"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



11/09/2017

Jurisprudência (681)


Caso julgado;
limites subjectivos



I. O sumário de RC 4/4/2017 (210/08.2TBLMG-B.C1) é o seguinte:

1. A afectação prática/económica não se pode confundir com a afectação jurídica, sendo que apenas esta última poderia relevar para a qualificação do credor hipotecário como terceiro juridicamente interessado e para o afastar da eficácia do caso julgado decorrente do trânsito da sentença que reconheceu ao promitente-comprador o direito de retenção sobre o imóvel prometido.  

2. Compulsando a matéria de facto considerada como provada, in casu, parece-nos que, efectivamente, se verificam os pressupostos para que possa operar a pretendida resolução do contrato promessa em causa, com base em incumprimento definitivo por parte dos promitentes vendedores insolventes.

II. Na fundamentação do acórdão afirma-se o seguinte:

"Se uma decisão reconhece o direito de propriedade sobre uma parcela de terreno e condena o R. à sua restituição e à demolição da construção que na mesma efectuou, não pode o R. – por força da autoridade do caso julgado da primeira decisão – em nova acção, ainda que com fundamento em acessão industrial imobiliária, pedir o reconhecimento do direito de propriedade sobre a mesma parcela de terreno; apesar de não se verificar a excepção dilatória do caso julgado, atenta a diversidade da causa de pedir, a segurança e a certeza jurídica decorrentes do trânsito em julgado da primeira decisão obstam a que, em nova acção, se questione o direito de propriedade e as obrigações de restituição e de demolição reconhecidas na primeira acção com base numa realidade que já se verificava aquando da primeira acção e que aí poderia/deveria ter sido invocada pelo R. (quer para impedir a procedência da acção, quer para sustentar, em sede reconvencional, o direito potestativo de acessão imobiliária.


Se uma decisão condena no pagamento de uma indemnização, não pode aquele que é ali condenado vir pedir, com base no enriquecimento sem causa, a restituição da quantia paga; impedimento esse que resulta, não da excepção de caso julgado (face à diversidade das causa de pedir), mas da autoridade de caso julgado formado pela primitiva acção/decisão.

Se uma decisão condena no preço (duma compra e venda) duma coisa, não pode o condenado, em posterior acção, vir invocar vício invalidante de tal compra e venda; impedimento que também resulta da autoridade de caso julgado formado pela primitiva acção/decisão.

Se numa acção de reivindicação se reconhece a propriedade, tal vale como autoridade de caso julgado num processo posterior em que o proprietário requer a condenação da contraparte no pagamento duma indemnização pela ocupação indevida do imóvel.

Exemplos que têm em comum a identidade de sujeitos (em ambas as acções: na já decidida e na nova acção).

O que não é o caso da situação sob recurso – em que o aqui recorrente e credor D... não foi parte nos anteriores processos – que convoca outro tipo de considerações sobre o caso julgado:

Designadamente, que o caso julgado só produz efeitos entre as partes, projectando a sua eficácia apenas nas relações entre as partes do processo; que aos terceiros que não participam no processo, que não hajam tido a oportunidade de defender os seus interesses – que podem naturalmente colidir, no todo ou em parte, com os da parte vencedora – não pode ser oposta a força de caso julgado duma decisão (a inoponibilidade do caso julgado a terceiros representa um corolário do princípio do contraditório).

O que não significa nem “que todos aqueles que não figuram no processo como partes possam ignorar as sentenças proferidas e transitadas nas diferentes acções, agindo como se elas não existissem na esfera das realidades jurídicas” [Prof. Antunes Varela, Manual de Processo, 1.ª ed., pág. 706]; nem, no pólo oposto, a doutrina dos efeitos reflexos do caso julgado em relação a terceiros; mas apenas que a sentença acaba por definir, perante todos, as situações jurídicas das partes, acabando por irradiar repercussões que são mera consequência do modo como o direito substantivo conexiona as situações jurídicas desses terceiros com as situações jurídicas das partes.

Tudo estando pois em saber “em que medida terceiros podem estar sujeitos, já não à autoridade do caso julgado, que, enquanto tal, não os atinge, mas à eficácia da sentença, quer no plano dos seus efeitos práticos ou de facto, quer no dos seus efeitos jurídicos indirectos.” [Lebre de Freitas, CPC, Vol. 2.º, anotação ao então art. 674.º, pág. 685].

