"[...] o inóspito, árido e descurado processo encontra-se estreitamente relacionado com as correntes espirituais dos povos e [...] as suas diversas concretizações devem ser incluídas entre os mais importantes testemunhos da cultura" (F. Klein (1902))



01/09/2017

Jurisprudência (675)


Petição deficiente; convite ao aperfeiçoamento


1. O sumário de RC 14/3/2017 (10327/15.1T8CBR.C1) é o seguinte:

Perante uma petição inicial deficiente, incompleta, no que concerne à descrição dos factos constitutivos do direito a que se arroga o autor, em que não falta nem é ininteligível a causa de pedir, deve o juiz formular o convite de aperfeiçoamento previsto no artigo 590.º, n.º 4, do CPC.

2. Na fundamentação do acórdão pode ler-se o seguinte:
 
"Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se a petição inicial padece de ineptidão ou se, assim não sendo, se deve determinar o prosseguimento dos autos, se necessário, com convite ao autor no sentido do aperfeiçoamento da matéria de facto alegada.

A matéria de facto a ter em conta para a decisão em causa, é a que consta do relatório que antecede.

Se a petição inicial padece de ineptidão ou se, assim não sendo, se deve determinar o prosseguimento dos autos, se necessário, com convite ao autor no sentido do aperfeiçoamento da matéria de facto alegada.

Como resulta do relatório que antecede, importa decidir se se verifica ou não a ineptidão da petição inicial, com o fundamento em o autor não ter alegado factos de onde se possa extrair que a ré foi a vendedora do imóvel ou que o tivesse construído, modificado ou reparado; nem que qualquer dos réus o foi e a quem foram vendidas as fracções e quando ou; se padecendo a mesma de incorrecções/imperfeições na exposição da matéria de facto, ainda assim, é passível de ser aproveitada, com recurso ao seu aperfeiçoamento, nos termos propostos pelo recorrente.

Como dispõe o artigo 552.º, n.º 1, al. d), do CPC, na petição inicial deve o autor expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção.

E, desde já se diga, com o devido respeito por opinião em contrário, que a referida exposição dos factos essenciais que constituem a causa de pedir, têm que ser descritos/narrados, directamente na petição inicial e não por remissão para documentos.

Os documentos, como consabido, constituem um meio de prova dos factos alegados, mas a alegação destes tem de ser feita no local próprio – no caso do autor, na petição inicial.

Como já referia Manuel de Andrade, in Noções Elementares De Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, a pág.s 110 e 111, a petição inicial é a base do processo e baliza os termos da acção, identificando-a, sendo para tal essencial a exposição dos fundamentos de facto, o acto ou facto jurídico concreto donde emerge a pretensão do autor.

Em idêntico sentido, se pronunciam, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, a pág.s 232 e seg.s, que consideram que a petição inicial tem como função pedir ao tribunal o meio de tutela jurisdicional destinado à reparação da violação ou ao afastamento da ameaça e entre as suas indicações mais importantes, destaca-se a narração dos factos que servem de fundamento à acção, sendo que para tal, não basta a indicação vaga ou genérica dos factos em que o autor assenta a sua pretensão, mas sim os factos concretos – o facto concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido.

Em caso de a causa de pedir faltar ou ser ininteligível, sanciona a lei tal falha com a nulidade de todo o processado, cf. artigo 186.º, n.º 1 e 2, al. a), do CPC, o que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição dos réus da instância – cf. artigos 576.º, n.os 1 e 2; 577.º, al. b), o que é de conhecimento oficioso, cf. artigo 578.º, todos do CPC.

In casu, como referido na decisão recorrida, pretende o autor accionar a responsabilidade dos réus, pela existência de defeitos no imóvel descrito nos autos.

É pacífico que, nos termos ali expostos, tal responsabilidade só pode decorrer da qualidade de empreiteiro ou de vendedor de tal imóvel, por parte dos réus e devendo, ainda, ser identificadas as pessoas a quem as fracções do imóvel foram vendidas, decorrendo a alegada responsabilidade dos réus, da alegação e prova dos factos que enformam a previsão dos artigos 916.º ou 1225.º, ambos do Código Civil, consoante a qualidade em que intervieram os réus na relação jurídica que está na génese dos presentes autos.

Sucede que, como se refere a fl.s 139 e 140, efectivamente, o autor não alegou os factos concretos de que deriva a responsabilidade dos réus, limitando-se a alegar que a ré teve a qualidade de dona da obra e o réu foi o empreiteiro responsável pela construção do prédio em causa, sem indicar quaisquer concretos factos sobre a questão de saber de que forma actuaram os réus, designadamente, que tenham construído, alterado ou feito quaisquer obras no prédio e muito menos que o tenham vendido.

Em face do que – aliás, o próprio recorrente reconhece que assim é, pretendendo remediar tal falta com a remissão para o teor de documentos juntos, o que, do nosso ponto de vista, como acima já referido, não releva – se tem de concluir que existe uma alegação deficiente dos factos concretos em que o autor baseia a sua pretensão.

Não obstante isso, o certo é que os réus contestaram a acção, sem arguir a ineptidão da petição inicial, nos termos que lhes aprouveram, revelando ter percepcionado/entendido quais os objectivos/pedidos formulados pelo autor com a propositura da presente acção, o que, nos termos do disposto no artigo 186.º, n.º 3, do CPC, afastaria a possibilidade de se declarar a ineptidão da petição inicial, com fundamento na falta ou ininteligibilidade da causa de pedir. [...]


Ora, no caso em apreço, não obstante a singeleza e o carácter conclusivo, daquilo que o autor alegou, pode concluir-se qual o fundamento em que demanda os réus, o que estes, como acima já referido, entenderam e interpretaram, como resulta da contestação que deduziram.

Estamos, pois, segundo o nosso entendimento, perante uma petição inicial em que não falta ou é ininteligível a causa de pedir, mas perante petição inicial, deficiente, incompleta, no que concerne à descrição dos factos constitutivos do direito a que se arroga o autor, mas não de forma tão grave que não permita o aproveitamento dos presentes autos, ainda que com recurso ao convite de aperfeiçoamento previsto no artigo 590.º, n.º 4, do CPC.

Efectivamente, a alegação constante da petição inicial, a que se deve atribuir a importância acima já referida, é deficiente, relativamente à descrição dos factos em apreço, mas permite a sua correcção, de modo que, a após tal correcção, se poderá aferir da existência dos pressupostos para a declaração do almejado direito, possa este vir a ser apreciado, desde que o autor, como lhe compete, enuncie/descreva, as concretas condições, os concretos factos, em que fundamenta a sua pretensão de ver os réus responsabilizados, nos termos pretendidos.

Para o que será necessário que o autor refira, concretamente, qual a intervenção dos réus no que se refere à construção, reparação e/ou venda do imóvel em causa."
 
[MTS]