em abstracto o exequente tivesse o título equivalente a uma 1.ª prestação de € 5.000,00, já em concreto não teria esse título, porquanto no entendimento da executada aquela importância era ilíquida e estava sujeita aos descontos em sede de IRS e para a segurança social, pelo que o título, em concreto, apenas corresponderá ao valor da prestação que pagou.
Assinale-se, em breve parêntesis, que com tal argumentação não pretendemos, aqui e agora, tomar posição sobre a interpretação da transacção judicial, designadamente se o valor acordado estava sujeito a retenção em sede de IRS e descontos para a segurança social, e até sobre qual o montante desses descontos: (i) desde logo, porque o que está em apreciação é o despacho liminar que indeferiu os embargos; (ii) além disso, quanto ao clausulado, sempre dependerá da prova a produzir e da interpretação daquele; (iii) finalmente, porque o saber se sobre a quantia objecto de transacção incidem ou não descontos em sede de IRS e para a segurança social é uma questão a dirimir noutra sede, entre o sujeito passivo (autor/exequente) e administração fiscal e/ou entre aquele e a segurança social.
O que se pretende deixar realçado com tal argumentação é tão só que, face aos princípios gerais de tributação do trabalho dependente, constitui obrigação geral das entidades devedoras dos rendimentos de trabalho procederem à retenção na fonte de IRS e para a segurança social [cfr. artigo 2.º, n.º 4 e 99.º) do Código do IRS].
Fechado o parêntesis, e retomando o caso em apreço, sendo o valor da prestação acordada e que constituía o título executivo, em abstracto, de € 5.000,00, mas não se precisando se esse valor era líquido ou ilíquido, poder-se-á sustentar que o título dado à execução é inexequível, e daí que a embargante tenha procedido ao pagamento dessa prestação, através da entrega ao embargado/exequente de uma parte da quantia e o restante por descontos legais até completar aquele valor.
Contudo, tal interpretação – maleável – de inexequibilidade do título não se afigura consensual, suscitando dúvidas na sua aceitação, porquanto, como já se afirmou, o artigo 729.º é taxativo quanto aos fundamentos da oposição à execução, não permitindo uma interpretação extensiva, o que implicará que a oposição à execução terá que se basear num dos fundamentos ali expressamente previstos.
Assim, como decorrência lógica, admite-se que se conclua que o fundamento da oposição não se ajusta ao preceituado na analisada alínea a) do artigo 729.º.
Mas já se aceita que o fundamento invocado pela embargante para deduzir os embargos se subsuma à citada alínea g) do artigo 729.º.
Com efeito, são dois os requisitos que esta alínea impõe para que os factos modificativos ou extintivos da obrigação constituam fundamento de oposição à obrigação:
i) que esses factos seja posteriores ao encerramento da discussão no processo de declaração, o que vale por dizer que esses factos sejam posteriores à situação factual que conduziu à transacção judicial, supervenientes;
ii) que esses factos se encontrem provados por documento.
Não pode olvidar-se que, por um lado, a sentença, ou a transacção judicial que lhe é equiparada, decide a relação material e tem força obrigatória dentro do processo e fora dele e, por outro, a sentença condenatória constitui inequivocamente título executivo, sendo, aliás, o título executivo por excelência (cfr. artigos 619.º e 705.º), ambos do Código de Processo Civil).
Por isso, em nome da certeza e segurança jurídica justifica-se que se imponham restrições quanto à admissibilidade de oposição à execução tendo por base factos modificativos ou extintivos da obrigação titulada pela sentença, assim se evitando que, de forma generalizada, através da oposição à execução se destrua a força de caso julgado, como ainda que através da oposição à oposição se renove o litígio já decidido na sentença dada à execução.
Isto sem prejuízo de verificados, obviamente, os respectivos pressupostos, através de um recurso de revisão se poder modificar a decisão transitada em julgado, e, obtida a mesma, se promover subsequentemente a extinção da execução ou da venda que tenha sido efectuada (cfr. artigos 696.º e 839.º, n.º 1, a), ambos do Código de Processo Civil).
No caso em apreço, é pacífico que os factos alegados pela recorrente/embargante para extinguir a obrigação – a alegada dedução que fez na prestação para efeitos de pagamento de IRS e de desconto para a segurança social –, são posteriores à transacção judicial, pelo que se mostra preenchido o primeiro dos requisitos mencionados.
Quanto ao 2.º requisito, de acordo com o disposto no artigo 364.º, n.º 1, do Código Civil, quando a lei exigir, como forma da declaração negocial, documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior; porém, se resultar que o documento é exigido apenas para prova da declaração, pode ser substituído por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, desde que, neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório (n.º 2 do mesmo artigo).
