"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



21/09/2017

Jurisprudência (689)


Processo de inventário; processo judicial;
excepção de litispendência


1. O sumário de RP 6/4/2017 (14535/15.7T8PRT.P1) é o seguinte: 

Há litispendência entre um processo de inventário (subsequente ao divórcio) e uma acção intentada por um dos ex-cônjuges em que se pede o reconhecimento do direito de propriedade de bens susceptíveis de serem arrolados nesse inventário. 

2. No relatório e na fundamentação do acórdão escreveu-se o seguinte:

"B…, na Rua …, n° …, ….-… Porto, propôs contra C…, residente na …, n.°…, …, ….-… Porto, acção com processo comum, pedindo, na sua procedência:

a) Declarar-se o direito de propriedade do A. sobre todos os bens imóveis e móveis identificados no art° 10° do articulado;
b) Ser a R. condenada a:
1) Reconhecer o direito de propriedade dos bens imóveis e móveis identificados no art° 10° do Articulado.
2) Entregar todos os bens móveis descritos no art° 10° do articulado, que tem usufruído sem consentimento do A. em bom estado de conservação.

Alega para tanto que foi casado com a R. sem precedência de convenção antenupcial, sob o regime de comunhão de adquiridos, casamento dissolvido por sentença do Tribunal de Família e Menores da Comarca do Porto, Instância Central - Família e Menores se 25/11/2014. O A. em solteiro era proprietário e possuidor de vasto património, constituído por valores monetários, decorrente da sua profissão de médico e de doações em dinheiro realizadas pelos seus pais em solteiro e em casado, que pertence exclusivamente ao A.. Era em solteiro proprietário em compropriedade de um apartamento no Algarve, que foi objecto de venda na constância do casamento. O produto da venda desse imóvel foi investido na aquisição de imóveis ao longo do tempo, juntamente com o dinheiro que era legítimo e único titular e proprietário depositado nos bancos e em nome do A.. O A. é legitimo proprietário de bens imóveis e bens móveis que discriminadamente relaciona, e que entraram no seu património que obteve por via do produto do seu trabalho em solteiro, de doações dos seus pais e por partilha do acervo hereditário por morte do pai do A., pretendendo ver reconhecido o seu direito sobre tais bens como sendo bens próprios. Decorrente do divórcio, está impedido de usufruir desses bens, cuja posse a R. lhe impede, e que se encontram na casa de morada de família, e habitada pela R., estando esta a usufruir sem título.

Citada a ré contestou, além do mais, deduzindo a excepção dilatória da litispendência, dizendo que o aqui autor instaurou inventário para partilha dos bens do casal dissolvido, que se encontra a correr termos sob o n.° 1760/15. no Cartório Notarial da Dra. D…, em que a aqui ré, aí requerida, foi citada, encontrando-se a correr o prazo para reclamar da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal. Posteriormente, a 8 de Junho de 2015 o Autor instaurou a presente acção para reconhecimento do direito de propriedade sobre os bens imóveis e móveis que compõem o acervo patrimonial conjugal. Sustenta assim que há litispendência entre as duas acções, porquanto existe identidade dos sujeitos e da causa de pedir, pretendendo-se, quer na presente acção como no processo de inventário, no que aos bens em questão diz respeito, obter o mesmo efeito jurídico, o reconhecimento da titularidade e propriedade dos bens e respectiva liquidação e entrega.

O autor respondeu à matéria da referida excepção sustentando a sua improcedência. 
Findos os articulados, a Mma. Juíza proferiu saneador sentença, julgo procedente a invocada excepção dilatória da litispendência, em consequência do que absolveu a Ré da instância. [...]

Nos termos do art. 580.º, n.º 1, do CPC, a litispendência pressupõe a repetição de uma causa, estando a anterior ainda em curso. A litispendência deve ser deduzida na acção proposta em segundo lugar, considerando-se proposta em segundo lugar a acção para a qual o réu foi citado posteriormente (art.º 582.º, n.ºs 1 e 2). O artigo 581.º prevê os requisitos da litispendência (como também do caso julgado).

