Processo executivo;
deserção da instância; competência funcional
1. O sumário de RE 23/3/2017 (3133/07.9TJLSB.1.E1) é o seguinte:
I - Desde a anterior reforma do processo executivo, que o actual CPC nessa parte manteve, a instância do processo executivo não é declarada extinta por sentença, decorrendo automaticamente da verificação das situações elencadas no artigo 849.º, n.º 1, do CPC, e não carecendo de intervenção judicial ou da secretaria, conforme expressamente declara o n.º 3 do preceito.
II - Conjugando este preceito com o estatuído nos artigos 719.º e 723.º do CPC, que regem respectivamente quanto à repartição de competências entre o agente de execução, a secretaria e o juiz, a competência para declarar a extinção da execução, também por deserção da instância, está primeiramente cometida ao agente de execução, salvo se tiver sido suscitada ao juiz pelo agente de execução ou pelas partes (alínea d) do artigo 723.º do CPC).
III - Tendo presente a intenção do legislador e ainda o dever de gestão processual do juiz, a quem incumbe, por força do artigo 6.º, n.º 1, do CPC, dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, isto sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, mal se compreenderia que estando pendente em tribunal processo executivo em que se verificassem os requisitos para declarar a extinção da instância, por deserção, o juiz não o pudesse fazer, quando o agente de execução a quem está cometida tal competência, não a actuou.
IV - Porém, para que o faça mister é que esteja comprovada nos autos a negligência do exequente em promover os termos da acção executiva.
V - Não se podendo concluir que o agente de execução aja em nome do exequente por dele ter poderes de representação, as omissões que lhe são imputáveis não se repercutem na esfera jurídica daquele e, por isso, estando demonstrada nos autos apenas a inércia do agente de execução, esta não se repercute na esfera jurídica do exequente, já que não é a omissão daquele, mas a inércia deste, que se pretende sancionar com a deserção da instância executiva.
2. Na fundamentação do acórdão diz-se o seguinte:
"[...] a maioria da jurisprudência publicada dos tribunais superiores tem entrado na apreciação da concreta verificação dos pressupostos da deserção da instância, sufragando o entendimento de que «com a extinção da figura da interrupção da instância, o requisito da negligência das partes em promover o impulso processual transitou para a deserção, cfr. art. 281º, do Código de Processo Civil. II – No processo executivo, pese embora, se considere a instância deserta “independentemente de qualquer decisão judicial”, cfr. nº 5, daquele art. 281º, não se prescinde igualmente da verificação da negligência da parte na observância do ónus de impulso processual. III – Sendo que a paragem do processo por mais de seis meses, para que se considere deserta a instância, tem de ser devida a uma omissão culposa do ónus do impulso processual e entre elas, a paragem e a omissão tem de haver um nexo de causalidade adequada», ou ainda, noutro modo de dizer, que «A decisão judicial de deserção da instância justifica-se pela necessidade de observar o requisito da negligência das partes em promover os termos do processo, o que pressupõe, um exame crítico ao comportamento das partes no processo e, para o efeito, a sua audição prévia de forma a melhor avaliar se a falta de impulso processual é imputável ao comportamento negligente de alguma delas ou de ambas, desde logo em observância do artigo 3.º, nº 3, do CPC quando se consigna que o juiz deve observar e fazer cumprir o princípio do contraditório ao longo de todo o processo» [Cfr. Ac. TRP de 14-03-2016, proferido no processo n.º 317/06.0TBLSD.P1, e Ac. TRG de 06-10-2016, proferido no processo n.º 1128/08.4TBBGC-B.G1 e, no mesmo sentido, Ac. TRL de 29-10-2015, proferido no processo n.º 1302/13.1TBPDL.L1-2].
Concordamos com a afirmação expressa nos referidos arestos deste Tribunal da Relação e do Tribunal da Relação de Guimarães, que, aliás, já afirmámos também no Acórdão de 30-11-2016, proferido no processo n.º 3443/14.9T8STB.E1, a respeito da extinção da execução por via de desistência do pedido, porquanto desde a anterior reforma do processo executivo, que o actual CPC nessa parte manteve, a instância do processo executivo não é declarada extinta por sentença [...], decorrendo automaticamente da verificação das situações elencadas no artigo 849.º, n.º 1, do CPC, e não carecendo de intervenção judicial ou da secretaria, conforme expressamente anuncia o n.º 3 do preceito.
Assim, conjugando esta norma com o estatuído nos artigos 719.º e 723.º do CPC, que regem respectivamente quanto à repartição de competências entre o agente de execução, a secretaria e o juiz, a competência para declarar a extinção da execução, também por deserção da instância, está primeiramente cometida ao agente de execução, salvo se tiver sido suscitada ao juiz pelo agente de execução ou pelas partes (alínea d) do artigo 723.º do CPC).
No mesmo sentido aponta o artigo 281.º, n.º 5, do CPC ao estabelecer que, no processo de execução, considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.