Sendo justamente em tal ponto do problema que “é usual distinguir os terceiros juridicamente indiferentes dos terceiros juridicamente interessados: os primeiros (juridicamente indiferentes) são, ou pretendem ser, titulares duma situação jurídica que não pode, pela sua natureza, ser atingida pelo caso julgado, mas cuja consistência prática o caso julgado pode afectar, como é o caso do credor comum, cujo direito de crédito permanece, não obstante o desaparecimento de um bem do património do seu devedor diminuir a garantia que este representa para ele e restantes credores; juridicamente interessados são os titulares, ou pretensos titulares, de situações jurídicas que, a ser-lhes oposto o caso julgado, por ele podem ser, em si, afectados, quer por resultarem suprimidas, quer por terem o seu conteúdo modificado [Lebre de Freitas, local citado].

Ou, nas palavras do Prof. Antunes Varela [Local citado, pág. 708]:

“Há, em 1.º lugar, as pessoas a quem podemos chamar terceiros juridicamente indiferentes. São as pessoas a quem a sentença não causa prejuízo jurídico, por não bolir com a existência ou validade do seu direito, embora possa afectar a sua consistência prática ou económica. (…) Nestes casos, em que a decisão contida na sentença não causa prejuízo jurídico ao direito de terceiro, nenhuma razão há para recusar a invocação do caso julgado perante esse terceiro, visto a regra da eficácia relativa do caso ter por fim evitar que terceiros sejam prejudicados, na consistência jurídica ou no conteúdo do seu direito (sem eles terem tido a possibilidade de se defender e esse risco não ocorrer em tal tipo de situações). Pode, por conseguinte, dizer-se que, em relação aos terceiros juridicamente indiferentes, a sentença impõe-se-lhes”.

E há as situações “em que as pessoas se arrogam a titularidade de uma relação ou posição incompatível com a reconhecida na sentença.

Na acção de reivindicação instaurada por A contra B, a sentença reconhece, por hipótese, a propriedade de A. sobre a coisa, sendo certo que C se arroga a qualidade de proprietário da mesma coisa. (…)

Nos casos deste tipo, nenhuma razão há, de acordo com o espirito da norma que prescreve a eficácia relativa do caso julgado, para impor a sentença ao terceiro, titular da posição incompatível com a declarada na sentença transitada.

Pelo contrário.

Se a sentença proferida for invocada contra terceiro, deve reconhecer-se a este a ampla possibilidade de alegar e demonstrar a existência do seu direito, incompatível com a decisão passada em julgado.”

Ora, salvo o devido respeito, a situação sob recurso corresponde à primeira hipótese, uma vez que a decisão proferida nas anteriores sentenças não bole, não contende com a existência ou validade do direito do recorrente, embora possa afectar a sua consistência prática ou económica, na medida em que o direito de retenção tem efeitos, a nível da graduação de créditos, relativamente aos direitos que são conferidos pela hipoteca.

Pelo que, se tem de concluir que, efectivamente, por força derivada da eficácia do caso julgado das sentenças anteriores, estão resolvidos os contratos promessa celebrados entre promitente vendedor e promitentes compradores, ocasionado pelo incumprimento culposo e definitivo dos promitentes vendedores, com as consequências daí decorrentes.

Sobre esta problemática, entre outros, pode ver-se o Acórdão da Relação do Porto, de 13/01/2015, Processo n.º 5729/09.5YYPRT-C.P1, disponível no respectivo sítio do itij, onde se conclui no sentido ora propugnado, dado que, como ali se refere e acima já se fez referência, não se pode “confundir afectação prática/económica com afectação jurídica, sendo certo que (…) só esta última poderia relevar para a qualificação do credor hipotecário como terceiro juridicamente interessado e para o afastar da eficácia do caso julgado decorrente do trânsito da sentença que reconheceu ao promitente-comprador o direito de retenção sobre o imóvel prometido.”."

III. [Comentário] Em substituição da pouco precisa distinção entre terceiros juridicamente indiferentes e terceiros juridicamente interessados há um critério muito mais seguro para verificar se um terceiro -- isto é, se alguém que não foi parte num processo -- fica abrangido pelo caso julgado da decisão nele proferida. O critério é o seguinte: ficam abrangidos pelo caso julgado todos aqueles que não sejam titulares, de acordo com o direito positivo, de nenhum direito incompatível com a decisão transitada. Se assim suceder, é claro que, qualquer que seja a repercussão da decisão transitada na sua esfera jurídica, o terceiro fica vinculado ao caso julgado.

MTS