Assim, refere o nº 1 que “Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”.
 
“Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica” – nº 2.

“Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico – nº 3.

“Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. Nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas acções constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido” – nº 4.

A excepção dilatória da litispendência visa obstar a que a mesma questão jurídica, materializada na formulação da mesma pretensão, com base na mesma factualidade, seja objecto de duas ou mais acções que tenham as mesmas partes, e a sua verificação conduz à absolvição da instância. (Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1980, pág. 306). Estes princípios estão consagrados no n.º 2 do mesmo artigo, quando refere “Tanto a excepção da litispendência como a de caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior”, como é reconhecido tanto pela doutrina como pela jurisprudência.

Em princípio, o âmbito da litispendência é o mesmo que o do caso julgado. Todavia é-o apenas em princípio, pois há que atender à função de cada um dos elementos que concorrem para a solução dentro de um e outro instituto. O que interessa, essencialmente, é o que constitui o objecto da acção e não questões de natureza prejudicial ou de defesa. Haverá litispendência e caso julgado para os pedidos que venham a formular-se na acção e em qualquer momento. Ter-se-á de analisar causa de pedir e pedidos em função da litispendência e caso julgado, que podem não ser coincidentes. (Anselmo de Castro, Direito Processo Civil, Vol. II, pag. 245 e segts.)

Segundo Alberto do Reis, CPC. Anotado, Vol. III, 1950, pág. 95, quando haja dúvidas sobre a identidade das acções, deve presidir o critério, deve lançar-se mão do princípio segundo o qual o tribunal pode correr o risco de contradizer ou reproduzir decisão proferida na primeira acção. Se isso acontecer, então estaremos perante duas acções idênticas. Por sua vez, Antunes Varela, em Manual de Direito Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, pag. 302, põe em destaque, para efeitos de sabermos se estamos perante repetição de acções, o elemento formal (identidade de sujeitos, causa de pedir e pedido) e a directriz substancial consignada no artigo 580.º n.º 2 do CPC., traduzida no perigo de o tribunal ser colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior. E, foca não só a acção no plano do pedido, mas também nos fundamentos da defesa, como sejam excepções peremptórias que interfiram com a prossecução ou não do pedido. E, se porventura os fundamentos de defesa vierem a ser causa de pedir noutra acção em que aquele que era réu na primeira acção passou a ser autor na segunda, apesar de não haver identidade de pedidos, a questão central de o tribunal ser colocado em contradizer ou reproduzir uma decisão anterior é patente, segundo este autor. E, sendo assim, justificam-se a litispendência e o caso julgado para evitar este perigo.

E neste sentido, é dominante a jurisprudência do STJ. em que destaca, como fundamentos da litispendência e do caso julgado, para além do elemento formal (identidade de sujeitos, causa de pedir e pedido), o elemento material consignado no artigo 580.º n.º 2 do CPC. E dá-lhe ênfase de molde a que prevaleça, em certos casos, sobre o elemento formal. O que interessa para esta jurisprudência é saber se exista ou não perigo de o tribunal se contradizer ou reproduzir decisão anterior. Basta essa possibilidade, para que se justifiquem as excepções dilatória de litispendência e caso julgado. O essencial é a relação jurídica fundamental, o direito que se discute nas duas acções para se aquilatar da identidade das acções (conferir, entre outros, Ac. STJ, 8/04/1997, www.dgsi.pt, relator – Torres Paulo; Ac.STJ. 6/06/2000, www.dgsi.pt, relator – Garcia Marques; Ac. STJ. 13/05/2003, www.dgsi.pt, relator - Pinto Monteiro; Ac. STJ. 29/04/1999, www.dgsi.pt, relator - Noronha Nascimento; Ac. STJ. 2/11/2006, www.dgsi.pt, relator - Pereira da Silva).