Assim, ao agente de execução compete verificar não só se o processo se encontra a aguardar impulso processual por mais de seis meses, como se tal paralisação se deve a negligência das partes, pois só nesta assenta a consequência de se declarar deserta a instância, por deserção.
Porém, significa isto que, está absolutamente vedado ao juiz declarar tal deserção em qualquer situação?
Afigura-se-nos que não.
Efectivamente, basta pensarmos na situação em que, estando o processo «parado» há mais de seis meses por falta do devido impulso processual do exequente, o agente de execução não cumpra o desiderato do legislador, não extinguindo a execução. A levarmos ao extremo a incompetência funcional do juiz, tal significaria a «eternização» da acção executiva pendente no Tribunal, podendo «acarretar um impacto sistémico cujos efeitos também não são queridos nem foram perspectivados pelo legislador, sempre que sejam levadas à letra todas as repercussões processuais associadas à incompetência funcional» [Cfr. o recente Ac. deste TRE de 26-01-2017, proferido no processo n.º 232/08.3TBCUB-A.E1, disponível em www.dgsi.pt].
Ora, tal não foi manifestamente a intenção do legislador, aliás expressamente declarada ainda anteriormente à entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, de 28 de Junho, através do encurtamento do prazo para a extinção da instância executiva por deserção, nos termos referidos no artigo 3.º, n.º 1, do DL n.º 4/2013, que sob a epígrafe “Extinção da instância por falta de impulso processual”, estatuiu que “Os processos executivos cíveis para pagamento de quantia certa que se encontrem a aguardar impulso processual do exequente há mais de seis meses extinguem-se”.
Certo que no indicado artigo não se exigia que a falta de impulso processual fosse devida a negligência do exequente em promover os regulares termos do processo, no preâmbulo do diploma, o legislador foi claro quanto à razão de ser da norma, afirmando que: «pretende-se responsabilizar o exequente, enquanto principal interessado no sucesso da execução, pela sua forma de atuação no processo. Dependendo os resultados da execução em grande medida da rapidez com que o processo é conduzido, a inércia do exequente em promover o seu andamento não pode deixar de legitimar um juízo acerca do interesse no próprio processo. Assim sendo, se as execuções estiverem paradas, sem qualquer impulso processual do exequente, quando este seja devido, há mais de seis meses, prevê-se que as mesmas se extingam, pois como já atrás se explicitou, importa que os tribunais não estejam ocupados com ações em que o principal interessado aparenta, pela sua inércia, não desejar que o processo prossiga os seus termos e se conclua o mais rapidamente possível».
Tendo presente a intenção do legislador e ainda o dever de gestão processual do juiz, a quem incumbe, por força do artigo 6.º, n.º 1, do CPC, dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, isto sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, mal se compreenderia que estando pendente em tribunal processo executivo em que se verificassem os requisitos para declarar a extinção da instância, por deserção, o juiz não o pudesse fazer, quando o agente de execução a quem está cometida tal competência, não a actuou. [...]
Porém, para que o juiz declare a deserção da instância executiva mister é que esteja comprovada nos autos a negligência do exequente em promover os termos da acção executiva.
De facto, «ainda que, no domínio do processo executivo, a deserção da instância opere automaticamente – independentemente, portanto, de qualquer decisão judicial que a declare – ela não se basta com a mera circunstância de o processo estar parado ou não apresentar qualquer movimento processual durante mais de seis meses; para que tal deserção se tenha por verificada, será ainda necessário que essa circunstância se deva a uma falta de impulso processual que possa ser imputada a negligência das partes, sendo irrelevante, para esse efeito, a falta de impulso processual que apenas é imputável ao agente de execução.
Estando o processo a aguardar, há mais de seis meses, a realização de diligências que são da competência do agente de execução, não poderá concluir-se, sem mais, que a falta de movimento processual é imputável a negligência do exequente, sem que exista, pelo menos, uma notificação que transfira para este o ónus de reagir e tomar posição sobre a inércia e o incumprimento do agente de execução» [Cfr. Ac. TRC de 14-06-2016, proferido no processo n.º 500/12.0TBAGN.C1, disponível em www.dgsi.pt].
Assim, volvendo ao caso em apreço verificamos que logo no requerimento executivo a exequente requereu a realização de penhora sobre os bens móveis que indicou, penhora essa que em momento algum foi sequer tentada pelo agente de execução, a não ser já depois do despacho judicial proferido, para averiguar a razão de o processo se encontrar parado há mais de seis meses.
Acresce que, ao agente de execução incumbia informar o exequente das diligências efectuadas, isto é, da realização ou não da penhora e, neste último caso, dos motivos da frustração da mesma para que aquele pudesse então requerer o que entendesse por conveniente. Porém, o agente de execução apenas cumpriu tal dever que sobre si impende por força da previsão ínsita no artigo 754.º, n.º 1, alínea a), do CPC, quanto às diligências que efectuou através da consulta às bases de dados, nunca até ao sobredito momento tentando efectuar ou justificar a razão pela qual não levou a cabo a diligência de penhora que havia sido requerida pelo exequente.