Como escreve Mota Pinto (Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 1999, págs. 436-437), o n.º 1 do referido artigo consagra o princípio geral, segundo o qual os documentos autênticos, autenticados ou particulares são formalidade “ad substantiam”; já do n.º 2 infere-se que «(…) quaisquer documentos (autênticos ou particulares) serão formalidades «ad probationem», nos casos excepcionais em que resultar claramente da lei que a finalidade tida em vista ao ser formulada certa exigência de forma foi apenas a de obter prova segura acerca do acto e não qualquer das outras finalidades possíveis do formalismo negocial (…). Admite-se nestes casos, como meio de suprimento da falta do documento, a confissão expressa».
Ou seja, quando a exigência do documento for exclusivamente determinada por uma estrita intenção probatória – no dizer da lei “apenas para prova da declaração” – o mesmo pode ser substituído por confissão expressa.
É o que se verifica no caso em presença: a exigência de documento quanto à modificação ou extinção do acordo judicial não constitui em si mesma condição de validade dessa modificação ou extinção, sendo apenas necessária à prova dessa modificação ou extinção.
Assim, o que está em causa com a específica exigência do documento é uma razão de ordem processual, de protecção à própria execução, de forma a que esta não seja afectada com uma oposição baseada em factos que, normalmente, sem serem acompanhados de prova documental se revelam não credíveis.
No ensinamento de Anselmo de Castro (A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 3.ª Edição, 1977, Coimbra Editora, pág. 292), que embora no domínio de anterior legislação se afigura manter-se actual, «o requisito está ligado ao efeito da admitida suspensão da execução em consequência da oposição, tendo por fim evitar que a acção executiva seja paralisada por oposições com base em factos que normalmente na circunstância se provam por documento e que dele desacompanhados se apresentam como não dignos de credibilidade».
Ora, voltando ao caso em apreciação, a embargante/executada não juntou prova dos alegados descontos feitos na prestação que pagou ao embargado/exequente referentes a IRS e segurança social: no entanto, importa ter presente, por um lado, que o próprio embargado não parece pôr em causa que a embargante tenha feito os descontos em causa (embora os considere indevidos) e, por outro, como já resulta do que se deixou afirmado, por o documento poder ser substituído por confissão – já que se trata uma formalidade ad probationem – ainda que não possuísse o necessário(s) documento(s) comprovativo(s) do(s) descontos(s) efectuado(s), sempre a oposição poderia ser deduzida e no seu decurso obter a confissão do exequente.
Assim, entende-se verificar-se fundamento de oposição à execução. Isto tendo em conta, volta-se a sublinhar, que não cumpre, aqui e agora, tomar posição sobre a interpretação da transacção judicial.
Refira-se ainda que a decisão recorrida invoca também o disposto no artigo 732.º, alínea c) do Código de Processo Civil – de acordo com o qual os embargos devem ser liminarmente indeferidos se «[f]orem manifestamente improcedentes» -, se bem que a finalizar recuse a oposição à execução apenas ao abrigo do disposto na alínea b) do referido artigo, ou seja, por o fundamento não se ajustar ao disposto nos artigos 729.º a 731.º.
Seja como for, o certo é que como decorrência lógica do que se deixou afirmado, não se detecta que na fase liminar se possa afirmar que a oposição é destituída de qualquer fundamento, o mesmo é dizer que é manifesta a sua improcedência; para reforçar este entendimento basta atentar no que se deixou expresso no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-02-2009 (Recurso n.º 2057/08, da 4.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt), também convocado pela recorrente, que concluiu nos seguintes termos:
«I - Tendo a acção declarativa (em que o autor tinha pedido o pagamento da quantia de € 345.761,64, a título de trabalho suplementar e a quantia de € 230.000, a título de danos não patrimoniais, terminado por transacção judicial que englobou, para além daqueles pedido, a cessação do próprio contrato de trabalho) terminado por transacção judicial, na qual a ré se obrigou a pagar ao autor “a quantia de € 285.000,00 a título de compensação pecuniária de natureza global pela cessação do contrato de trabalho”, sendo que nesse valor “já está incluído o valor do pedido de danos não patrimoniais”, deve entender-se que a compensação global a pagar ao autor era ilíquida e que a mesma não incluía a discriminação dos danos.
II - Assim, tendo a ré pago ao autor a quantia de € 222.049,48 e retido na fonte a quantia de € 62.950,52, a título de IRS, que entregou nas Finanças, mostra-se cumprida a obrigação que a ré tinha sido assumido na aludida transacção, o que implica a procedência da oposição por ela deduzida à execução que o autor lhe havia instaurado, para obter o pagamento da quantia que lhe fora retida a título de IRS».
Concluiu-se, por isso e mais uma vez, que não existe fundamento para, nesta fase processual, recusar a oposição apresentada pela recorrente."
[MTS]