Depois de expostos os pontos de vista na doutrina e jurisprudência, ressalta que é indispensável, para a determinação da identidade das acções, para efeitos da litispendência, que se conjugue o elemento formal com o material de molde a que sobressaia, em cada caso, a relação jurídica fundamental, em discussão em cada processo.

No caso em apreço, como se concluiu no despacho saneador impugnado, existe identidade de sujeitos em ambas as acções, porquanto os aqui autor e ré actuam na mesma qualidade jurídica; ocupem a mesma posição jurídica quanto à relação substantiva, sendo que o aqui autor apresentou a relação de bens no inventário figurando como contraparte e reclamante a aqui ré. São nas duas acções, os titulares da relação jurídica material controvertida e portadores do mesmo interesse substancial. Existe identidade de pedido (ou objectiva) porquanto numa e noutra acção se pretende obter o mesmo efeito jurídico, sendo idêntica a providência jurisdicional solicitada pelo autor em ambas as acções; na presente acção pede que se declare o seu direito de propriedade sobre os bens que enuncia; no anterior inventário, pretende se partilhe o património comum do casal dissolvido por divórcio; cabendo aí determinar qual o acervo patrimonial conjugal a partilhar, tal pressupõe necessariamente a determinação de todos os bens propriedade dos cônjuges e se são bens próprios ou comuns do casal, pois que só os comuns são para partilhar; o êxito de cada uma das pretensões passa, em ambas as acções, pelo reconhecimento de quais os bens que são próprios do Autor. E concluiu que existe identidade de causa de pedir a causa de pedir de ambas as acções é precisamente a mesma - o divórcio das partes e seu efeito relativamente ao património dos cônjuges.

Contrapõe o recorrente que a presente acção tem como causa de pedir o reconhecimento dos bens próprios, que advieram ao seu património próprio, na constância do casamento, o qual, foi celebrado sob o regime de comunhão de adquiridos, mas que lhe pertencem por direito próprio; sendo bens próprios, não podem ser relacionados em sede de inventário à luz do art° 25° da Lei 23/2013, de 5 de Março, em que “é relacionado pelo cabeça de casal a relação de bens comuns do casal dissolvido”. Por isso, sustenta, não ocorre qualquer risco de o tribunal recorrido vir a contradizer ou a reproduzir a decisão a proferir nestes autos, em que no Processo de inventário, mesmo colocado primeiro, em nada vai influenciar ou alterar os factos que forem dirimidos e reconhecidos por sentença de condenação nos presentes autos, porque a causa de pedir é substancialmente diferente, em que levam a decisões jurídicas diferentes, e, não se impor-se-á, por via do caso julgado ao Processo de Inventário, porque o objecto e a causa de pedir formam decisões jurídicas e casos julgados assente em factos diferentes.

Com o devido respeito, semelhante raciocínio não se mostra de acolher. Em sede de processo de inventário, e da relação de bens nos termos do art.º 25.º da Lei 23/2013, quaisquer bens pertencentes aos cônjuges interessados são potencialmente susceptíveis de serem relacionados como bens que integram o património comum do casal e, por maioria de razão, os adquiridos na constância do vínculo matrimonial, como aqueles que o recorrente reivindica na presente acção. Se, de acordo com o direito substantivo aplicável, tais bens devem considerar-se próprios de um dos cônjuges e, como tal, excluídos do acervo a partilhar, é questão a resolver no âmbito do processo inventário, conforme o disposto no art.º 32.º, n.º 1, al. b), 35.º e 36.º, todos da Lei 23/2013. Só quando o notário se abstém de decidir e remete os interessados para os meios judiciais comuns (n.º 1 do art.º 36.º) ou, com base numa apreciação sumária das provas produzidas, deferir provisoriamente as reclamações, com ressalva do direito às acções competentes (n.º 3 do mesmo artigo), se permite às partes discutir em acção com processo comum a propriedade daqueles bens cuja relacionação não foi objecto de acordo. Se assim não fosse, sempre persistiria o risco de, em sede de inventário os bens em crise poderem vir a ser declarados comuns, e próprios na acção comum, ou vice-versa.