Ora, apesar de resultar de uma dessas diligências que se encontra registado a favor do executado um veículo automóvel, tal não significa que o exequente tivesse que requerer a respectiva penhora, quando havia oportunamente requerido a penhora em outros bens móveis, que o agente de execução não tentou.
Conclui-se, pois, da tramitação processual relevante supra exposta que o processo não esteve parado por falta do devido impulso processual do exequente, mas apenas pela não realização pelo agente de execução da diligência de penhora dos bens que aquele havia indicado.
Tem sido entendido em alguns arestos [Cfr. exemplificativamente o Ac. TRG de 23-10-2014, proferido no processo n.º 2204/06.3TBFLG-B.G1, disponível em www.dgsi.pt], e foi o entendimento expresso na decisão recorrida, que, na ausência de iniciativa do agente de execução, e tendo o exequente acesso, através do sistema informático de suporte à actividade dos tribunais das diligências efectuadas pelo agente de execução, impunha-se-lhe que diligenciasse pelo regular andamento do processo, repercutindo assim na esfera do exequente a omissão da efectivação das diligências tendentes à penhora de bens, por banda do agente de execução.
Este entendimento, expresso, designadamente no Ac. TRG de 12-09-2013 [Proferido no processo n.º 342/12.2TJVNF.G1, e disponível em www.dgsi.pt, citando no sentido dessa qualificação, Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 4ª ed., pp. 110 e 111] tem por pressuposto que o agente de agente é uma espécie de mandatário do exequente, daí que, «(e embora a sua missão esteja também dotada de características de oficialidade pública) está ao serviço dos interesses do credor exequente, funcionando basicamente como um mandatário deste (…). Portanto, a ação do agente de execução vale apenas como intermediação, estando sempre o exequente sob a obrigação e em condições de impulsionar a execução (rectius, de a fazer impulsionar pelo respetivo agente de execução), e se tal não acontece é a ele, a parte processual e substantiva, que é imputável a inação que se registe na execução».
Porém, sendo certo que o exequente tem a possibilidade de nomear o agente de execução e de controlar a respectiva actuação nos autos, podendo inclusivamente requerer a respectiva substituição, não é menos certo que «o preenchimento da causa de extinção da instância executiva assenta e pressupõe que os autos estejam a aguardar um impulso processual cuja iniciativa caiba ao exequente e que este esteja ciente da necessidade de tal iniciativa, sendo que, fora desse duplo condicionalismo, não é possível concluir pela inércia do exequente, legitimadora do preenchimento da presunção de desinteresse e abandono da instância, subjacente a este normativo» [Cfr. Ac. TRG de 24-10-2013, processo n.º 224/09.5TBBRG.G1, disponível em www.dgsi.pt. No mesmo sentido, citado Ac. TRC de 14-06-2016].
De facto, sufragamos a afirmação de Rui Pinto [In, Manual da Execução e Despejo, pág. 134, também referido no recente Ac. TRE de 09-03-2017, proferido no processo n.º 297/108TBMRA-A.E1, desta secção, ainda não publicado] de que o agente de execução não é mandatário, com poderes de representação do exequente, mas um auxiliar de justiça do Estado, escolhido pelo exequente.
Ora, «sendo esta a veste do agente de execução, a sua actuação omissiva, consistente em não andar com o processo, não se “repercute” automática e irreversivelmente sobre o exequente - sem que este seja notificado para se pronunciar sobre a paralisação processual decorrente de tal actuação omissiva - e não pode valer e ser iuris et de iure considerada como inobservância, por negligência, do ónus de impulso processual por parte do exequente» [Cfr. Ac. TRC de 01-12-2015, proferido no processo n.º 2061/10.5TBCTB-A.C1, disponível em www.dgsi.pt.].
Deste modo, não se podendo concluir que o agente de execução aja em nome do exequente por dele ter poderes de representação, as omissões que lhe são imputáveis não se repercutem na esfera jurídica do exequente e, por isso, estando demonstrada nos autos apenas a inércia daquele, esta não se repercute na esfera jurídica do exequente, já que não é a omissão daquele (passível de eventual punição disciplinar), mas a inércia deste, que se pretende sancionar com a deserção da instância executiva [Cfr., neste sentido, também o Ac. TRL de 29-10-2015, e disponível em www.dgsi.pt.]."
3. [Comentário] O acórdão -- que tem a qualidade a que a Relatora nos habituou -- não merece nenhuma censura: o agente de execução é um órgão da execução, não certamente um mandatário (e menos ainda um representante) do exequente, pelo que as omissões daquele agente não se repercutem na posição processual do exequente.
Não pode deixar de se agradecer a atenção dispensada no acórdão a uma opinião defendida neste Blog.
MTS
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