Nem fará sentido argumentar que a presente acção tem como causa de pedir o reconhecimento dos bens próprios, que advieram ao seu património próprio, porque esse é precisamente o quod demonstrandum est, quer na presente acção, quer no processo de inventário, verificando-se todos os pressupostos da litispendência entre ambas as acções.


No entanto, sabido que no processo do processo de inventário que corre termos no Cartório Notarial da Dr.ª D…, com o n° 1760/15, apesar de ter sido o primeiro instaurado, foi aquele em que a ré foi citada posteriormente, dúvidas não cabem de que era no processo de inventário, e não na presente acção, que a litispendência deveria ter sido deduzida e declarada, para os efeitos tidos por convenientes quanto à tramitação daquele processo.

3. [Comentário] a) Pode um acórdão não ser aceitável quanto às premissas, mas sê-lo quanto à decisão nele proferida? Pode, como o demonstra o presente acórdão da RP.

A RP entende que entre um processo judicial e um processo de inventário a correr num cartório notarial se verifica a excepção de litispendência quanto à apreciação de uma questão relativa à propriedade de certos bens imóveis (cf. art. 580.º e 581.º CPC). Entende também que a referida excepção deveria ter sido alegada no processo de inventário, dado que foi neste que a Ré foi citada mais tarde (cf. art. 582.º, n.º 1 e 2, CPC).

A primeira questão a resolver é, pois, a de saber se se verifica a referida excepção de litispendência. Para isso, importa ter presente que o disposto no art. 36.º, n.º 1, L 23/2013, de 5/3, atribui ao notário a faculdade de, perante a complexidade da matéria de facto e de direito, se abster de decidir uma questão e de remeter os interessados para os meios judiciais comuns. 

Deste regime legal decorre que, antes de o notário vir a decidir sobre se aprecia a questão relativa à propriedade dos imóveis, nada se pode aferir quanto à excepção de litispendência. Antes dessa decisão, não se pode dizer que a mesma questão se encontra em apreciação em dois meios processuais distintos (in casu, o processo de inventário e o processo judicial). Depois da decisão do notário, então sim é possível aferir a excepção de litispendência: esta excepção ocorre se o notário decidir apreciar a referida questão, mas não se verifica se o notário decidir remeter os interessados para os meios judiciais.

Do exposto decorre que, estando em causa a alegação e apreciação da excepção de litispendência, a RP, no momento em que decidiu, não tinha elementos para concluir pela sua verificação. Quanto muito, o que havia, no momento da decisão da RP, era uma "litispendência potencial": viria efectivamente a verificar-se a excepção de litispendência, se e quando o notário decidisse apreciar a questão respeitante à propriedade dos imóveis.

Portanto, a conclusão de que, no caso sub iudice, se verifica a excepção de litispendência é prematura.

b) É neste contexto que tem relevância um outro dado do problema. É ele a circunstância de a Ré ter sido citada  em segundo lugar no processo de inventário e de, portanto, qualquer excepção de litispendência dever ser invocada e conhecida oficiosamente nesse processo (cf. art. 582.º, n.º 1 e 2, CPC). Quer dizer: na eventualidade de a excepção de "litispendência potencial" se tornar "real", é no processo de inventário que a mesma deve ser alegada e conhecida oficiosamente.

Disto resulta que o processo judicial no âmbito do qual foi proferido o acórdão da RP nunca poderia ser afectado pela verificação da excepção de litispendência e o mesmo sempre haveria de continuar, apesar da pendência simultânea do processo de inventário.

É isto que permite concluir que, embora a RP tenha admitido a verificação de uma excepção de litispendência antes de estar reunida uma das condições essenciais para a sua verificação (o risco da apreciação da mesma questão em dois processos simultaneamente pendentes), a sua decisão está correcta. A presente acção nunca pode vir a ser afectada pela pendência simultânea do processo de inventário e, portanto, sempre tem de continuar, mesmo que no processo de inventário se preencha a condição para a verificação da excepção de litispendência.

MTS